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sábado, 28 de março de 2015
quinta-feira, 26 de março de 2015
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Apenas entre
1945 e 2015, os Estados Unidos mataram 220 mil pessoas em Hiroshima e Nagasaki,
utilizando armas de destruição em massa, quatro milhões de coreanos e um milhão
de chineses, na Guerra da Coreia, três milhões de vietnamitas e dois milhões de
cambojanos e laocianos, na Guerra do Vietnã, entre 500 mil e dois milhões de
indonésios, após o golpe de estado de Suharto, apoiado pelos EUA, entre 400 mil
e um milhão de iraquianos, na Guerra do Golfo, para citarmos apenas alguns
números.
ESTADO ISLÂMICO -- OPS., ESTADO EVANGÉLICO
James Cimino
Do UOL, em São Paulo
25/03/2015
Charge do cartunista Vitor Teixeira sobre os
Gladiadores do Altar, da Igreja Universal do Reino de Deus
A assessoria
jurídica da Igreja Universal do Reino de Deus pressionou extrajudicialmente o
cartunista Vitor Teixeira e retirar de sua página no Facebook uma charge que,
segundo ela, incita a intolerância religiosa.
A charge,
segundo seu autor, era uma crítica aos Gladiadores do Altar, grupo de fieis da
igreja que apareceram recentemente em diversos vídeos divulgados nas redes
sociais marchando, batendo continência e usando uniformes análogos aos do
Exército Brasileiro.
O grupo virou
alvo de críticas e de denúncias ao Ministério Público por ter sido visto como
análogo a uma organização paramilitar. A Universal nega as acusações e diz que
o grupo tem como objetivo "pregar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo".
Na
notificação, a advogada frisa que o grupo promove atividades "culturais,
sociais e esportivas para auxiliar no resgate e amparo de populações de rua,
viciados, jovens carentes e em conflito com a lei".
No desenho
feito por Teixeira, um homem com capacete de gladiador e uma camiseta com o
símbolo da Universal enfia uma espada em uma mãe de santo.
"Minha
intenção foi denunciar uma empresa que, a meu ver, está endossando a criação de
uma suposta milícia. E não sou apenas eu que acho isso, tanto que o assunto foi
levado ao Ministério Público. Estou debatendo a iniciativa de uma empresa, com
sede internacional, com um poderoso grupo de mídia por trás de si e com uma
assessoria jurídica que usou todo seu poder contra um cartunista independente.
Eles dizem que não irão me processar porque retirei a charge 'voluntariamente',
mas que opção eu tinha?"
Teixeira
disse ainda que a imagem da mãe de santo foi usada devido ao tratamento que a
igreja dá às religiões de matriz africana. Em 2007, o bispo Edir Macedo,
fundador da Universal, sofreu processo do Ministério Público e teve seu livro
"Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônios?" retirado
temporariamente de circulação. No entanto o TRF da 1ª região entendeu que a
obra, apesar de conter expressões e mensagens preconceituosas, deveria voltar a
circular no intuito de prevalecer a liberdade de expressão, garantida pelo
artigo 5º da Constituição.
"Quando
vi os vídeos daqueles gladiadores, pensei que se existia um grupo que seria
alvo deles certamente seriam as religiões africanas, que já são atacadas em
seus cultos", disse o cartunista. Na notificação, a Universal nega que
incite ódio contra essas religiões. Diz apenas que "não concorda" com
elas.
Liberdade de Expressão
Logo após o
cartunista divulgar em seu perfil no Facebook a notificação que recebera, a
assessoria jurídica da igreja enviou outra correspondência dizendo que a
Universal "não trabalha nem nunca trabalhou baseada em ameaças" e que
"a pretexto da liberdade de expressão, não é admissível a incitação ao
ódio religioso".
Procurada
pela reportagem do UOL sobre o caso, a assessoria de imprensa
Igreja Universal do Reino de Deus respondeu:
"O autor
produziu e publicou uma ilustração acusando a Universal assassinar, ou de
pretender matar praticantes de religiões de matriz africana. Incitar o ódio é
crime. Acusar falsamente de cometer um crime, também é crime. No estado de
direito, a liberdade de expressão não autoriza ou legitima absurdos como tal
imagem horrenda, veiculada de modo irresponsável. Voluntariamente, o chargista
apagou a postagem, certamente por reconhecer o erro que cometeu. A Universal
respeita e defende as liberdades constitucionais de crença, de culto e de
opinião. Mas jamais aceitará calada ataques delinquentes de preconceito e
rancor. Casos semelhantes terão tratamento igual perante a Justiça."
quarta-feira, 25 de março de 2015
HERBERTO HELDER E A REFABULAÇÃO DO ORIENTE
Claudio Daniel
Herberto
Helder (1930-2015) publicou no Jornal de
Letras e Artes de Lisboa, em janeiro de 1963, artigos sobre a poesia
japonesa, e posteriormente dedicou-se à tradução de haicais de Bashô e seus
discípulos para o português, que reuniria mais tarde na antologia O bebedor nocturno, lançada em 1968,
que teve sucessivas edições, sendo a mais recente a de 2010. Comentaremos neste
artigo o trabalho tradutório de HH e a presença de elementos da poesia japonesa
em sua obra criativa, como o princípio da analogia e a linguagem paradoxal dos koans (公案). Conforme Maria Estela Guedes, o fascínio de Helder por
diferentes discursos étnicos – dos haicais à poesia esquimó, dos textos orais
dos peles-vermelhas aos hieróglifos egípcios, dos cantos mitológicos
pré-colombianos ao Cântico dos cânticos
do Antigo Testamento – acompanha o
escritor desde o início de seu trabalho literário e se manifesta em diversos
outros livros, como As magias, Oulof e Poemas ameríndios.
“Ao verter para o português textos próprios das culturas e mesmo das liturgias de outros povos”, escreve Maria Estela Guedes, “HHelder busca uma ancestralidade literária, uma parentela que não pertence ao foro do DNA, e sim ao da imaginação criadora, ou do sonho, como lhe chama Alexandrian[1]”. Fascinado pelo aspecto mágico ou encantatório das línguas antigas, realçado pelos jogos sonoros aliterativos, pelas repetições e permutações de vocábulos, Helder irá pesquisar o artesanato semântico de várias literaturas, para incorporar procedimentos em seu próprio fazer poético. Conforme Maria Estela Guedes, “as sonoridades das línguas estranhas, por vezes apreendidas independentemente de significado, contando mais com o ritmo e a surpresa provocados pelos sons, aproximam-se da música” (idem, 44) e também dos “jogos infantis[2]”, próximos a certas experiências dadaístas e surrealistas, como as praticadas por Antonin Artaud. “Glossolalias e fenômenos fonéticos com o mesmo impacto estão presentes n’As magias, em títulos de obras, como Eloi Lelia Doura e Oulof, e até em textos jornalísticos”, observa a autora[3]. Em Photomathon & vox (1979), por exemplo, Helder cria insólitas palavras abstratas como LGOGERYCHWYRNDROBWLLLLANTYSILIOGOGOGOCH.
Poeta obscuro[4] como Heráclito, Helder se relaciona “com o misterioso, o mágico, a Esfinge[5]” e faz da tradução uma forma de máscara dramática ou heteronímia. Ou ainda, como diz Maria Estela Guedes: “O poeta, mediante a tradução, participa diretamente na cultura a que pertence o poema tribal, apropriando-se dela. Essa apropriação tem consequências intelectuais e estéticas[6]” que são diferentes do enfoque colonialista, que banaliza ou descaracteriza a cultura do Outro, seja ele africano, oriental ou ameríndio, para dominá-lo. O diálogo estabelecido por Herberto Helder com as culturas não-ocidentais vai em sentido diverso: “No momento em que o poeta assimila o elemento exótico, hibridando-o com o endótico, contraria a tendência colonialista e simultaneamente cria algo de novo, no plano artístico[7]”.
“Ao verter para o português textos próprios das culturas e mesmo das liturgias de outros povos”, escreve Maria Estela Guedes, “HHelder busca uma ancestralidade literária, uma parentela que não pertence ao foro do DNA, e sim ao da imaginação criadora, ou do sonho, como lhe chama Alexandrian[1]”. Fascinado pelo aspecto mágico ou encantatório das línguas antigas, realçado pelos jogos sonoros aliterativos, pelas repetições e permutações de vocábulos, Helder irá pesquisar o artesanato semântico de várias literaturas, para incorporar procedimentos em seu próprio fazer poético. Conforme Maria Estela Guedes, “as sonoridades das línguas estranhas, por vezes apreendidas independentemente de significado, contando mais com o ritmo e a surpresa provocados pelos sons, aproximam-se da música” (idem, 44) e também dos “jogos infantis[2]”, próximos a certas experiências dadaístas e surrealistas, como as praticadas por Antonin Artaud. “Glossolalias e fenômenos fonéticos com o mesmo impacto estão presentes n’As magias, em títulos de obras, como Eloi Lelia Doura e Oulof, e até em textos jornalísticos”, observa a autora[3]. Em Photomathon & vox (1979), por exemplo, Helder cria insólitas palavras abstratas como LGOGERYCHWYRNDROBWLLLLANTYSILIOGOGOGOCH.
Poeta obscuro[4] como Heráclito, Helder se relaciona “com o misterioso, o mágico, a Esfinge[5]” e faz da tradução uma forma de máscara dramática ou heteronímia. Ou ainda, como diz Maria Estela Guedes: “O poeta, mediante a tradução, participa diretamente na cultura a que pertence o poema tribal, apropriando-se dela. Essa apropriação tem consequências intelectuais e estéticas[6]” que são diferentes do enfoque colonialista, que banaliza ou descaracteriza a cultura do Outro, seja ele africano, oriental ou ameríndio, para dominá-lo. O diálogo estabelecido por Herberto Helder com as culturas não-ocidentais vai em sentido diverso: “No momento em que o poeta assimila o elemento exótico, hibridando-o com o endótico, contraria a tendência colonialista e simultaneamente cria algo de novo, no plano artístico[7]”.
Os textos japoneses traduzidos por
Herberto Helder em O bebedor noturno
estão divididos em três seções: Poemas
zen, conjunto de 16 dísticos sem informação sobre autoria ou procedência; Canções de camponeses do Japão, quatro
peças breves traduzidas na forma do quarteto; e Quinze haikus japoneses, seleção de poemas de Bashô, Kikaku,
Kyorai, Shikô, Buson, Issa e Ransetsu. Conforme observa Maria Estela Guedes,
“uma vez que raramente identifica as suas fontes, vamos partir do princípio que
verte do castelhano, do francês e do inglês[8]”
(segundo Jorge Souza Braga, a maioria dos poemas traduzidos por Herberto Helder
em O bebedor nocturno baseia-se na antologia
Trésors de la poésie universelle ,de Roger Caillois). Helder
não reivindica a tradução como transposição rigorosa do sentido de uma língua
para a outra, não adiciona notas explicativas, referências bibliográficas ou
ensaios críticos para expor o seu método tradutório; o seu diálogo com a poesia
japonesa não é o trabalho de um erudito, mas de um poeta que acredita na
capacidade imaginativa, na intertextualidade e na mestiçagem para evocar
rutilâncias dos textos originais. Em seus “poemas mudados para o português”
(subtítulo de O bebedor nocturno),
Helder realiza “uma apropriação da cultura transportada no texto étnico, e
seguidamente uma recriação de tais elementos na língua-mãe. Quer isso dizer que
o resultado é sempre um texto mestiço[9]”.
A prática tradutória de Helder afasta-se da historicidade e da busca de uma pureza original, da tentação ilusória de restabelecer uma suposta verdade de um determinado passado, sugerindo mesmo “a impossibilidade de resgatar o passado acumulado”, conforme diz Izabela Leal no ensaio Da memória à tradução: o erro das musas distraídas[10]. Segundo a autora, “no caso da tradução, há de fato uma limitação, que é a impossibilidade de recuperar o que está dito no texto original. A tradução nos faz ver o caráter fragmentário da linguagem, já que as línguas se diferenciam entre si ao mesmo tempo em que são aparentadas”[11]. A tradução literária, de acordo com a autora, revela não apenas “a distância entre aquilo que é visado e o que se atinge de fato” mas também o fato de que “não há incompletude apenas na relação entre texto original e texto traduzido”, porque “o próprio original já é portador de um princípio de estranheza, pois apresenta uma dessemelhança em relação a si próprio[12]”.
A partir destas considerações, Izabela Leal define a arte tradutória de Herberto Helder como “prática deformadora e violadora da língua materna” e como “desvio”, uma vez que recusa ser “reprodução do original” para se firmar como “vitalidade e esplendor[13]”. O ponto de partida da recriação helderiana é o “erro”, mas um erro criativo, que se converte em “erro feliz”, que “transforma o lugar do erro por meio de uma ‘invenção de movimento’, de passos em volta, e então ‘acerta (...) com a potência natural da poesia[14]”. O signo do erro, da errância, do deslocamento rege toda a poética helderiana, e em particular a sua poética da tradução, mas nem por isso devemos deduzir que o poeta, em suas criativas versões dos haicais japoneses para o português, cai no puro espontaneísmo, na variação aleatória ou em intuições divorciadas do espírito da cultura com que dialoga. Podemos observar o extremo cuidado com que Helder recria em português a concisão, visualidade e imaginário da poética japonesa nestes dois poemas, também “reimaginados” por Casimiro de Brito em seu livro Poemas orientais:
A prática tradutória de Helder afasta-se da historicidade e da busca de uma pureza original, da tentação ilusória de restabelecer uma suposta verdade de um determinado passado, sugerindo mesmo “a impossibilidade de resgatar o passado acumulado”, conforme diz Izabela Leal no ensaio Da memória à tradução: o erro das musas distraídas[10]. Segundo a autora, “no caso da tradução, há de fato uma limitação, que é a impossibilidade de recuperar o que está dito no texto original. A tradução nos faz ver o caráter fragmentário da linguagem, já que as línguas se diferenciam entre si ao mesmo tempo em que são aparentadas”[11]. A tradução literária, de acordo com a autora, revela não apenas “a distância entre aquilo que é visado e o que se atinge de fato” mas também o fato de que “não há incompletude apenas na relação entre texto original e texto traduzido”, porque “o próprio original já é portador de um princípio de estranheza, pois apresenta uma dessemelhança em relação a si próprio[12]”.
A partir destas considerações, Izabela Leal define a arte tradutória de Herberto Helder como “prática deformadora e violadora da língua materna” e como “desvio”, uma vez que recusa ser “reprodução do original” para se firmar como “vitalidade e esplendor[13]”. O ponto de partida da recriação helderiana é o “erro”, mas um erro criativo, que se converte em “erro feliz”, que “transforma o lugar do erro por meio de uma ‘invenção de movimento’, de passos em volta, e então ‘acerta (...) com a potência natural da poesia[14]”. O signo do erro, da errância, do deslocamento rege toda a poética helderiana, e em particular a sua poética da tradução, mas nem por isso devemos deduzir que o poeta, em suas criativas versões dos haicais japoneses para o português, cai no puro espontaneísmo, na variação aleatória ou em intuições divorciadas do espírito da cultura com que dialoga. Podemos observar o extremo cuidado com que Helder recria em português a concisão, visualidade e imaginário da poética japonesa nestes dois poemas, também “reimaginados” por Casimiro de Brito em seu livro Poemas orientais:
Libélula vermelha.
Tira-lhe as asas:
um pimentão.
Kikaku (1661-1707)
Pimentão vermelho.
Põe-lhe umas asas:
Libélula
Bashô (1644-1694)[15]
Tradução: Herberto Helder
A réplica de Bashô ao poema de seu discípulo Kikaku não é
apenas um exercício imaginativo ou estético, mas uma afirmação da piedade
budista, que se manifesta por todos os seres vivos, inclusive a libélula[16].
Em vez de mutilar o inseto para transformá-lo em algo semelhante ao pimentão,
Bashô faz a operação inversa, para transformar o pimentão em símile da
libélula. Casimiro de Brito assim traduziu estes poemas:
Uma libélula vermelha.
Tirai-lhe as asas:
Oh! Um pimento!...
(Kikaku)
Um pimento vermelho.
Daí-lhe umas asas:
Oh! Uma libélula!...
(Bashô)[17]
Tradução: Casimiro de Brito
As versões
criativas de Herberto Helder obtêm força e consistência no idioma português
pela extrema economia sintática, elemento essencial da arte poética japonesa, e
pela espacialização das linhas, que dão mobilidade aos poemas e mimetizam a
visualidade da escrita caligráfica. Casimiro de Brito, por sua vez, introduz interjeições
e reticências que enfatizam de maneira exagerada o sentido da surpresa, já
contido na própria referencialidade, e utiliza um vocábulo de uso pouco
corrente (pimento) em vez da forma
mais popular (pimentão).
Coloquialidade, jogos verbais, compaixão budista e imaginário do universo
infantil são recorrentes na poesia de Kobayashi Issa, também traduzido por
Helder em seu pequeno caderno japonês:
Caracol,
lento, lento, lento – sobe
o Fuji.
Um cuco
cuja voz se arrasta
sobre as águas[18].
Tradução: Herberto Helder
O primeiro
poema acentua ainda mais a visualidade como elemento essencial para a
construção do sentido, com a palavra “caracol” isolada na primeira linha,
sugerindo solidão, e a tripla ocorrência
da palavra “lento” na linha seguinte, a mais longa do poema, indicando na
própria fisionomia semântica a vagarosa caminhada até o monte Fuji. O segundo
poema, de construção sintática e visual mais simples, materializa a força
metafórica pela extrema concisão, em medidas métricas ainda mais condensadas –
Helder usou versos de 2-5-3 sílabas, em vez de 5-7-5, frequentes no haicai
tradicional. A escolha dos poemas japoneses “mudados para o português” em O bebedor nocturno favoreceu as composições de caráter fanopaico, talvez por
afinidade eletiva do tradutor, ele próprio um cultor da imagem rara, insólita,
herdeiro da tradição de Lautréamont e Reverdy. Assim, encontramos haicais com
imagens de alto impacto, como estes:
Crescente lunar.
O tubarão esconde a cabeça
debaixo das vagas.
(Shikô)
A lua deitou sobre as coisas
uma toalha de prata.
Azáleas brancas[19].
(Shikô)
Casa sob as flores brancas.
Onde bater?
Mancha sombria da porta[20]
(Kyorai)
Ao mudar
poemas japoneses para o português, Helder veste a máscara dramática de um autor
clássico do século XVII, desenvolvendo temas e técnicas presentes em sua
própria poesia – imagens desmesuradas, metáforas imprevistas – e recursos quase
ausentes em sua lírica, como a escrita concisa, substantiva, com alta resolução
e precisão de contornos. Ao contrário de Casimiro de Brito, não escreveu
haicais, mas encontramos em sua escrita criativa a presença do koan, tipo de fábula ou pergunta
enigmática que perturba a lógica
rotineira pela construção inesperada e inusitada do discurso. Conforme o
físico austríaco Fritjof Capra, “os koans
são enigmas absurdos, cuidadosamente preparados com o fito de fazer com que o
estudante do Zen se aperceba, do modo mais dramático, das limitações da lógica
e do raciocínio[21]”
.
O caráter irracional, paradoxal desses enigmas, prossegue o autor, “torna impossível a sua decifração através do pensamento. Os koans são elaborados precisamente para parar o processo do pensamento e, dessa forma, preparar o estudante para a experiência não-verbal da realidade[22]”. “O koan pode ser descrito como um problema apresentado pelo mestre a seu discípulo”, diz o pesquisador brasileiro Georges da Silva. “Consiste numa frase, às vezes ilógica e risível; é um exercício especial, cuja finalidade é ativar a mente, pela qual o discípulo chega à compreensão intuitiva da verdade[23]”. Em seu livro Bashô, a lágrima do peixe, Paulo Leminski escreve a respeito: “há centenas de koans, reunidos em grandes coleções, com os ditos e feitos dos mestres mais famosos[24]”. Nos mosteiros zen-budistas, esse tipo de enigma verbal era transmitido pelo mestre a seu discípulo, para que este “concentre-se, durante um tempo que pode ser longo, trabalhando mentalmente sobre ele, absorvendo sua ‘outra lógica[25]”. Como ilustração dessa singular variante da parábola, que recorda os ensinamentos dos filósofos cínicos gregos, Leminski cita o seguinte koan:
O caráter irracional, paradoxal desses enigmas, prossegue o autor, “torna impossível a sua decifração através do pensamento. Os koans são elaborados precisamente para parar o processo do pensamento e, dessa forma, preparar o estudante para a experiência não-verbal da realidade[22]”. “O koan pode ser descrito como um problema apresentado pelo mestre a seu discípulo”, diz o pesquisador brasileiro Georges da Silva. “Consiste numa frase, às vezes ilógica e risível; é um exercício especial, cuja finalidade é ativar a mente, pela qual o discípulo chega à compreensão intuitiva da verdade[23]”. Em seu livro Bashô, a lágrima do peixe, Paulo Leminski escreve a respeito: “há centenas de koans, reunidos em grandes coleções, com os ditos e feitos dos mestres mais famosos[24]”. Nos mosteiros zen-budistas, esse tipo de enigma verbal era transmitido pelo mestre a seu discípulo, para que este “concentre-se, durante um tempo que pode ser longo, trabalhando mentalmente sobre ele, absorvendo sua ‘outra lógica[25]”. Como ilustração dessa singular variante da parábola, que recorda os ensinamentos dos filósofos cínicos gregos, Leminski cita o seguinte koan:
Po-chang tinha tantos alunos que se viu obrigado a abrir outro
mosteiro. Para achar alguém apto a ser mestre na nova casa, juntou seus monges
e colocou um cântaro na frente deles, dizendo:
— Sem o chamarem de cântaro, me digam o que é isso.
— Você não pode chamá-lo um pedaço de lenha, disse o monge principal.
Nesta altura, o cozinheiro do mosteiro derrubou o cântaro com um
pontapé e afastou-se.
Po-chang deu a direção do novo mosteiro ao cozinheiro[26].
O koan era
transmitido de mestre a discípulo na escola zen-budista Rinzai, introduzida nas
ilhas japonesas por Eisai (1141-1251), que encontrou grande aceitação por parte
da aristocracia guerreira. Outro exemplo clássico de koan é referido por Ricardo M. Gonçalves em seu livro Textos budistas e zen-budistas: “Você
pode ouvir o ruído de suas duas mãos batendo uma na outra; ouça agora o ruído
de uma só mão[27]”.
Ao receber um koan como este, o
discípulo, no início, busca “uma solução lógica e racional[28]”,
mas “as tentativas nesse sentido são sumariamente rechaçadas pelo instrutor.
Afinal, cansado de esgrimir inutilmente com suas armas habituais, a mente do
praticante abre-se para o despertar do conhecimento intuitivo[29]”. O espírito do koan está presente numa notável composição de Helder publicada
inicialmente nos Cadernos de Poesia
Experimental e incluída posteriormente em seu único livro de prosa
ficcional, Os passos em volta (1963):
TEORIA DAS CORES
Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranqüilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.
O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos fatos e punham-se por uma ordem, a saber:
1) peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor;
2) peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
A fábula helderiana desarticula o raciocínio linear, de
matriz cartesiana, e compõe uma outra lógica, intuitiva, que nasce da percepção
da impermanência, ou contínuo vir-a-ser dos fenômenos, que HH nomeia como “lei
da metamorfose”. Este é um princípio caro ao pensamento budista, que considera
a realidade material desprovida de identidade estável, uma vez que está sujeita
às incessantes mutações e condicionamentos espaço-temporais. A impermanência, desse
modo, é o mesmo que a vacuidade, ou ausência de um “eu” separado do mundo: na
filosofia budista, tudo e todos estão relacionados num sistema de
interdependência, cuja face visível é o universo material (samsara) e a face invisível, o vazio (sunyata). O peixe vermelho que se torna negro e por fim é
representado como amarelo é uma metáfora pictórica dessa “lei da metamorfose”
que permeia todo o texto, construído numa forma híbrida entre a fábula e o
poema em prosa. No
texto Comunicação acadêmica, de 1963,
HH radicaliza a “lei da metamorfose”, aplicando a técnica de tema e variações,
própria da música ouvida em concerto (recordemos que a variação é uma forma musical em que a melodia é repetida ao longo
da composição com mudanças em seu ritmo, compasso, tonalidade, modo,
harmonização, arabesco etc., “com a única e imperiosa condição de permitir que
o ouvinte sempre possa reconhecer mais ou menos distintamente o tema original”[1]):
Gato dormindo debaixo de um pimenteiro: gato amarelo folhas verdíssimas pimentos vermelhos: sono redondo: sombras pequenas de pimentos: no sono do gato: folhas sombrias dentro do amarelo: pimentos dormindo num gato vermelho: verdes redondos no sono do pimenteiro: o amarelo: da cabeça do gato nascem pimentos verdíssimos de sono verdíssimo debaixo de um pimenteiro amarelo: a sombra do gato dando folhas redondas sonhando amarelo sobre dormindo os pimentos: água: secura sombria do gato vermelho: o sonho da água dorme no pimenteiro: a sombra da cal das paredes secas dorme no gato de água amarela: a cal dá pimentos que sonham nas folhas do gato: o sono da cal dá sombras redondas no gato enrolado no vermelho: a água é uma sombra o gato é uma folha o sono é um pimenteiro: a cal é o verdíssimo do sono seco dando sombra no amarelo: pimenteiro redondo: pimentos de cal enrolados no sonho do silêncio amarelo: o silêncio dá gatos que sonham pimentos que dão sono na cal que dá sombra nas folhas que dão água na secura do tempo vermelho: o tempo enrola-se debaixo da cabeça do pimenteiro que se enrola no gato de cal do sono amarelo: o sono de dentro dos pimentos debaixo do redondo verdísssimo enrolado no sonho: e dorme o pimenteiro com as sombras do gato redondo enrolando-se nas folhas: silêncio de sonho sono de tempo: tudo amarelo: noite do pimenteiro sono da cal folha do gato sonho das sombras do verdíssimo vermelho: secura da noite: noite do gato na noite da cal com a noite das folhas dentro da noite do verdíssimo debaixo da noite do sonho diante da noite do pimenteiro após a noite da água conforme a noite debaixo com a noite enrolada contra a noite do amarelo desde a noite das sombras consoante a noite redonda para a noite de dentro durante a noite do vermelho detrás da noite dos tempos debaixo da noite sem à frente do com da noite conforme a noite conforme: a noite dos tempos: um gato de dentro desaparecendo num pimenteiro: pimenteiro desaparecendo: a cal morrendo no sonho das folhas pequenas: o silêncio de tudo no mundo inteiro:
TEORIA DAS CORES
Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranqüilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.
O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos fatos e punham-se por uma ordem, a saber:
1) peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor;
2) peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora
em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá dentro do
aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer
notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da
imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de
fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo[30].
Gato dormindo debaixo de um pimenteiro: gato amarelo folhas verdíssimas pimentos vermelhos: sono redondo: sombras pequenas de pimentos: no sono do gato: folhas sombrias dentro do amarelo: pimentos dormindo num gato vermelho: verdes redondos no sono do pimenteiro: o amarelo: da cabeça do gato nascem pimentos verdíssimos de sono verdíssimo debaixo de um pimenteiro amarelo: a sombra do gato dando folhas redondas sonhando amarelo sobre dormindo os pimentos: água: secura sombria do gato vermelho: o sonho da água dorme no pimenteiro: a sombra da cal das paredes secas dorme no gato de água amarela: a cal dá pimentos que sonham nas folhas do gato: o sono da cal dá sombras redondas no gato enrolado no vermelho: a água é uma sombra o gato é uma folha o sono é um pimenteiro: a cal é o verdíssimo do sono seco dando sombra no amarelo: pimenteiro redondo: pimentos de cal enrolados no sonho do silêncio amarelo: o silêncio dá gatos que sonham pimentos que dão sono na cal que dá sombra nas folhas que dão água na secura do tempo vermelho: o tempo enrola-se debaixo da cabeça do pimenteiro que se enrola no gato de cal do sono amarelo: o sono de dentro dos pimentos debaixo do redondo verdísssimo enrolado no sonho: e dorme o pimenteiro com as sombras do gato redondo enrolando-se nas folhas: silêncio de sonho sono de tempo: tudo amarelo: noite do pimenteiro sono da cal folha do gato sonho das sombras do verdíssimo vermelho: secura da noite: noite do gato na noite da cal com a noite das folhas dentro da noite do verdíssimo debaixo da noite do sonho diante da noite do pimenteiro após a noite da água conforme a noite debaixo com a noite enrolada contra a noite do amarelo desde a noite das sombras consoante a noite redonda para a noite de dentro durante a noite do vermelho detrás da noite dos tempos debaixo da noite sem à frente do com da noite conforme a noite conforme: a noite dos tempos: um gato de dentro desaparecendo num pimenteiro: pimenteiro desaparecendo: a cal morrendo no sonho das folhas pequenas: o silêncio de tudo no mundo inteiro:
et caeteramente vosso inteiro:
herberto helder:
em janeiro:
mil novecentos e sessenta e três
A insólita composição helderiana, construída a partir da combinação e permutação de poucos elementos semânticos – recurso empregado também na poesia oral de diferentes etnias africanas e indígenas[33], na poesia visual do barroco português e nas experiências de autores contemporâneos como Ana Hatherly – ao mesmo tempo que esvazia o sentido habitual das palavras, convertidas em termos quase abstratos, constroi novos significados, realçando a força sugestiva de termos como “amarelo”, “gato”, “água”, “verdíssimo”, “pimenteiro”. As próprias conjunções, preposições e sinais de pontuação (no caso, os dois pontos) funcionam como elementos rítmicos, em construções que já não obedecem à sintaxe regular, mas sim à fluência melódica de cada frase.
O caráter híbrido desse texto, desenvolvido num jorro contínuo, é ainda mais acentuado que o da Teoria das cores, com a disposição espacial das últimas linhas sugerindo analogias com a poesia espacial de Mallarmé, em contraste com a prosa blocada das linhas anteriores. A poeticidade do texto é reforçada, sobretudo, pelas estranhas combinações imagéticas – “sono redondo”, “silêncio amarelo”, “verdíssimo vermelho” – e pelas ações inusitadas derivadas dessa alquimia semântica: “a cal dá pimentos que sonham nas folhas do gato”, “dorme o pimenteiro com as sombras do gato redondo”, “um gato de dentro desaparecendo num pimenteiro” etc., que recordam poemas infantis ou os jogos praticados pelos surrealistas franceses. À maneira do koan, o texto de HH não apresenta qualquer conclusão redutora, mas explicita a ambiguidade, a mutabilidade e impermanência da linguagem e do mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPRA, Fritjof. O tao da
física. São Paulo: ed. Pensamento, 1989.
GUEDES, Maria Estela. A obra ao rubro de Herberto Helder. São
Paulo: Escrituras, 2010.
HELDER, Herberto. O bebedor
nocturno. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
__________. Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.
JACOTO, Lílian, e MAFFEI, Luís (org.). Soldado aos laços das constelações. Bauru: Lumme Editor, 2011.
LEMINSKI, Paulo. Bashô, A lágrima do peixe. São Paulo: ed.
Brasiliense, 1983.
[2] Idem, 45.
[3] Idem, 44.
[4] “Vamos relembrar: algures, n’Os passos em volta, o poeta suspira: Meu Deus, faz com que eu seja sempre
um poeta obscuro.” (GUEDES, 2010: 46)
[5] Idem,
45.
[6] Idem,
52.
[7] Idem,
52-53.
[8] Idem, 50.
[9] Idem.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] Idem.
[14] Idem,
33.
[15] HELDER, 2010: 136.
[16] Wenceslau de Moraes escreve o seguinte comentário: “Bashô
era extremamente bondoso para com todos os animais, não admitindo que os
maltratassem, mesmo por pensamento. Em certa ocasião, jornadeava ele campos
fora, em companhia de Kikaku, seu discípulo. Este, dando fé de um tira-olhos
escarlate, exclamou em verso:
Aka tombo
Hane wo tottara
To-garashi
que
quer dizer: -- Arranquem as asas a um tira-olhos escarlate; ficará um pimento.
– Esperava o discípulo, talvez, do mestre um cumprimento. Mas Bashô repreendeu-o
vivamente, por tão cruel brincadeira; e, corrigindo os versos, proferiu:
To-garashi
Hane wo tsuketara
Aka tombo
que
quer dizer: -- Juntem asas a um pimento; ficará um tira-olhos escarlate.”
(MORAES, 1926: 198-199)
[17] BRITO, 1962: 20.
[18] HELDER, 2010: 138.
[19] Idem, 137.
[20] Idem.
[21] CAPRA, 1989: 44.
[22] Idem.
[23] SILVA, Georges, e HOMENKO, Rita: 1993, 236.
[25] Idem.
[26] Idem, 72.
[27] in GONÇALVES, 1999: 24.
[28] Idem,
25.
[29] Idem.
[30] HELDER, 2004:
21.
[31] HOLLANDA, 1986: 1754.
[32] HELDER, 2004: 181.
[33] No livro As magias,
que reúne poemas de diferentes tradições e culturas de caráter iniciático,
encontramos peças como esta, recolhida da literatura oral dos pigmeus: “O
animal corre, e passa, e morre. E é o grande frio. / É o grande frio da noite,
é a escuridão. / O pássaro voa, e passa, e morre. E é o grande frio. / É o
grande frio da noite, é a escuridão. / O peixe nada, e passa, e morre. E é o
grande frio. / O homem come, e dorme, e morre. E é o grande frio” (HELDER,
1987: 26). Em outro poema oral, este dos iugures, lemos: “Ao negro mar
ressoante possas tu chegar. / Possas chegar e três vezes abrir a porta negra. /
Ao ressoante mar amarelo possas tu chegar. / Pela tempestade amarela que sopra
possas tu chegar. / Possas chegar montado num cavalo amarelo. / Empunhando um
dardo amarelo possas tu chegar. / Possas chegar ao ressoante mar vermelho. /
Pela tempestade vermelha que sopra possas tu chegar. / Possas chegar com as
mãos cheias de preciosas pedras vermelhas. / Vestido de bárbaros couros
vermelhos possas tu chegar” (idem, 25