terça-feira, 29 de outubro de 2013

PROGRAMAÇÃO DA CURADORIA DE LITERATURA E POESIA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO



 NOVEMBRO

Cantos da leitura: Leituras libertinas

Recital organizado por Patrícia Romiti dedicado à poesia e à prosa transgressiva de autores como Glauco Mattoso, Roberto Piva, Wilma Azevedo e Adelaide Carraro. Haverá uma entrevista informal com o poeta Claudio Willer, com a participação do público, que será convidado a fazer perguntas ao convidado, num bate-papo informal.

Esta atividade faz parte do MIX Brasil no Centro Cultural São Paulo.

Terça-feira, dia 12/11/2013, das 20h30 às 22h 
Sala de Debates


Poetas de Cabeceira

Lúcio Agra fará uma palestra sobre o poeta russo Velimir Khlébnikov, um dos autores mais inventivos da literatura russa do século XX.

Haverá tradução de libras.

Quarta -feira, dia 13/11/2013, das 20h30 às 22h 

Sala de Debates


Clube de Leitura de Poesia

O poeta Antônio Moura apresentará um depoimento sobre o seu trabalho literário e fará a leitura de alguns de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer perguntas ao poeta, para um bate-papo informal.

Quinta-feira, dia 20/11/2013, das 19h30 às 20h30 

Sala de Debates


Menu de Poesia

Recital dedicado à poesia de Mário de Andrade, organizado por Maria Alice Vasconcelos.

 Quarta-feira, dia 20/11/2013, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa


Poemas à Flor da Pele

Sarau poético realizado pelo grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de músicos e atores. Haverá também o lançamento de livros de poesia de novos autores.

Terça-feira, dia 27/11/13, das 19h às 20h30  

Sala Adoniran Barbosa


DEZEMBRO
  
Poesia dos 4 Cantos: Noite Brasileira

Poesia dos Quatro Cantos é uma atividade mensal dedicada à divulgação da poesia internacional, num formato que inclui a leitura com danças e músicas típicas de cada país, nos intervalos das leituras. Em dezembro, será feita a apresentação de uma Noite Brasileira com a poeta Lelia Maria Romero, que lerá poemas de autores brasileiros contemporâneos, com a participação do grupo de música e dança  Ilu Oba de Min.

Terça-feira, dia 03/12/13, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa

  
CRIONÇAS CRIONÇOS

Show do compositor Cid Campos, que apresentará poemas musicados voltados ao público infanto-juvenil.

Sexta-feira, dia 06/12/13, das 19h às 21h 

Sala Adoniran Barbosa


Clube de Leitura de Poesia

A poeta Mariana Ianelli conversará com o público sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer perguntas ao poeta, para um bate-papo informal.
Terça-feira, dia 10/12/2013, das 20h30 às 22h 
 Sala de Debates

  
Menu de Poesia

Recital dedicado à poesia de Décio Pignatari, organizado por Maria Alice Vasconcelos.

Haverá tradução de libras.

Quarta-feira, dia 04/12/2013, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa

  
Poemas à Flor da Pele

Sarau poético realizado pelo grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de músicos e atores. Haverá também o lançamento de livros de poesia de novos autores.

Terça -feira, dia 17/12/13, das 19h às 20h30  

Sala Adoniran Barbosa

A POESIA É UMA FORMA DE RESISTÊNCIA


                                                                                               
A poesia é incapaz de derrubar governos; ela não mobiliza exércitos, não controla impérios econômicos, não manipula a mídia nem detém a tecnologia de armas de destruição em massa. A palavra poética, no entanto, é uma das formas de resistência contra modelos autoritários de dominação dos povos. Desde a rebelião romântica, iniciada em meados do século XIX, até os movimentos de vanguarda das primeiras décadas do século XX, o sonho da Modernidade foi conciliar o “mudar a vida” de Rimbaud com o “mudar o mundo” de Marx – na célebre equação apresentada por André Breton (em que está implícito o “mudar a arte” de Lautréamont). Para os surrealistas, por exemplo, não bastava mudar a maneira de fazer arte – a inovação estética (presente em obras radicais como o Peixe solúvel, do próprio Breton, e nos poemas de autores como Robert Desnos e Antonin Artaud, especialmente as peças escritas em glossolalia); seu projeto era muito mais amplo e consistente, e incluía desde o apoio à revolução socialista (Aragon e Éluard filiaram-se ao Partido Comunista Francês) à apologia dos direitos imateriais da espécie humana, como a riqueza da imaginação, a busca de novas formas de espiritualidade, a diversidade sexual e comportamental e a pluralidade de afetos, contra toda forma de censura e repreensão da moral religiosa vigente.

Assim como seus colegas, os cubofuturistas russos, os poetas surrealistas franceses repensaram a polis para além da mera reprodução de um ente abstrato divinizado(o capital) e das relações de dominação entre produtores e proprietários. A poesia, nesse contexto histórico, tornou-se um elemento de mudança cultural, de questionamento de ideias e valores e proposição de novas formas de vida. Claro, nem todas as vanguardas artísticas do século passado estavam animadas com esse furor utópico – dadaístas e expressionistas, por exemplo, preferiram retratar a violência, a miséria e o absurdo da condição humana, não raro em tom melancólico e niilista. Podemos falar, nesse sentido, de duas famílias de vanguardas: as propositivas, que denunciaram a feiúra do mundo burguês como ponto de partida para a sua transformação, e as pessimistas, que se limitaram ao retrato caricatural do caos. Maiakovski, Neruda e Oswald de Andrade são alguns dos autores que se filiaram à primeira corrente; Tristan Tzara, Georg Trakl, Paul Celan destacam-se na segunda.

O ciclo das vanguardas históricas foi tragicamente interrompido com a ascensão de regimes fascistas e com a eclosão da II Guerra Mundial – numerosos poetas e artistas europeus morreram em combate, nos campos de concentração, enlouqueceram ou se suicidaram – e o projeto utópico foi congelado, nas décadas seguintes, pelo macarthismo e pela Guerra Fria. Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, a pesquisa estética foi retomada por pequenos grupos de autores experimentais, como o Oulipo na França e a Language Poetry, nos EUA, porém, os novos vanguardistas centraram o foco de seu interesse na construção formal, sem um projeto cultural mais amplo (a conjunção arte / vida / mundo de Breton e seus amigos). Na antiga União Soviética, na China e nos países do Leste Europeu, por outro lado, consolidou-se o Realismo Socialista como arte oficial e única de estado, matando a diversidade na pesquisa artística (situação que seria revertida, lentamente, a partir da década de 1960).

É possível rastrearmos poetas que nas últimas décadas conciliaram o trabalho formal com o conteúdo político – para ficarmos apenas no caso do Brasil, podemos citar a fase participante da Poesia Concreta (os poemas Greve e Luxo/Lixo, de Augusto de Campos; o Cristo-dólar e o Mallarmé vietcong, de Décio Pignatari; a série Servidão de passagem, de Haroldo de Campos), e ainda os poemas engajados de Ferreira Gullar e boa parte da música popular de alto repertório dos anos 1960-1970, contemporânea dos regimes autoritários no Brasil e na América Latina (Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Capinam, Milton Nascimento e muitos outros). A redemocratização do continente sul-americano, a partir dos anos 1980, somada à queda do Muro de Berlim e ao fim do antigo campo socialista na Europa, criaram as bases ideológicas da chamada pós-modernidade,que declarou o suposto “fracasso” das vanguardas artísticas, assim como dos projetos políticos revolucionários, que teriam naufragado num ocaso das utopias. A nova fé animou escritores, músicos, cineastas e artistas plásticos que incorporaram a seu vocabulário a palavra “mercado” e criaram obras com o objetivo declarado de atingir a demanda de determinado público e obter retorno para a indústria cultural. Dentro dessa perspectiva, que tem como dogmas a hipotética superioridade da economia de mercado globalizado e das instituições da democracia liberal representativa, a arte distanciou-se não apenas do engajamento e da utopia, mas até da simples moralidade: para artistas como Egberto Gismonti, Gilberto Gil ou Gal Costa, cantar em Israel é um negócio como outro qualquer, sendo suficiente o pagamento do “valor de mercado” de seus shows.

O cenário neoliberal, porém, revelou-se bem menos tranquilo do que o esperado por Francis Fukuyama, o guru norte-americano que declarou o “fim da história”. Se a década de 1990 foi o período áureo do neoliberalismo, nos anos seguintes o modelo foi mergulhando num fracasso cada vez mais profundo, atingindo não apenas a América Latina como os países do chamado Primeiro Mundo, especialmente os seus elos mais fracos – Itália, Espanha, Portugal, Grécia – cujas economias estão sendo destruídas pelas receitas neoliberais. Estamos longe, ainda, de uma nova situação revolucionária, porém, as fissuras no monolito ideológico do “pensamento único” criam situação propícia para que os produtores culturais voltem a exercer uma reflexão crítica sobre os fatos do mundo. Neste ponto, vamos, finalmente, falar da Palestina. A poesia, sozinha, é incapaz de mudar o mundo, mas pode ser uma ferramenta importante, no campo da cultura, para a denúncia das atrocidades cometidas pelo sionismo nos territórios palestinos ocupados, exercendo um jornalismo poético crítico e uma solidariedade ativa. Poemas sobre a Palestina publicados em sites, jornais e revistas, recitais de poesia em homenagem ao povo palestino, são também atividades políticas, de informação histórica e conscientização.

A revista Zunái, no link Opinião, publica regularmente os Cadernos da Palestina, com poemas, artigos, desenhos e fotos relativos ao tema, e dessa experiência nasceu a plaquete Poemas para a Palestina, com textos de autores brasileiros,distribuída gratuitamente ao público durante o Fórum Social Mundial Palestina Livre, realizado em Porto Alegre, em 2012. Essa publicação, acrescida de traduções dos poemas para o idioma árabe, será reeditada no início de 2014, em versão ampliada, e parte da tiragem será enviada a escolas e universidades palestinas,como um presente de solidariedade dos poetas brasileiros ao povo palestino. Um presente que traz uma mensagem política clara: NÓS ESTAMOS COM VOCÊS! A revista Zunái também se engajou para a realização da exposição fotográfica dedicada aos30 anos do massacre de Sabra e Chatila, exposta em 2012 na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, e neste ano foi uma das organizadoras de um recital de poesia em solidariedade à Palestina, que aconteceu em São Paulo, no Club Homs. Poetas, sozinhos, são incapazes de mudar o mundo, mas podem questionar preconceitos e valores ideológicos veiculados pela mídia, apresentar uma outra versão da história, diferente da oficial, colaborar para a conscientização do caráter autoritário e racista do sionismo e atrair setores da intelectualidade para o apoio solidário à luta do povo palestino por sua autodeterminação, liberdade e soberania.

POEMAS DE MARIA-MERCÈ MARÇAL


Tato de noite escancarada.
Ofereço-nos ao esquecimento
assim, indiscerníveis.
Para que os olhos, agora ausentes,
não possam retornar-nos
os limites, de ricochete,
da aurora.


* * *

A minha sede é um espelho obscuro
e fechado onde se mira, aberta, tua água...
Porque não eludias o luto voraz e o gelo,
somos duas noites a contradizer a noite.


* * *

Construir, sangue a sangue, este amor
fazendo e desfazendo, e refazendo o tecido,
como uma fiandeira insone
e desajeitada que tenta, às cegas,
caminhos de mãos incertas, mar aberto,
mas sem o segredo, sem a chave.


* * *

E em ti escolho o meu excesso.
Este era o sinal e a palavra,
salvo-conduto vivo para meu sangue.
Entre, então, já, hóspede do meu desejo.
Em ti, por ti, sou eu que me possuo,
triunfante no teu excesso.


* * *

No cerco obscuro de umas asas gigantes
que se dobram sobre mim e me dão abrigo,
a sombra me tem toda. Não me valem as palavras.
Tua cinza me enterra em velha brasa.
Tua língua me crava no silêncio.

  
* * *

Te amo com meu corpo
exilado e mudo.
Por quais perdidos caminhos
o retorno, a palavra?


Este amor, difícil
repto das fronteiras
que o gelo petrificava:
contrabando de luz


Traduções: Ronald Polito

(Poemas da plaquete DESGLAÇ / DEGELO. Fuchu-shi – Tokyo-to:Edições do Outro Mundo, 2004) 


domingo, 20 de outubro de 2013

BREVE NOTA SOBRE VASKO POPA



Vasko Popa (Grébenatz, 1922 -- Belgrado,  1991) foi um dos mais representativos poetas da ex-Iugoslávia (formada pela Sérvia, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Montenegro e Bósnia-Herzegóvina, até a dissolução do país, em 2003). A juventude do poeta foi marcada pela vivência da II Guerra Mundial – ele chegou a ser confinado em um campo de concentração em 1943, por sua oposição ao fascismo – e depois pela experiência da construção socialista. Foi o editor responsável pela publicação de Ficciones, de Jorge Luís Borges, na Iugoslávia – uma das primeiras publicações da obra do autor argentino na Europa.  Em 1975, conhece Octavio Paz na Cidade do México, participando de uma mesa redonda com o autor mexicano, Elizabeth Bishop, Álvaro Mutis e Joseph Brodsky, transmitida pela televisão. Vasko Popa também manteve diálogo intelectual com Haroldo de Campos e sua obra mereceu a admiração de autores de língua portuguesa como Sophia de Mello Breyner Andresen e Antônio Ramos Rosa, que o traduziu em Portugal. A obra de Vasko Popa consta de oito livros de poemas e está traduzida em pelo menos dezenove idiomas. Sua poesia, próxima ao cubofuturismo russo de Maiakovski, explora a fala coloquial, mas é concisa, áspera, elíptica, sem rimas nem sinais de pontuação, com imagens raras e inusitadas, ironia e humor negro; alguns críticos comparam a alegoria e o non sense de seus poemas à literatura de Kafka e Beckett (podemos pensar em Ionesco, especialmente na série Osso a osso). Seus poemas são agrupados em séries temáticas (animais, plantas etc.) que fazem alusões simbólicas à violência e ao absurdo da condição humana. No Brasil, foi publicada uma antologia de Vasko Popa, intitulada Osso a osso (São Paulo: Perspectiva, 1989), com seleção, tradução e notas de Aleksander Jovanovic. O livro foi incluído na coleção Signos, dirigida por Haroldo de Campos.


MAIS VASKO POPA


BATATA

Escura misteriosa
Face da terra

Com dedos de meia-noite
A língua do sempre-meio-dia
Fala

Lembrança invernal
Com súbitas alvoradas
Lança brotos

Tudo porque
No seu coração
Dorme o sol


A TORRE DE CAVEIRAS

Torre da morte

Nos ossos frontais tremeluz
Uma terrível lembrança

Das órbitas ocas
Fita até o fim do mundo
Um presságio negro

Entre maxilares roídos
Cravou-se extrema
E enorme maldição

Em torno da morte
Emparedados na torre
Crânios dançam
A última dança estrelada

Torre da morte
A castelã assusta-se
De si mesma


O SOL DA MEIA-NOITE

Do ovo negro gigante
Brotou um sol qualquer

Reluziu-nos nas costelas
Escancarou o céu
Wm nosso peito órfão

Não se pôs
Tampouco despontou

Tudo em nós aurificou
Nada esverdeceu
Em torno de nós
Em torno do ouro

No coração vivo
Tornou-se nossa lápide


ATÉ LOGO

Depois da terceira ronda noturna
No pátio do campo de concentração
Nos dispersamos pelas celas

Sabemos que de madrugada
Um de nós será fuzilado

Sorrimos com conjura
E sussurramos um ao outro
Até logo

Não dizemos onde e quando

Abandonamos velhos hábitos
Nos entendemos muito bem


NO SUSPIRO

Pelas estradas da profundeza da alma
Pelas estradas azul-celeste
A erva-daninha viaja
As estradas se perdem
Sob os pés

Enxames de pregos violentam
As plantações cansadas
As lavouras desaparecem
Do campo

Lábios invisíveis
Apagaram o campo

A dimensão triunfa
Encantada pelas palmas de suas mãos lisas
Cinzalisas


CRÍTICA DA POESIA

Depois da leitura de poemas
No serão literário da fábrica

Um ouvinte ruivo
De face marcada por manchas solares
Ergue dois dedos

Camaradas poetas

Se eu lhes versificasse
Toda a minha vida
O papel ficaria rubro

E pegaria fogo

Tradução: Aleksander Jovanovic

(Do livro Osso a osso. São Paulo: Perspectiva, 1989)



POEMAS DE VASKO POPA


PATO

Arrasta-se pela poeira
Em que os peixes não riem
Carrega em seus flancos
Inquietude-águas

Desajeitado
Devagar
Arrasta-se
O caniço pensante
Há de alcançá-lo
Mesmo

Nunca
Nunca ousará
Caminhar
Assim como ousou
Arar espelhos


DENTE-DE-LEÃO

Na beira do passeio
No fim do mundo
Olho amarelo da solidão

Cegos pés
Apertam-lhe o pescoço
No abdômen da pedra

Cotovelos subterrâneos
Empurraram suas raízes
Para o húmus do céu

Pata canina ereta
Faz-lhe troça
Com o aguaceiro recozido

Contenta-o apenas
O olhar sem dono do passante
Que em sua coroa
Pernoita

E assim
A ponta de cigarro vai queimando
No lábio inferior da impotência
No fim do mundo


QUARTZO

Para Dúshan Ráditch

Sem cabeças sem membros
Aparece
Com o emocionado pulso das ocasiões
Move-se
Com o passo atrevido dos tempos
Tudo cinge
Em seu terrível
Interno abraço

Tronco liso branco exato
Sorri com a sobrancelha da lua


NO GRITO

A labareda se ergue alto
De dentro do rombo na carne

Sob a terra
Impotente bater de asas
E cego arranhar de patas

Nada sobre a terra

Sob as nuvens
Tênues lâmpadas de brânquia
E inarticulado apelo de algas


Tradução: Aleksander Jovanovic


(Do livro Osso a osso. São Paulo: Perspectiva, 1989)

CÂNONE E ANTICÂNONE (III): GUIMARÃES ROSA




Guimarães Rosa é um escritor brasileiro da terceira geração modernista. Seus contos e novelas destacam-se pelo uso da fala popular, de expressões regionais, mescladas a neologismos, arcaísmos, palavras indígenas, estrangeiras e ainda por construções inusitadas de frases, que por vezes se chocam com a própria sintaxe da língua portuguesa, como notou Haroldo de Campos em seu ensaio A linguagem do Iauretê. A literatura de Guimarães Rosa revela um conhecimento profundo do sertão brasileiro, ao mesmo tempo em que dialoga com a cultura universal, incorporando elementos simbólicos de diferentes épocas e países, mesclando o real e o fantástico, o erudito e o popular, como observou Berh Brait. Seu livro de estréia, Sagarana (1946), já revela a vocação universalista do autor. O título da obra deriva da palavra saga, que designa as epopéias escandinavas medievais, e o relato central desse livro, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, tem mesmo um caráter épico, revelado nos duelos entre jagunços e na jornada mística do protagonista, que após viver uma existência desregrada, perder a reputação, a casa e a família, luta para conquistar uma realização espiritual. As histórias reunidas nesse volume revelam ainda outra característica do autor, que é a recuperação do universo onírico da cultura popular, o estilo assombroso dos “casos”, que estará presente em sua obra posterior, especialmente em Primeiras histórias (1962) e Tutaméia (1967). Conforme observou Costa e Silva, nesses livros de contos o autor “favoreceu o caso, de enredo curto e cheio de surpresas”. São ficções “que se querem parecidas a anedotas”, mas que apresentam sempre o “inesperado do desfecho”. Costa e Silva aponta ainda que, nesses relatos breves, “o sertão continua vestido de Idade Média, com seus cavaleiros corteses, suas mulheres-damas que jamais perdem a condição de senhora a quem se serve por amor, e por quem se guerreia, e para quem se empreende a travessia dos medos”[1]. Nas narrativas de Rosa, porém, os tipos medievais aparecem travestidos de jagunços, fazendeiros, prostitutas, beatos e loucos. Beth Brait destaca que os animais aparecem também como personagens, como no conto O burrinho pedrês, o que aproxima os relatos rosianos das fábulas.
  
Guimarães Rosa investe na renovação narrativa, superando as noções clássicas de tempo, espaço e personagem. No romance Grande sertão: veredas, por exemplo, a evolução do enredo não segue uma cronologia linear, do tipo início-meio-fim; os episódios se sucedem de modo aparentemente caótico, sem obedecer a uma sequência temporal própria do romance realista ou naturalista. O espaço narrativo é múltiplo, alegórico, não se desenvolve num único local: a viagem, o movimento, a travessia, é o ambiente em que acontecem as várias narrativas construídas dentro da história principal. Os personagens principais, Riobaldo e Diadorim, por sua vez, não têm uma construção psicológica do tipo realista, regendo-se antes pelo princípio da ambiguidade. Diadorim é a jovem que se disfarça de jagunço para vingar a morte do pai, evitando o desejo em favor do ódio, e Riobaldo sente a angústia do amor pelo companheiro, que ele ignora ser uma mulher, e ainda o dilema metafísico em relação a um suposto pacto que teria realizado com o demônio, tema fáustico que se prolonga por todo o romance. No Grande sertão, verificamos ainda a quebra das fronteiras entre os gêneros literários: temos aqui elementos da poesia, do romance, da epopéia, bem como de formas literárias de diferentes períodos históricos. Conforme Beth Brait, “a lírica e a narrativa fundem-se e confundem-se, abolindo intencionalmente os limites existentes entre os gêneros. Segundo o crítico Alfredo Bosi, na obra desse autor, ‘a aguda modernidade se nutre de tradições, as mesmas que davam à gesta dos cavaleiros medievais a aura do convívio com o sagrado e o demoníaco’”[2]

É uma epopeia moderna, em aparente prosa. Como a Odisséia e Os lusíadas, é um poema longo de viagem, de navegação, de travessia – palavra que se repete insistente em todo o livro e lhe anuncia o ponto final. Um peregrinar em guerra, tal qual a Ilíada e a Canção de Rolando, e em busca da Graça, como A demanda do Santo Graal e A divina comédia. Nesse livro de Rosa sobre o mistério e a grandeza feérica do mundo, entrelaçam-se, ao tema da viagem como missão e destino, o enredo da tentação e do pacto fáustico e o da donzela que se faz soldado. Tudo a passar-se num sertão que é real e simbólico – as desmesuradas terras sem lei do interior do Brasil, onde mandavam a audácia e a coragem, e o mundo todo, e o inexplicável e o irracional, e a bondade e a maldade, e o destino e o demônio, e o que o homem de si mesmo não sabe, as suas profundezas”[3]. 
  
A literatura de Rosa se aproxima ainda do chamado realismo mágico latino-americano, especialmente em narrativas curtas como Meu tio, o iauaretê (do livro Estas estórias), que conta a metamorfose do protagonista em onça, numa linguagem rica em onomatopéias, interjeições e termos de origem indígena, ou ainda A terceira margem do rio (do livro Primeiras estórias), saga de um homem do sertão que abandona a mulher e filhos para viver numa canoa, sem nunca mais dizer uma única palavra. Porém, ao contrário de autores como Gabriel Garcia Marques (Cem anos de solidão), em Guimarães Rosa há uma unidade intrínseca entre a fabulação e a linguagem. Haroldo de Campos ressalta que, no conto Meu tio, o iauaretê, Rosa, além de utilizar “suas costumeiras práticas de deformação oral e renovação do acervo da língua (...)”, o autor mineiro utiliza um elemento que exerce função ao mesmo tempo estilística e fabulativa: “a tupinização, a intervalos, da linguagem”[4]. O uso de termos indígenas, nesse conto sobre a metamorfose de um homem em onça, não é um elemento decorativo, mas um recurso estrutural do enredo, que “dará à própria fábula a sua fabulação, à história o seu ser mesmo”[5]. Uma outra característica da obra de Rosa, agora no campo referencial, é a presença constante do sagrado. A espiritualidade, porém, não assume um caráter confessional, mas universal, incorporando imagens e símbolos de diferentes tradições, desde a budista e a taoísta (presentes já em seu livro de poemas Magma, de 1937) até uma visão bastante pessoal do cristianismo, expressa sobretudo no romance Grande sertão: veredas, que pode ser considerado um diálogo com o Fausto de Goethe. A busca da redenção possível, na visão do autor, não exclui o estar no mundo, nem mesmo a paixão e a luta: é o homem integral que aparece na metafísica rosiana, o viajante em travessia que não teme a condenação eterna porque não acredita no mal como um ente absoluto: “Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo, não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano. Travessia”[6].





[1] COSTA E SILVA, Alberto da. Estas primeiras estórias. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 11.


[2] BRAIT, Beth (Org). Guimarães Rosa. São Paulo: Nova Cultural, 1990. p. 140-141. Coleção Literatura Comentada.

[3] COSTA E SILVA, Alberto da. Estas primeiras estórias. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 10.

[4] CAMPOS, Haroldo de. A linguagem do Iauretê. Metalinguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 60-61.

[5] ______ . A linguagem do Iauretê. Metalinguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 60-61.


[6] ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. 613 p.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (II): CLARICE LISPECTOR



Clarice Lispector é autora de contos e romances de temática existencial e psicológica, em que o centro narrativo está na investigação do mundo interior das personagens, e em especial o das figuras femininas, com poucas ações exteriores e enredo reduzido ao mínimo. É uma obra em que as noções convencionais de tempo, espaço e movimento dramático, essenciais a uma estética de cunho realista, como a praticada por autores da década de 1930, como Jorge Amado, Rachel de Queiroz ou José Lins do Rego, cedem vez a um outro tipo de discurso, construído com base nas sensações, memórias e pensamentos do personagem, articulados numa prosa densa, elaborada, que se aproxima da linguagem poética, pelo uso que faz da metáfora, da sinestesia e de toda sorte de recursos imagéticos e sonoros. A autora não se preocupa apenas com os significados, mas também com os significantes, ou seja, com o valor artístico das palavras. A originalidade de Clarice Lispector foi registrada por Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira, onde ele a coloca ao lado de Guimarães Rosa como os principais renovadores de nossa prosa narrativa. É preciso apontar também a dimensão filosófica da obra da escritora, que se apresenta na tensão entre a liberdade de escolha das personagens e as convenções morais ou sociais estabelecidas, bem como os conflitos entre imaginação e realidade, indivíduo e mundo. Nesse aspecto, é possível aproximá-la de pensadores como o francês Jean-Paul Sartre, que investigou a natureza da existência humana como um resultado de nossas escolhas e ações.

Todos esses elementos conceituais e estéticos já estão presentes no livro de estreia de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, publicado em 1944, que recebeu na época comentários elogiosos de críticos como Antonio Candido e Álvaro Lins, que saudaram a renovação trazida pela autora a nossas letras. Em seu artigo No raiar de Clarice Lispector, publicado no mesmo ano que o romance, Candido já se referia à “exploração vocabular” e à “aventura da expressão” da autora, capaz de “estender o domínio da palavra sobre regiões mais complexas e inexprimíveis”[1]. Álvaro Lins, por sua vez, aponta nesse livro a influência de autores de língua inglesa do início do século XX, como Virgínia Woolf e James Joyce, em especial pelo uso do monólogo interior (discurso da personagem na primeira pessoa, em que ela faz um mergulho introspectivo em direção a seus sentimentos, idéias ou experiências vividas. Ao contrário do monólogo exterior, este não é pronunciado, como se o personagem conversasse consigo mesmo). Com efeito, o título do livro é uma frase do romance Retrato do Artista Quando Jovem, de Joyce, que também assina a epígrafe da obra. No entanto, segundo a própria autora, na época em que escreveu o livro, ela não conhecia a obra do escritor irlandês, aceitando o título e a epígrafe como sugestões apresentadas por Lúcio Cardoso, que leu os originais do romance antes da publicação. Ainda que não tenha ocorrido influência direta, são nítidas as afinidades estilísticas entre Clarice Lispector e James Joyce, não apenas no campo semântico mas também na quebra da linearidade fabulatória do tipo início-meio-fim pela fragmentação e descontinuidade da narrativa.  

Perto do Coração Selvagem é um romance urbano e psicológico, em contraste com a ficção regionalista e social dominante na época. O livro, dividido em duas partes, conta a história de Joana desde a sua infância até o início da vida adulta. Poucos fatos surgem ao longo dessa trajetória: a perda dos pais de Joana, sua adoção pela tia, o roubo de um livro pela menina, que provoca a sua transferência para um internato, o casamento com Otávio e a separação do marido, após descobrir seu adultério. A maneira como Clarice Lispector constrói e desenvolve sua ficção, porém, é diferente da fabulação tradicional, alternando o monólogo interior com a descrição de ocorrências da vida da personagem quando criança e adulta, inserindo o passado no presente e vice-versa, rompendo ainda com as fronteiras entre imaginação e realidade. Este tipo de narrativa, que não está centrada numa história linear, de feitio realista, causou estranheza inclusive a Álvaro Lins, que na época julgou a obra inacabada, opinião hoje não endossada pela crítica, que considera a fragmentação como uma das maneiras de se construir um relato. Alfredo Bosi faz um interessante paralelo entre a literatura de Clarice Lispector e o conceito de obra aberta do italiano Umberto Eco, que se aplica a obras literárias ou artísticas cuja estrutura formal permite múltiplas leituras e interpretações. A estrutura da obra aberta questiona a própria definição dos gêneros literários como categorias distintas, uma vez que o romance pode assimilar recursos da poesia, do ensaio ou do drama, por exemplo, em formas híbridas. A esse respeito, Alfredo Bosi fala numa “invenção mitopoética, que tende a romper com a entidade tipológica ‘romance’, superando-a no tecido da linguagem e da escritura, isto é, no nível da própria matéria da criação literária”. A prosa de Clarice Lispector, como a de Guimarães Rosa, na opinião desse crítico, “entendem renovar por dentro o ato de escrever ficção”, diferindo das linhas tradicionais da prosa romanesca na medida em que estas “situam o processo literário antes na transposição da realidade social e psíquica do que na construção de uma outra realidade”[2].

A criação de um mundo próprio pela linguagem, que não se limita a retratar os acontecimentos exteriores, é uma definição que pode ser aplicada a diversos romances posteriores da autora, e em especial A Paixão Segundo G. H. (1964), um longo monólogo em que a narradora faz um mergulho em si mesma, buscando entender a sua identidade, a sua relação com os outros, as razões para existir, amar, estar no mundo. Subitamente, ela resolve abrir o quarto da empregada, que se demitira, como se explorasse uma outra dimensão, diferente da sua, e ali se depara com uma barata, que provoca a sensação previsível de asco e medo. Contemplar o inseto, porém, torna-se um desafio para a narradora, que encontra ali a oportunidade de demonstrar uma atitude inesperada, corajosa, que simbolize uma mudança em sua vida: e ela come a barata, vencendo a repulsa. A Paixão Segundo G. H. é um livro em fluxo contínuo, sem divisão em capítulos, que começa com seis travessões seguidos de uma frase começada em letras minúsculas (“estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender”) e termina de modo similar, com uma frase interrompida seguida de igual número de travessões, representando, na própria materialidade da escrita, o estado de espírito da personagem, o seu fluxo incessante de pensamentos e sensações, que não obedecem a uma lógica linear. Já em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969), Clarice Lispector narra em terceira pessoa a história de Loreley, professora primária que abandona a casa dos pais no interior fluminense e muda-se para o Rio de Janeiro, onde se envolve em várias relações amorosas frustradas até conhecer Ulisses, com quem terá um envolvimento mais profundo. Os nomes dos personagens deste romance não foram escolhidos por acaso: Loreley, no folclore germânico, é uma sereia que seduz os pescadores com seus cantos, e Ulisses, na mitologia grega, é o herói que após lutar na guerra de Tróia retorna a sua terra natal, Ítaca, e durante a viagem marítima pede aos marinheiros que o amarrem ao mastro do navio, para que ele possa resistir ao canto das sereias. O título da narrativa, por sua vez, remete à Educação Sentimental de Flaubert e outras obras romanescas do século XIX que tinham como tema o aprendizado do amor, suas penas, alegrias e artimanhas nos jogos de sedução.

Água Viva, publicado em 1973, é talvez o livro mais denso e enigmático de Clarice Lispector. O enredo do romance poderia ser resumido à história de uma pintora que inicia um quadro e resolve escrever para o antigo amante (numa conjunção entre a arte e o amor, dois temas básicos da autora). Porém, praticamente não há ações exteriores nesse monólogo fragmentário, elíptico, musical, quase abstrato, que se aproxima da linguagem do poema em prosa (“É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica”). As referências simbólicas ao útero, à placenta, ao líquido amniótico, por sua vez, permitem uma leitura de ordem psicanalítica, que tem orientado alguns dos estudos sobre a obra de Clarice Lispector. A Hora da Estrela (1977), último livro que publicou em vida, parece o romance mais singular na obra da autora, exatamente por se afastar das características que manteve ao longo de quase todo o seu trabalho criativo. O romance, que foi adaptado para o cinema por Suzana Amaral, conta a saga de Macabéa, datilógrafa nascida em Alagoas que migra para o Rio de Janeiro, onde conhece Olímpico de Jesus, também nordestino, com quem vive uma relação amorosa decepcionante. Após consultar-se com uma vidente, que prevê um futuro feliz para Macabéia, ela morre num acidente, atropelada por um luxuoso Mercedez-Bens, símbolo da ostentação da prosperidade material. Em contraste com os seus romances anteriores, em que a dimensão individual se sobrepõe à social, A Hora da Estrela retrata a pobreza e a marginalização das classes populares num cenário urbano, mantendo porém o trabalho artístico com a linguagem.

Clarice Lispector também é notável contista, tendo publicado oito livros com histórias curtas, em que se destacam Laços de Família (1960), A Legião Estrangeira (1964) e Felicidade Clandestina (1971). A autora explora a ironia e o humor negro, mostrando o absurdo do cotidiano e das relações humanas, como no conto intitulado Uma Galinha (incluída em Laços de Família), em que os sentimentos de compaixão e solidariedade de uma criança pelas aves domésticas logo se transformam em seus opostos, a indiferença e crueldade (alegoria que pode ser estendida ao campo social, tanto na esfera política quanto na familiar ou na do ambiente de trabalho). A arte narrativa de Clarice Lispector, especialmente nas histórias curtas, adota por vezes recursos da fantasia e da fábula, que não obedecem às normas da verossimilhança (ou seja, o retrato realista de pessoas, cenários e situações), como acontece no conto A Menor Mulher do Mundo (também de Laços de Família), que conta as aventuras de uma pigméia do Congo Central que media apenas 45 centímetros. Descoberta pelo explorador francês Marcel Pretre, ela é batizada de Pequena Flor e levada para a Europa, onde causa perplexidade pela sua diferença radical em relação aos padrões biológicos e culturais do chamado mundo civilizado. Esta é também uma abordagem irônica do tema tradicional do amor impossível, uma vez que a relação entre a pigméia e o explorador europeu é irrealizável. Em A Legião Estrangeira (1964), Clarice Lispector reúne contos e crônicas que depois seriam republicados, com acréscimos, no livro Felicidade Clandestina (1971). Os temas básicos da autora, como a solidão, a busca da verdade, o amor, a angústia, estão presentes aqui, ao lado de outros, como o da velhice. No conto Viagem a Petrópolis, por exemplo, a personagem Margarida não tem consciência de sua situação de abandono, que irá descobrir, de forma cruel, ao longo da narrativa. A obra de Clarice Lispector, por sua riqueza estética e referencial, é uma das mais importantes realizações da literatura brasileira do século XX. 



[1] In Campos, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004, 184.

[2] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1976, 442.

domingo, 13 de outubro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (I): AUGUSTO DE CAMPOS



A poesia de Augusto de Campos situa-se no campo das vanguardas da segunda metade do século XX e início do XXI. Sua estratégia busca novos procedimentos de criação artística, mesclando recursos da poesia, das artes visuais, da publicidade, da música e das tecnologias digitais, seguindo o projeto de unir palavra, som, imagem e movimento numa unidade estrutural. O conceito de invenção, formulado por Ezra Pound, é essencial para a compreensão do pensamento e da prática poética do autor, voltado à pesquisa e experimentação de linguagem em diversos suportes, como o holograma, o móbile, o CD ou o videoclipe.

Em O Rei Menos o Reino, seu livro de estreia, publicado em 1951, Augusto de Campos pratica o verso tradicional, em poemas líricos, metafóricos, de forte tensão existencial. As imagens poéticas usadas nesta obra recordam por vezes a plasticidade surrealista, como por exemplo no poema O Vivo (“As mortas-vivas rompem as mortalhas / Miram-se umas nas outras e retornam / Seus cabelos azuis, como arrastam o vento![1]”), mas os versos são construídos com rigoroso artesanato formal, ao contrário da experiência mais espontânea da escrita automática. É possível identificar neste livro a influência de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Federico Garcia Lorca, na construção de imagens e na experiência criativa com a sintaxe, que por vezes se afasta da lógica discursiva linear, prenunciando suas futuras experiências poéticas, como na peça que abre o volume (“Onde a Angústia roendo um não de pedra / Digere sem saber o braço esquerdo / Me situo lavrando este deserto / De areia areia arena céu e areia[2]”). Em poemas publicados posteriormente, como O Sol por Natural (1950-1951), Ad Augustum per Angusta (1951-1952) e Os Sentidos Sentidos (1951-1952), o poeta vai progressivamente adotando o verso livre, a espacialização de palavras e linhas, a criação de neologismos e a fragmentação léxica. Em Poetamenos, que publica em 1955 no número 2 da revista Noigandres, ele apresenta um ciclo de poemas coloridos de temática amorosa em que a sintaxe discursiva é substituída pela organização gráfico-visual das palavras. Estas composições, inspiradas na melodia de timbres do músico austríaco Anton Webern (cada cor equivale a uma nota distribuída a um instrumento musical diferente) são os primeiros exemplos de Poesia Concreta publicados no Brasil. O movimento concretista, criado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, defende o “fim do ciclo histórico do verso” e propõe a criação de novas estruturas de composição poética, integrando recursos sonoros, visuais e verbais numa unidade “verbivocovisual”.

A proposta da Poesia Concreta tem como principal referência histórica o poema espacial Um Lance de Dados (1894) de Mallarmé, em que as palavras são dispostas de maneira geométrica na página, permitindo várias possibilidades de leitura, empregando ainda diferentes corpos de letras e fontes tipográficas, itálicos e negritos. A experiência de Mallarmé influenciou ainda os Caligramas (1918) de Apollinaire, em que cada poema tem uma organização visual relacionada ao seu tema (por exemplo, palavras dispostas na forma de um cachimbo, de uma pomba ou de uma fonte de água). Outras referências importantes para os concretistas foram os Cantos, de Ezra Pound, o Finnegans Wake, de James Joyce, e a poesia de e. e. cummings. No Plano-piloto da Poesia Concreta, publicado em 1958, os poetas concretos formalizam o seu pensamento estético, que seria desenvolvido em vários manifestos e artigos posteriores, reunidos na Teoria da Poesia Concreta (1975).

A Poesia Concreta surge num momento histórico em que a sociedade brasileira vive um breve período de democracia política, acompanhada pelo surto desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek, que culminou com a construção de uma nova capital para o país, Brasília, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Nesta época, em que também se aceleram a urbanização e a industrialização, com investimentos de capital estrangeiro, “surgem os primeiros filmes do Cinema Novo (...), Grande Sertão: Veredas, o Teatro de Arena, a Bossa Nova, João Gilberto, as vanguardas na poesia e nas artes plásticas”[3], como assinalam Iumna Maria Simon e Vinícius Dantas. Ao mesmo tempo, há um crescimento dos movimentos sociais, que demandam a reforma agrária e outras mudanças na economia e na política do país, acirrando os conflitos com os setores conservadores, que irão apoiar o golpe militar de 1964. 

Augusto de Campos adere a uma poesia participante desde 1961 com o poema Greve, que concilia a invenção de linguagem com temas de caráter político e social, adotando como lema a frase de Maiakovski: “Sem forma revolucionária não existe arte revolucionária”. Nesta época, aliás, Augusto e Haroldo de Campos estudam o idioma russo com Boris Schnaiderman, na Universidade de São Paulo, para traduzir poemas de Maiakovski, Khlébnikov, Krutchonik e outros autores de vanguarda russa, reunidos na antologia Poesia Russa Moderna (1968). A temática social está presente em outros poemas de Augusto de Campos, como Luxo / Lixo (1965), construído como paródia das logomarcas comerciais, e na série de poemas-cartazes Popcretos (1964-1966), que afirmam a contestação da ordem econômica e política pelo trabalho criativo com a linguagem. Em Psiu, poema circular construído a partir da colagem de textos e imagens recortados de jornais e revistas, podemos ler, por exemplo, a frase “Saber viver, saber ser preso, saber ser solto” junto a outros retalhos semânticos como “bomba”, “dinheiro”, “amar”, “vamos falar”, “livre” e “paz”, além de “pedaços de mensagens comerciais, referências à ditadura militar e aos atos institucionais”[4], como observou Flora Sussekind. Já no poema Cidade (1963), Augusto de Campos faz uma representação irônica do movimento caótico, acelerado e ruidoso da vida urbana, aglutinando, numa única linha, fragmentos de palavras em diversos idiomas, formando uma frase quase impronunciável (“atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveveravivaunivoracidade city cite[5]”). Este poema permite diferentes possibilidades de leitura, pela combinação e permutação de prefixos e sufixos presentes na frase, aglutinados ao substantivo “cidade”, gerando significados como “atrocidade”, “caducidade”, “causticidade”, “ferocidade”, entre outros. Uma experiência similar a esta é o Colidouescapo (1971), livro-poema composto de folhas soltas em que estão escritos diversos fragmentos de palavras que podem ser combinados de modo aleatório pelo leitor, que participa assim da construção do sentido, numa leitura interativa.

Poemóbiles (1974), conjunto de doze poemas-objeto coloridos tridimensionais, desenvolvidos em parceria com Júlio Plaza, também solicita a participação visual e tátil do leitor, já que cada uma dessas peças pode ser manipulada, como as esculturas móveis, ou móbiles, de Alexander Calder, conduzindo a diferentes interpretações. O poema Viva Vaia, que integra esta série, chama a atenção pela tipologia empregada, que abole as fronteiras entre palavra e imagem: os signos visuais podem ser “lidos” como letras (sons / idéias) e ainda como formas plásticas, recuperando a dimensão visual da escrita. Este é um dos aspectos centrais na poesia de Augusto de Campos, e atinge o seu ponto de maior desenvolvimento na Caixa Preta (1975), conjunto de poemas visuais e poemas-objeto elaborados novamente em parceria com Júlio Plaza, no qual se destaca o poema Pulsar, em que letras do alfabeto estilizadas mesclam-se a sinais gráficos como círculos e estrelas, que substituem as vogais. A peça foi musicada por Caetano Veloso, e consta na gravação em vinil que acompanha a Caixa Preta.

A obra de Augusto de Campos só obteve maior circulação a partir do final da década de 1970 com a publicação da antologia Viva Vaia (1949-1979), que reúne parte considerável de sua produção poética. Entre 1979 e 2003, o poeta publica duas outras coletâneas com mostras mais recentes de seu trabalho, Despoesia (1994) e Não (2003), sendo que esta última é acompanhada de um CD-Rom com poemas dinâmicos e interativos do autor elaborados com o apoio de programas multimídia. Convém destacar o trabalho de Augusto de Campos na área da crítica literária, com a revalorização de poetas criativos do passado que se achavam esquecidos, como o romântico Joaquim de Sousândrade, o simbolista Pedro Kilkerry e os modernistas Oswald de Andrade e Patrícia Galvão (Pagu), considerados por ele poetas inventores, e ainda o amplo trabalho que desenvolveu como tradutor de poesia, sendo que seus trabalhos mais recentes nessa área são Emily Dickinson: Não sou Ninguém (2008), Byron e Keats: Entreversos (2009) e August Stramm: Poemas-Estalactites (2009).


[1] CAMPOS, Augusto de. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 17.

[2] __________. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 9.

[3] SIMON, Iumna Maria, e DANTAS, Vinícius. Poesia concreta (coleção Literatura Comentada). São Paulo: Nova Cultural, 1982, 103

[4] GUIMARÃES, Júlio Castañon e SUSSEKIND, Flora (organizadores). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, 155.

[5] Campos, Augusto de. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 114-115


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

RETRATO DO ARTISTA




A POESIA COMO UM APRENDIZADO DE ESMERALDAS VIVAS

Adriana Zapparoli é uma autora que se destaca no cenário da nova poesia brasileira por sua capacidade imaginativa, que incorpora referências mitológicas de diferentes culturas do Ocidente e do Oriente, uma variedade de plantas, insetos e feras reais ou inventadas, nomes científicos extraídos do vocabulário biológico e formas inusitadas de representação do amor erótico e das relações interpessoais. Sua mitologia pessoal é desenvolvida em formas poéticas híbridas, com destaque para o poema em prosa, gênero literário criado no século XIX pelo francês Charles Baudelaire que dilui as balizas tradicionais entre verso e narrativa ficcional. A palavra híbrido, como se sabe, deriva do grego hybris, que significa orgulho, excesso, desmedida, violação das leis naturais (no caso de seres resultantes do cruzamento de indivíduos de espécies diferentes). A escrita híbrida, assim como acontece na biologia, é uma forma de transgressão, de superação de limites, normas, probabilidades, sem temor ao sacrilégio, ao monstruoso ou ao sublime. Em A flor-da-Abissínia (2008), primeiro título impresso da autora, na forma de plaquete (publicação de poucas páginas, de produção artesanal ou gráfica, geralmente com elaborado projeto de arte), somos surpreendidos pelo diálogo vocabular entre os textos escritos originalmente em português e as traduções para o espanhol realizadas por Jair Cortés e Berenice Huerta, bem como pelo diálogo visual dos poemas com o projeto de arte e a ilustração de Francisco dos Santos, que valorizam a plaquete como um objeto estético. Compõem o volume seis poemas breves, escritos ao longo de sete dias, na forma de um diário íntimo, em que as sensações eróticas são descritas em delicadas sinestesias e inusitadas associações de termos: “uma flor no inferno / levemente molhado. / a sua parte mais fina, em límpida essência turmalina...”, ou ainda com o brutalismo do “falo eletrocutado” e da “sesha em corrente lunar” (Sesha é o nome do deus-serpente indiano que serve de leito a Vishnu, o criador e sustentador dos mundos). Referências indianas aparecem ainda nos poemas mêntula e yoni, sendo essa última palavra o termo sânscrito que designa a vulva. Cocatriz, publicada no mesmo ano que A flor-da-Abissínia, é um monólogo lírico que explora a dimensão musical das palavras, utilizando recursos como a aplicação de cores, fontes, itálicos, negritos para registrar sutilezas sonoras e mudanças de timbre, como em uma partitura musical. A estrutura melódica e visual do poema define uma sintaxe própria, em que as linhas funcionam como frases de um bizarro recitativo cantado em concerto: “... unha do polvo-gestante / de colmo de fruta, açafrão-de-outono e coleção de zamu de / um mundo impiedoso, a pleura vista por dentro / e pelo entorno, escarra-ouro; não... ainda que se sin- / ta náusea logo na curva entre pérola e safira”. A estranheza semântica da poesia de Adriana Zapparoli, sua voluntária dissonância, que pode chocar leitores habituados à lírica tradicional de uma Cecília Meireles, encontra poucos paralelos na literatura brasileira; podemos pensar em Sousândrade, Kilkerry, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, seus antepassados espirituais.

Fábulas líricas

Violeta de Sofia, a terceira plaquete de Adriana Zapparoli, publicada em 2009, é uma narrativa poética dividida em oito partes, em que a autora fabula o desencontro amoroso de dois personagens, Sofia e Angel-blue: contrariando o horizonte de expectativas do leitor, não há aqui os elementos tradicionais que compõem uma trama ficcional, como a delimitação de tempo, espaço e peripécias; toda a “ação” do poema se resume a descrições metafóricas de um universo de sensações corporais e oníricas: “... em peito de roda- / moinho, cata-vento enguia, spathula, / em declínio, em pé espadrille, omoplata / de fruta, de cana-de-açúcar”. A linguagem densa e hermética da autora, presente em quase todas as suas plaquetes (às quais devemos acrescentar Tílias e tulipas, de 2010, e Lontra corola libido, de 2012) logo tornou-se um aparente beco sem saída: como prosseguir a escrita criativa sem cair na repetição de suas primeiras conquistas? A resposta a esse difícil desafio foi Flor de lírio, sua plaquete mais recente, publicada em 2012, em que a poeta adota um novo vocabulário, incorporando a gíria e o palavrão, em formas poéticas mais concisas, próximas ao minimalismo, sem evitar metáforas como “corvo apodrecido”, “peras adolescentes”, “luciferino em vômito”, “peixes-pênis” e “nocaute relâmpago”. As metáforas relacionadas com a anatomia estão mais presentes nessa coleção de poemas, em que nos deparamos com “fístula / cílio e pecíolo / púbis...”, “entre falanges pontiagudas, a tíbia e a patela”, “vagina suas luzes / de couro” e “o canto da costela, / de uma epiderme que nunca sossega”. As cinco plaquetes de poemas de Adriana Zapparoli podem ser entendidas como cadernos de íntimas obsessões, em que a autora, seguindo o conselho de Vicente Huidobro, intentou criar o seu território poético, com fauna e flora próprias. O fruto mais maduro de sua literatura, no entanto, é o livro O leão de Nemeia, publicado em 2011 na coleção Caixa Preta, da Lumme Editor. Neste livro, vamos encontrar poemas em prosa admiráveis, em que a poeta, baseada na lógica da metamorfose, cria uma série um bestas fantasiosas, que recordam os delírios da teratologia de Lautréamont, como o “escorpião de olhos tangerina”, o “leopardo rubi”, a andarilha de “olhos lagartos”, uma quimera com “cabeça de leão / em corpo de cabra / e cauda ofídica”. O erotismo, já manifesto em seus primeiros títulos, ganha aqui contornos ainda mais expressivos: “d’Ele sentia o movimento sinuoso do corpo. continha. aquela uma lontrafagia poética de peixe-anfíbio, reptílica ave em ética lírica. seus sistemas de galerias, suas entradas de zonas rochosas, suas entranhas, umas subaquáticas e outras ao nível do solo”. A riqueza imaginativa e semântica da poesia de Adriana Zapparoli situa a autora entre as vozes mais inventivas que surgiram na poesia brasileira nos últimos anos.

(Artigo publicado na edição de outubro/2013 da revista CULT, na coluna Retrato do Artista)