terça-feira, 27 de agosto de 2013

MÉDICOS CUBANOS: AVANÇA A INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA


“O que brilha com luz própria , ninguém pode apagar. Seu brilho pode alcançar a escuridão de outras costas.” Canción por La Unidad Latinoamericana (Pablo Milanez)

Não faltaram emoção, lágrimas e dignidade na chegada dos 176 médicos cubanos, que desembarcaram neste sábado à noite em Brasília, para um trabalho indispensável em municípios brasileiros, mais de 700, ainda sem qualquer assistência médica.

Quando aqueles cidadãos cubanos, muitos deles negros, muitas mulheres, com bandeirolas brasileiras e cubanas nas mãos, pisaram  o solo brasileiro,  ali estava o retrato do enorme progresso social, educacional e sanitário alcançado pela Revolução Cubana. Mas, também, uma prova concreta de que a integração da América Latina está avançando; não é só comércio, é também  saúde. 

O Brasil coopera com Cuba na construção do Complexo Portuário de Mariel  -   sua  mais importante obra de infraestrutura  atualmente  - e Cuba coopera com o Brasil preenchendo uma lacuna imensa: a falta de médicos.

A campanha conservadora contra a integração latino-americana sofrerá um revés tremendo quando o programa Mais Médicos ,  começar a apresentar seus efeitos concretos. Esses resultados terão a força para revelar o teor medieval  das críticas feitas pelas representações médicas e pela mídia teleguiada pela publicidade da indústria farmacêutica.

Volumosa desinformação

Tendo em vista o volume de desinformação que circulou contra a vinda de médicos estrangeiros,  mas contra os médicos cubanos em especial, é obrigatório travar a batalha das ideias, primeiramente, em defesa da Revolução Cubana como uma conquista de toda a humanidade. 

Cercada, sabotada, agredida, a Revolução Cubana,  que antes de 1959,  possuía os mais tenebrosos indicadores sociais,  analfabetismo massivo, mortalidade infantil indecente, desemprego e atraso social generalizado, consegue libertar-se da condição de colônia, e, mesmo sem ter uma base industrial como a brasileira, por exemplo,  e passa a exportar médicos, professores, vacinas, desportistas. Exporta, principalmente, exemplos!

Esse salto histórico da Revolução Cubana deixa desconcertada a crítica, seja  emanada pela mídia colonizada  pelas lucrativas transnacionais fabricantes de fármacos ou equipamentos hospitalares, seja a crítica oligarquia difundida pelas representações médicas. Os que questionam a qualidade da formação profissional dos médicos cubanos são desafiados a responder por que a mortalidade infantil em Cuba é das mais baixas do mundo, sendo inferior, inclusive, àquela registrada no Estado de Washington, nos EUA?

Cuba e a libertação africana

Vale lembrar que Cuba possuía, antes de 1959, pouco mais de 6 mil médicos, dos quais, a metade deixou o país porque não queria perder privilégios, nem concordava com a socialização da saúde. Apenas cinco décadas depois, é esta mesma Cuba que tem capacidade de exportar milhares de médicos para socorrer o povo brasileiro de uma indigência   grave construída por um sistema de saúde ainda determinado pelos poderosos interesses das indústrias hospitalar, farmacêutica e de equipamentos, privilegiando a noção de uma medicina como um negócio, uma atividade empresarial a mais, não como um direito, como determina nossa constituição.

Já em 1963, quando a Revolução na Argélia precisou, iniciou-se a prática de cubana de enviar brigadas médicos aos povos irmãos. Ensanguentada pela herança da dominação francesa, a Revolução Argelina encontrou em Cuba a fraternidade concreta, quando ainda não havia na Ilha um contingente médico tão numeroso como o existente atualmente. Predominou sempre na Revolução Cubana a ideia de que em matéria de solidariedade internacional comparte-se o que se  tem, não o que lhe sobra. Foi exatamente ali na Argélia que se estabeleceram laços indestrutíveis entre a  Revolução Cubana e os diversos movimentos de libertação da África. A partir daí, Cuba participou com  brigadas militares e médicas em diversos processos de libertação nacional do continente. De tal sorte que, em 1966, a primeira campanha de vacinação contra a poliomielite realizada no Congo, foi organizada por médicos cubanos! 

Os CRMs não sabem que a poliomielite foi erradicada em Cuba décadas antes de ser erradicada no Brasil?

Será  o Revalida capaz de avaliar a dimensão libertadora da medicina cubana?

Quando Angola foi invadida por tropas do exército racista da África do Sul, baseado nas supremas leis do internacionalismo proletário, Agostinho Neto, presidente angolano, também médico e poeta, solicita a Fidel Castro ajuda militar para garantir a soberania da nação africana. Uma das mais monumentais obras de solidariedade foi realizada por Cuba que, ao todo, enviou a Angola, cerca de 400 mil homens e mulheres para, ao lado dos angolanos e namíbios, expulsar as tropas imperialistas sul-africanas tanto de Angola como da Namíbia. E sob a ameaça de uma bomba atômica, que Israel ofereceu à  África do Sul, argumentando que as tropas cubanas tinham que ser dizimadas porque pretendiam chegar até Pretória... 

Na heroica Batalha de Cuito Cuanavale  -  que todos os jornalistas, historiadores, militantes deveriam conhecer a fundo   -   lá estavam as tropas cubanas, mas lá estavam também as brigadas médicas de Cuba, que se espalharam por várias pontos de Angola. A vitória de Angola e da Namíbia contra a invasão da África do Sul,  foi também a derrota do regime do Apartheid. Citemos Mandela: “ A Batalha de Cuito Cuanavale foi o começo do fim do Apartheid.  Devemos o fim do Apartheid a Cuba!”. 

Qual exame Revalida será capaz de dimensionar adequadamente o desempenho de um médico cubano em Cuito Cuanavale, com sua maleta de instrumentos numa das mãos e na outra uma metralhadora, livrando a humanidade da crueldade do Apartheid?  Como dimensionar o bem que o fim do Apartheid, com a decisiva participação cubana, proporcionou  para a saúde social da História da Humanidade?

As crianças de Chernobyl em Cuba

O sentido de solidariedade internacionalista está tão plasmado na sociedade cubana que, quando aquele terrível acidente ocorreu na Usina Nuclear de Chernobyl, em 1986,   o estado cubano recebeu, das organizações dos Pioneiros  -   que congregam crianças e adolescentes cubanos  -   a proposta de oferecer tratamento médico às crianças contaminadas pela radioatividade vazada no desastre. Um documentário realizado pelo extinto Programa Estação Ciência, dirigido pelo jornalista Hélio Doyle, exibido com frequência TV Cidade Livre de Brasília, registra como Cuba compartilhou seus recursos médicos e hospitalares, mas, sobretudo, sua fraterna solidariedade com cerca de 3 mil crianças russas que foram levadas para tratamento na Ilha, nas instalações dos Pioneiros, em Tarará.  Destaque-se, primeiramente, que a ideia partiu dos Pioneiros. Segundo, que Cuba não se colocava na condição de doadora, mas apenas cumprindo um dever solidário. Lembravam que o povo soviético havia sido solidário com Cuba quando os EUA iniciaram o bloqueio contra a Ilha cortando a cota de petróleo e do açúcar, suspendendo o comércio bilateral, na década de 60. A URSS passou a comprar todo o açúcar cubano, pelo dobro do preço do mercado internacional, e a abastecer Cuba de petróleo, pela metade do preço de mercado mundial. São páginas escritas, em uma outra lógica, solidária, fraterna, socialista. É de se imaginar o quanto os dirigentes das representações médicas brasileiras poderiam aprender com aquelas crianças cubanas que ofertaram tratamento às 3 mil crianças russas, um contingente menor que o de médicos cubanos que virão para o Brasil?

Impublicável

A cooperação entre Brasil e Cuba em matéria de saúde não está iniciando-se agora. Durante o governo Sarney, recém re-estabelecidas as relações bilaterais, em 1986,  foram as vacinas cubanas contra a meningite que permitiram ao  nosso país enfrentar aquele surto. Na época, a mídia teleguiada também fez uma sórdida campanha contra o governo Sarney, primeiro por reatar as relações, mas também por comprar grandes lotes da vacina desenvolvida pela avançada ciência de Cuba.  De modo venenoso, tentou-se desqualificar as vacinas, afirmando serem de qualidade duvidosa, tal como agora atacam a medicina cubana.  Na época, foram as vacinas cubanas que permitiram controlar aquele surto e salvar vidas. Mas, também trouxeram, por meio do exemplo, a possibilidade de que aprendêssemos um pouco dos valores e das conquistas de uma revolução. Afinal, por que um país com poucos recursos, com uma base industrial muito mais reduzida, conseguia não apenas elevar vertiginosamente o padrão de saúde de seu povo, mas, também desenvolver uma tecnologia com capacidade para  produzir e exportar vacinas, enquanto o Brasil, com uma indústria muito mais expandida, capaz de produzir carros, navios e aviões,  não tinha capacidade para defender seu próprio povo de um surto de meningite? São sagradas as prioridades de uma revolução. E é por isso, que, ainda hoje, a sexta maior economia do mundo,  se vê na obrigação de recorrer a Cuba para  não permitir a continuidade de um crime social configurado na não prestação de  atendimento médico a milhões de brasileiros.

Mais recentemente, quando a Organização Mundial da Saúde convocou a indústria farmacêutica internacional a produzir vacinas para combater um tenebroso surto de febre amarela  que se espalhou pela África, obteve como resposta desta indústria o mais sonoro e insensível NÃO. Os preços que a OMS podia pagar pelas vacinas não eram, segundo as transnacionais farmacêuticas, apetitosos.  Milhões de vidas africanas passaram correr risco, não fosse a cooperação entre dois laboratórios estatais, o Instituto Bio Manguinhos, brasileiro, e o  Instituto Finley, cubano. Essa cooperação permitiu a produção, até o momento, de 19 milhões de doses da vacina que a África necessitava, a um preço 90 por cento menor que o preço do mercado internacional. 

Onde foi publicada esta informação? Apenas na Telesur e na imprensa cubana. A ditadura dos anúncios da indústria farmacêutica, que dita a linha editorial da mídia  brasileira em relação ao programa Mais Médicos e à cooperação da Medicina de Cuba, simplesmente impediu que o grande público brasileiro tomasse conhecimento desta importantíssima cooperação estatal brasileiro-cubana.

Os médicos cubanos e o furacão Katrina

Para dimensionar a inqualificável onda de insultos que os médicos cubanos vêm recebendo aqui na mídia oligárquica, lembremos um fato também sonegado por esta mesma mídia, o que revela suas dificuldades monumentais para o exercício do jornalismo como missão pública. Quando ocorre o trágico furacão Katrina, que devasta Nova Orleans, deixando uma população negra e pobre ao abandono, dada a incapacidade e o desinteresse do governo dos EUA naquela oportunidade, em prestar-lhe socorro,  também foi Cuba que colocou  à disposição  do governo estadunidense   -   malgrado toda a hostilidade ilegal deste para com a Ilha   -   um contingente de 1300  médicos ,  postados no Aeroporto de Havana, com capacidade de chegar prestar ajuda à população afetada pelo furacão. Aguardavam apenas autorização para o embarque, e  em questão de 3 horas de voo estariam em Nova Orleans salvando vidas. Esta autorização nunca chegou da Casa Branca.  A resposta animalesca do presidente George Bush foi um sonoro NÃO  à oferta de Cuba, o que tampouco foi divulgado pela mídia oligárquica, provavelmente para protegê-lo do vexame de ver difundido seu tosco caráter,  que tal recusa representava. Os EUA estão sempre prontos para enviar militares e mercenários pelo mundo. Mas, são incapazes de prestar ajuda ao seu próprio povo, e também arrogantes o suficiente para permitir uma ajuda de Cuba à população pobre e negra afetada pelo furacão.

Uma Escola de Medicina para outros povos

Também não circulam informações aqui de que Cuba, após o furacão Mity, que devastou a America Central e parte do Caribe, decide montar uma Escola Latino-americana de Medicina, que, em pouco mais de 10 anos de funcionamento, já formou mais de 10 mil médicos estrangeiros, gratuitamente. Entre eles,  500 jovens negros e pobres dos EUA, moradores dos bairros do Harlem e do Brooklin. Eles me revelaram que se tivessem continuado a viver ali, eram fortes candidatos a serem presa fácil do narcotráfico. Frisavam que, estar ali em Cuba, formando-se em medicina, gratuitamente, era uma possibilidade que a maior potência capitalista do mundo não lhes oferecia. Há,  estudando na ELAM, cerca de uma centena de jovens do MST, filhos de assentados da reforma agrária.  Isto significa que Cuba compartilha com vários países do mundo seus modestos recursos. Também estudam lá cerca de 600 jovens do Timor Leste, sendo que existem 40 médicos cubanos trabalhando já agora no Timor. O tipo de exame Revalida seria capaz de dimensionar esta solidariedade cubana com a saúde dos povos?

Ampliar a integração em outras áreas

Também não se divulgou por aqui,  que Cuba montou três Faculdades de Medicina na África, (Eritreia, Gambia e Guiné Equatorial),  em pleno funcionamento, com professores cubanos. Toda esta campanha de insultos contra Cuba e os médicos cubanos, abre uma boa possibilidade para discutir e conhecer  mais a fundo todas estas conquistas da Revolução Cubana, mas, especialmente, para que as forcas progressistas  reflitam sobre quantas outras possibilidades de cooperação existem entre Brasil e Cuba, em muitas outras áreas. 

Mas, serve também para reavaliar a posição de certos parlamentares médicos da esquerda no Brasil que se opõe,  inexplicavelmente, ao Programa Mais Médicos, alguns chegando, ao  absurdo de terem apresentado  projetos de lei proibindo, pelo prazo de 10 anos, a abertura de qualquer novo curso de medicina no Brasil.

Qualificar o debate sobre a integração

Enfim, um debate democrático e qualificado em torno do programa Mais Médicos, da presença de médicos cubanos aqui no Brasil e em mais de 70 países, e também, sobre as conquistas da Revolução Cubana, deve ser organizado pelos partidos e sindicatos, pelo movimento estudantil, pelos movimentos sociais, pela Solidariedade a Cuba, pelas TVs e rádios comunitárias, como forma de impulsionar a integração da America Latina, que, neste episódio, está demonstrando o quanto pode ser útil à população mais pobre. A TV Brasil pode cumprir uma função muito útil, pode divulgar documentários já existentes sobre o trabalho de médicos em regiões inóspitas e adversas em diversos países.

 É preciso expandir esta integração, avançar pela educação, pela informação, não havendo justificativas para que o Brasil ainda  não esteja conectado com a Telesur, por exemplo, que divulgado amplo material jornalístico informando que 3 milhões e meio de cidadãos latino-americanos já foram salvos da cegueira graças a Operação Milagro,  pela qual médicos cubanos e venezuelanos realizam, gratuitamente, cirurgias de cataratas em vários países da região. Enquanto o povo argentino, por exemplo, já  pode sintonizar gratuitamente a Telesur e informar-se de tudo isto, o povo brasileiro está impedido, praticamente, de receber informações que revelam o andamento da integração da America Latina. Mas, com a chegada dos médicos cubanos, a integração será cada vez mais pauta da agenda do debate político nacional e  receberá , certamente,  um impulso político e social, notável, pois o povo brasileiro, saberá , com nobreza e humanismo, valorizar e apoiar o programa Mais Médicos. Alias, é exatamente  isto o que tanto apavora a medicina capitalista.

Há 70 mil engenheiros estrangeiros no Brasil hoje!

Segundo dados recentes do Ministério do Trabalho, existem hoje trabalhando no Brasil cerca de 70 mil engenheiros estrangeiros. Nenhuma gritaria foi feita. Neste caso, trata-se de petróleo e outros projetos, muito lucrativos para as multinacionais. Mas, quando se trata de salvar vidas, acendem-se todas as fogueiras do inferno da nova inquisição contra uma cooperação que é lógica e indispensável, solidária e humanitária. Por que é aceitável  a importação de telefones, equipamentos médicos, remédios, cosméticos, roupas, caviar, bebidas, vacinas e não se aceita a cooperação de médicos de Cuba, sendo este o único pais  em condições  objetivas  de apresentar-se prontamente e de maneira eficaz com profissionais experimentados.  Será que as representações médicas brasileiras possuem sequer uma remota ideia de que estão proferindo insultos a esta bela história da medicina  socialista de Cuba?

Quem pagará a conta da demora?

A presidenta Dilma tem inteira razão em convocar os Médicos Cubanos, algo que já poderia ter sido feito há mais tempo, amenizando a dor e o sofrimento de milhões de brasileiros abandonados por um sistema de saúde e por uma mentalidade de parcelas das representações médicas que, por mais absurdo que pareça, ainda tentam justificar este abandono. Aliás, com a determinação da presidenta Dilma está absolutamente revelada a importância da integração da América Latina, não havendo justificativas para que esta modalidade de integração nas esferas sociais,  não avance também para outras áreas, como a educação, por exemplo. 

Foi exatamente com o método cubano denominado “Yo, si, puedo”,  que Venezuela, Bolívia, Equador são países declarados pela UNESCO como “Territórios Livres do Analfabetismo”, sempre com a participação direta de professores cubanos. 

Muito em breve, será a Nicarágua, que vai recuperar aquele galardão, que já havia conquistado durante a Revolução Sandinista, mas depois perdeu,  na era neoliberal.  

Por quanto tempo o Brasil terá apenas projetos pilotos, em apenas 3 cidades, com o método de alfabetização cubano, que, aliás, já tem absoluta comprovação e reconhecimento mundiais?  Que espera a sexta economia do mundo em  convocar ainda mais a cooperação cubana para erradicar o analfabetismo? Quem pagará a conta desta injustificável demora?

Termino com a declaração da Dra. Milagro Cárdenas Lopes,  cubana, negra, 61 anos “Somos médicos por vocação, não nos interessa um salário, fazemos por amor”, afirmou.  Em seguida, dirigiu-se com seus companheiros para os ônibus organizados pelo Exército Brasileiro, que cuida de seu alojamento. Sinal de que a integração está escrevendo uma nova página na história da América Latina.



domingo, 25 de agosto de 2013

POEMAS DE ARTURO GAMERO


na altitude de um calor sem
espessura tocando nas palavras
cheias e vazias com a solidão dos
sinos espancados, das poças
aquecidas pelo tempo, das mãos
calosas pelo frio artesanal.


* * *


O ar terroso e as manchas do
verão tocam a escrita lenta das
flores,
é a minha respiração que pela
boca da noite se cantava muito
baixo e onde se
teciam
com a fascinação de um rio
canções esgueiradas,
rostos.


* * *


As unhas crescendo na parede
das casas, os pássaros saindo
pela boca com o sexo das
sombras tocando
na vidraça,
a urina nas cadeiras
penduradas pelo entardecer.


* * *


Eu toco a página do livro com a
mão e a aridez do pensamento
dobrando seus espelhos
é o barulho do ar
batendo nas palavras.



* * *


A palavra escava a madeira, entra
na água, relâmpago enterrado no
ar castanho, palmas esculpidas,
banho de osso e lentamente extrai
a dádiva dos seios macilentos, ímã
dos fogos assimétricos. Vozes mer-
gulhadas mansamente no amarelo.



(Poemas do livro FAVOS. Bauru: Lumme Editor, 2013) 

BRASILEIROS FORMADOS EM CUBA DESTACAM ROMPIMENTO COM A "DITADURA DO DINHEIRO"



Brasileiros formados em Cuba: Saúde “rompe com ditadura do dinheiro”. Andreia Campigotto trabalha em Cajazeiras, no sertão paraibano (Foto: MST)


Médicos brasileiros formados em Cuba destacam as diferenças nos métodos de formação utilizados na área da saúde brasileira e cubana

“Medicina cubana ensina a atender o povo com qualidade e humanismo”

A saúde no Brasil tem sido tema de grandes debates nas últimas semanas, provocados tanto pelas manifestações das ruas, que exigem melhoras e mais investimentos na área, quanto pelas propostas recentes do governo em trazer médicos de outros países para trabalhar em regiões mais carentes.


Essas propostas, assim como a obrigação dos estudantes de universidades públicas em cumprir dois anos no Sistema Único de Saúde (SUS), tem sido alvo de fortes críticas das associações de médicos, que afirmam que essas não seriam as soluções para os problemas.

A Página do MST conversou com Augusto César e Andreia Campigotto, ambos formados em medicina em Cuba, sobre o tema.

Nascido em Chapecó e com 25 anos de vida, Augusto César ainda não exerce a profissão. Está estudando para fazer a prova de revalidação do diploma cubano e, assim, poder atuar no Brasil. Quando conseguir seu registro, pretende trabalhar na área rural, atendendo os Sem Terra e os assentados da Reforma Agrária.

Andreia Campigotto tem 28 anos e nasceu em Nova Ronda Alta (RS). Trabalha em Cajazeiras, no sertão paraibano, como residente em medicina da família em uma unidade básica de saúde, que atende uma comunidade de 4 mil pessoas.

Formato

O curso de medicina cubano dura seis anos. Para estudantes de outros países, ele se inicia na Escola Latinoamericana de Medicina, localizada em Havana. Depois de um período inicial de dois anos, os estudantes são enviados para as diversas universidades do país. Augusto e Andreia foram para a universidade da província de Camagüey.


O curso de medicina cubano não se difere muito do brasileiro, do ponto de vista curricular.

“Os dois primeiros anos trabalham com as ciências médicas. Estudamos fisiologia humana, anatomia humana e desde o primeiro ano temos contato com os postos de saúde. Quando somos distribuídos para as universidades, vivenciamos o sistema público de saúde. Comparado com o Brasil, o nível teórico é igual, mas o nível de prática é maior”, afirma Augusto.

“Um estudo do governo federal mostra a compatibilidade curricular dos cursos de medicina de 90% entre Brasil e Cuba. Então, não há grandes diferenças teóricas”, conta Andreia.

A diferença principal entre os dois cursos está na concepção de medicina e de saúde na formação dos médicos. “O curso brasileiro é voltado para as altas especialidades. Tem essa lógica de que você faz medicina, entra numa residência e se especializa. Já em Cuba o curso se volta à atenção primária de saúde, para entendermos a lógica de prevenção das doenças e o tratamento das enfermidades que as comunidades possam vir a ter”, diz Augusto.

Em contrapartida, “saúde” e “medicina” no Brasil são sinônimos de pedidos de exames e tratamento com diversos medicamentos, calcados em sua maioria na alta tecnologia. Com isso, a medicina preventiva fica em segundo plano, alimentando uma indústria baseada na exigência destes procedimentos.

“No Brasil, temos uma limitação na formação do profissional, pois ela é voltada ao modelo hospitalacêntrico, que pensa só na doença e no tratamento. Em Cuba isso já foi superado. Lá eles formam profissionais para tratar e cuidar com qualidade, humanismo e amor cada paciente; aprendemos de verdade a lidar com a saúde do ser humano”, analisa Andreia.

Ela destaca que os médicos formados na ilha são capazes de atender a população sem utilizar somente a alta tecnologia, condição que não necessariamente limita um atendimento com qualidade à população que mais carece.

“É mais barato fazer promoção e prevenção de saúde. No entanto, isso rompe com a ditadura do dinheiro. Com isso, os médicos aguardam o paciente ficar doente para pedir um monte de exames e dar um monte de medicamentos”, afirma Augusto

De acordo com ele, essa estrutura fortalece o complexo médico-industrial, que se favorece sempre que há alguém internado ou que precise tomar algum medicamento.

“Não negamos a necessidade de medicamentos e equipamentos, porque precisamos dar atenção a esse tipo de paciente. Mas não precisamos esperar que todas as pessoas fiquem doentes para começar a trabalhar a questão da saúde”, acredita Augusto.

José Coutinho Júnior, Página do MST


DEZ INFORMAÇÕES SOBRE A SAÚDE E A MEDICINA EM CUBA




Um dos principais argumentos da reação irada de entidades médicas brasileiras contra a vinda de médicos cubanos para o país consiste em questionar a qualidade e a competência dos profissionais cubanos. O presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto D’Ávila, chegou a dizer que “os cubanos poderão causar um genocídio” no Brasil. Os primeiros 400 médicos cubanos chegam ao Brasil neste fim de semana, em um convênio com a Organização Panamericana de Saúde (Opas). Uma das maneiras de aferir essa qualidade é levar em conta a realidade da saúde e da medicina em Cuba. Eis aqui dez indicadores e informações sobre a saúde cubana para a população brasileira avaliar (os dados são do governo cubano e da Organização Mundial da Saúde):


(1) Em Cuba, há 25 faculdades de medicina (todas públicas), e uma Escola Latino-Americana de Medicina, na qual estudam estrangeiros de 113 países, inclusive do Brasil . (Estudaram em Cuba e lá se formaram, entre outros, dois filhos de Paulo de Argollo Mendes, presidente há 15 anos do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul e critico ferrenho do programa Mais Médicos).


(2) Em 2012, Cuba formou 11 mil novos médicos. Deste total, 5.315 são cubanos e 5.694 vêm de 59 países principalmente da América Latina, África e Ásia. Desde a Revolução Cubana em 1959, foram formados cerca de 109 mil médicos no país. O país tem 161 hospitais e 452 clínicas para pouco mais de 11, 2 milhões de habitantes.


(3) A duração do curso de medicina em Cuba, como no Brasil, é seis anos em período integral. Depois, há um período de especialização que varia entre três e quatro anos. Pelas regras do sistema educacional cubano, só entram no curso de medicina os alunos que obtêm as notas mais altas ao longo do ensino secundário e em um concurso seletivo especial.


(4) Estudantes de medicina cubanos passam o sexto ano do curso em um período de internato, conhecendo as principais áreas de um hospital geral. A sua formação geral é voltada para a área da saúde da família, com conhecimento em pediatria, pequenas cirurgias, ginecologia e obstetrícia.


(5) Em Cuba há hoje 6,4 médicos para mil habitantes. No Brasil, esse índice é de 1,8 médico para mil habitantes. Na Argentina, a proporção é 3,2 médicos para mil habitantes. Em países como Espanha e Portugal, essa relação é de 4 médicos para cada mil habitantes.


(6) A taxa de mortalidade em Cuba é de 4,6 para mil crianças nascidas, e a expectativa de vida é de 77,9 anos (dados de janeiro de 2013). No Brasil, a taxa de mortalidade é de 15,6 para mil bebês nascidos (IBGE/2010).


(7) Em 1998, depois que o furacão Mitch atingiu a América Central e o Caribe, Fidel Castro decidiu criar a Escola Latino-Americana de Medicina de Havana (Elam) com o objetivo  de formar em Cuba médicos para trabalhar em países chamados subdesenvolvidos. A Organização Mundial da Saúde definiu assim o trabalho da Elam: “A Escola Latino-Americana de Medicina acolhe jovens entusiasmados dos países em desenvolvimento, que retornam para casa como médicos formados. É uma questão de promover a equidade sanitária. A Elam assumiu a premissa da “responsabilidade social”.


(8) Em 20 anos, médicos cubanos atenderam a mais de 25 mil afetados pela explosão em Chernobyl, incluindo muitas crianças órfãs. Desde o início do programa, em 1990, foram atendidos mais de 25.400 pacientes, a maioria deles crianças. 70% dos menores que receberam tratamento na localidade cubana de Tarará perderam seus pais e chegaram a Cuba com enfermidades oncológicas e hematológicas provocadas pela exposição à radiação (ver vídeo abaixo).


(9) Segundo a New England Journal of Medicine, uma das importantes revistas médicas do mundo, o sistema de saúde cubano parece irreal. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito. Apesar de dispor de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o dos EUA não conseguiu resolver ainda.


(10) Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Cuba é o único país da América Latina que se encontra entre as dez primeiras nações do mundo com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano em expectativa de vida e educação durante a última década.


Certamente o sistema de saúde cubano não é o paraíso na Terra e seus profissionais não são os melhores do mundo. No entanto, os indicadores e informações acima citados parecem credenciá-los para desenvolver um importante trabalho de medicina comunitária e medicina da família em comunidades pobres brasileiras que têm grande dificuldade de acesso a serviços de saúde. Os profissionais cubanos têm especialização e tradição de trabalhar justamente nesta área. E não representam nenhuma concorrência para profissionais brasileiros nesta área. Virá daí um genocídio???


sábado, 24 de agosto de 2013

A HORA DA AÇÃO POLÍTICA



Luís Inácio Lula da Silva

A lenta retomada da economia global e os seus enormes custos sociais, especialmente nos países desenvolvidos exigem uma corajosa mudança de atitude. É preciso identificar com clareza a raiz da crise de 2008, que em muitos aspectos se prolonga até hoje, para que os líderes políticos e os órgãos multilaterais façam o que deve ser feito para superá-la. A verdade é que, no dia 15 de setembro de 2008, quando o banco Lehman Brothers pediu concordata, o mundo não se viu apenas mergulhado na maior crise financeira desde a quebra da Bolsa de Nova York em 1929. Viu-se também diante da crise de um paradigma. Outros grandes bancos especuladores nos Estados Unidos e na Europa só não tiveram o mesmo destino porque foram socorridos com gigantescas injeções de dinheiro público. Ficou evidente que a crise não era localizada, mas sistêmica.

O fracasso não era somente desta ou daquela instituição financeira, mas do próprio modelo econômico (e político) predominante nas décadas recentes. Um modelo baseado na ideia insensata de que o mercado não precisa estar subordinado a regras, de que qualquer fiscalização o prejudica e de que os governos não tem nenhum papel na economia, a não ser quando o mercado entra em crise. Segundo este paradigma, os governos deveriam transferir a sua autoridade democrática, oriunda do voto – ou seja, a sua responsabilidade moral e política perante os cidadãos – a técnicos e organismos cujo principal objetivo era o de facilitar o livre trânsito dos capitais especulativos. Cinco anos de crise, com gravíssimo impacto econômico e sofrimento popular, não bastaram para que esse modelo fosse repensado. Infelizmente, muitos países ainda não conseguiram romper com os dogmas que levaram ao descolamento entre a economia real e o dinheiro fictício, e ao círculo vicioso do baixo crescimento combinado com alto desemprego e concentração de renda nas mãos de poucos.

O mercado financeiro expandiu-se de modo vertiginoso sem a simultânea sustentação do crescimento das atividades produtivas. Entre 1980 e 2006, o PIB mundial cresceu 314%, enquanto a riqueza financeira aumentou 1.291%, segundo dados do McKinseys Global Institute e do FMI. Isso, sem incluir os derivativos. E, de acordo com o Banco Mundial, no mesmo período, para um total de US$ 200 trilhões em ativos financeiros não derivados, existiam US$ 674 trilhões em derivativos. Todos sabemos que os períodos de maior progresso econômico, social e político dos países ricos durante o século XX não tem nada a ver com a omissão do Estado nem com a atrofia da política. A decisão política de Franklin Roosevelt, de intervir fortemente na economia norte-americana devastada pela crise de 1929, recuperou o país justamente por meio da regulação financeira, o investimento produtivo, a criação de empregos e o consumo interno.

O Plano Marshall, financiado pelo governo norte-americano na Europa, além de sua motivação geopolítica, foi o reconhecimento de que os EUA não eram uma ilha e não poderiam prosperar de modo consistente num mundo empobrecido. Por mais de trinta anos, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o Welfare State foi não apenas o resultado do desenvolvimento mas também o seu motor. Nas últimas décadas, porém, o extremismo neoliberal provocou um forte retrocesso. Basta dizer que, de 2002 a 2007, 65% do aumento de renda dos EUA foram absorvidos pelos 1% mais ricos. Em quase todos os países desenvolvidos há um crescente número de pobres. A Europa já atingiu taxas de desemprego de 12,1% e os EUA, no seu pior momento, de mais de 10%. O brutal ajuste imposto à maioria dos países europeus – que já foi chamado de austericidio – retarda desnecessariamente a solução da crise. O continente vai precisar de um crescimento vigoroso para recuperar as dramáticas perdas dos últimos cinco anos. Alguns países da região parecem estar saindo da recessão, mas a retomada será muito mais lenta e dolorosa se forem mantidas as atuais políticas contracionistas. Além de sacrificar a população europeia, esse caminho prejudica inclusive as economias que souberam resistir criativamente ao crack de 2008, como os EUA, os BRICS e grande parte dos países em desenvolvimento.

O mundo não precisa e não deve continuar nesse rumo, que tem um grande custo humano e risco político. A redução drástica de direitos trabalhistas e sociais, o arrocho salarial e os elevados níveis de desemprego criam um ambiente perigosamente instável em sociedades democráticas. Está na hora de resgatar o papel da política na condução da economia global. Insistir no paradigma econômico fracassado também é uma opção política, a de transferir a conta da especulação para os pobres, os trabalhadores e a classe média. A crise atual pode ter uma saída economicamente mais rápida e socialmente mais justa. Mas isso exige dos líderes políticos a mesma audácia e visão de futuro que prevaleceu na década de 1930, no New Deal, e após a II Guerra Mundial. É importante que os EUA de Obama e o Japão de Shinzo Abe estejam adotando medidas heterodoxas de estímulo ao crescimento. Também é importante que muitos países em desenvolvimento tenham investido, e sigam investindo, na distribuição de renda como estratégia de avanço econômico, apostando na inclusão social e na ampliação do mercado interno.

O aumento de renda das classes populares e a expansão responsável do crédito mantiveram empregos e neutralizaram parte dos efeitos da crise internacional no Brasil e na América Latina. Investimentos públicos na modernização da infraestrutura também foram fundamentais para manter as economias aquecidas. Mas para promover o crescimento sustentado da economia mundial isso não é suficiente. É preciso ir além. Necessitamos hoje de um verdadeiro pacto global pelo desenvolvimento, e de ações coordenadas nesse sentido, que envolvam o conjunto dos países, inclusive os da Europa. Políticas articuladas em escala mundial que incrementem o investimento público e privado, o combate à pobreza e à desigualdade e a geração de empregos podem acelerar a retomada do crescimento , fazendo a roda da economia mundial girar mais rapidamente. Elas podem garantir não só o crescimento, mas também bons resultados fiscais, pois a aceleração do crescimento leva à redução do déficit público no médio prazo. Para isso, é imprescindível a coordenação entre as principais economias do mundo, com iniciativas mais ousadas do G-20. Todos os países serão beneficiados com essa atuação conjunta, aumentando a corrente de comércio internacional e evitando recaídas protecionistas. A economia do mundo tem uma larga avenida de crescimento a ser explorada: de um lado pela inclusão de milhões de pessoas na economia formal e no mercado de consumo – na Ásia, na África e na América Latina – e de outro com a recuperação do poder aquisitivo e das condições de vida dos trabalhadores e da classe média nos países desenvolvidos. Isso pode constituir uma fonte de expansão para a produção e o investimentos mundiais por muitas décadas.

(Artigo publicado no New York Times)

POEMAS DE CÉSAR VALLEJO


EPÍSTOLA AOS TRANSEUNTE

Recomeço meu dia de coelho,
minha noite de elefante em repouso.
E, para mim, digo:
esta é minha imensidade em bruto, a cântaros,
este meu grato peso, que me buscara abaixo para pássaro;
este é meu braço
que por sua conta recusou ser asa,
estas são minhas sagradas escrituras,
estes meus alarmados testículos.
Lúgubre ilha me iluminará continental
enquanto o capitólio se apóie em minha íntima derrocada
e a assembléia em lanças clausure meu desfile.
Porém quando eu morrer
de vida e não de tempo
quando forem duas minhas duas maletas,
este há de ser meu estômago em que coube minha lâmpada
em pedaços,
esta aquela cabeça que expiou os tormentos do círculo
em meus passos,
estes esses vermes que o coração contou por unidades,
este há de ser meu corpo solidário
pelo qual vela a alma individual; este há de ser
meu umbigo em que matei meus piolhos natos,
esta minha coisa coisa, minha coisa tremebunda.
Enquanto isso, convulsiva, asperamente,
convalesce meu freio,
sofrendo como sofro da linguagem direta do leão;
e, posto que existi entre duas potestades de tijolo,
convalesço eu mesmo, sorrindo de meus lábios.

Tradução: José Arnaldo Villar


TRILCE, LX

É de madeira minha paciência,
surda, vegetal.

Dia que tens sido puro, infantil, inútil
que nasceste nu, as léguas
de tua marcha, vão correndo sobre
tuas doze extremidades, esse vinco cenhoso
que depois desfia-se
em não se sabe que últimas fraldas.

Constelado de hemisférios de grumo,
sob eternas américas inéditas, tua grande plumagem,
te partes e me deixas, sem tua emoção ambígua,
sem teu nó de sonhos, domingo.

E se rói minha paciência,
e eu volto a exclamar: Quando virá
o domingo falastrão e mudo do sepulcro;
quando virá levar este sábado
de farrapos, esta horrível sutura
do prazer que nos engendra sem querer,
e o prazer que nos DesteRRA!


Tradução: Claudio Daniel



DE PURO CALOR TENHO FRIO

De puro calor tenho frio
irmã Inveja!
Leões lambem minha sombra
e o rato me morde o nome,
mãe alma minha
À beira do fundo vou,
cunhado Vício!
A lagarta tange sua voz,
e a voz tange sua lagarta,
pai corpo meu!
Está de frente meu amor,
neta Pomba!
De joelhos, meu terror
e de cabeça, minha angustia,
mãe alma minha!
Até que um dia sem dois,
esposa Tumba,
meu último ferro ressoe
de uma víbora que dorme,
pai corpo meu!


ME VEM, HÁ DIAS, UMA VONTADE UBRRIMA, POLÍTICA...

Me vem, há dias, uma vontade ubérrima, política,
de querer, de beijar o carinho em seus dois rostos,
e me vem de longe um querer
demonstrativo, outro querer amar, de grau ou força,
ao que me odeia, ao que rasga seu papel, ao menino,
ao que chora pelo que chorava,
ao rei do vinho, ao escravo da água,
ao que ocultou-se em sua ira,
ao que sua, ao que passa, ao sacode sua pessoa em minha alma.
E quero, portanto, dar guarita
ao que me fala, à sua trança, aos seus cabelos, ao soldado;
Quero, pessoalmente, passar a ferro
o lenço do que não pode chorar
e, quando estou triste e me dói a sentença
remendar os enjeitados e os gênios.
Quero ajudar o bom a ser o seu pouquinho de mal
e me urge estar sentado
à direita do canhoto e responder ao mudo,
tratando de ser-lhe útil no
que posso e também quero muitíssimo
lavar os pés do coxo,
e ajudar o vesgo, meu próximo, a dormir.
Ah! querer, este meu, este, mundial,
inter-humano e paroquial, maduro!
Me vem no ponto,
desde as fundações, desde a virilha pública,
e, vindo de longe, dá vontade de beijar
o cachecol do cantor,
a frigideira do que sofre,
ao surdo em seu impávido rumor craniano;
ao que me dá o que esqueci em meu âmago,
em seu Dante, em seu Chaplin, em seus ombros.
E para terminar, quero,
quando estou à beira da célebre violência
ou pleno de peito o coração, queria
ajudar o que sorri a escarnecer,
por um passarinho bem na nuca do malvado,
Cuidar dos enfermos, enfadando-os,
comprar o vendedor,
ajudar a matar o matador - coisa terrível - 
e quisera ser bom comigo mesmo
em tudo.

 
Traduções: Antônio Moura.


MAIS GIRONDO


NOITE TÓTEM

São os transfundos outros da in extremis médium
que é a noite ao entreabrir os ossos
as mitoformas outras
aliardidas presenças semimorfas
sotopausas, sossopros
da enchagada libido possessa
que é a noite sem vendas
são os grislumbres outros atrás esmeris pálpebras videntes
os atônitos gessos do imóvel ante o refluído
ferido interogante
que é a noite já lívida
são as crivadas vozes
as suburbanas veias de ausência de remansas omoplatas
as acrinsones dragas famintas do agora com seu limo de nada
os idos passos outros da incorpórea ubíqua também outra
escavando o incerto
que pode ser a morte com sua demente muleta solitária
e é a noite
e deserta

Tradução: Claudio Daniel

  
O UNO NENS

 O UNO    total menos
plenicorrupto nens consentido pelo zero
que ao ido tempo torna com suas catervas súcubos sexuais e
sua fauna de olvido

O uno eu   subânima
ainda que insepulto intacto sob suas multicriptas com transfundos
de arcadas
que autonutre seus ecos de sumo experto em nada
enquanto cresce abismo

O uno só   em um
rês do azar que se areja ante a noite em busca de seus limites
cães
e tornassol lambido por inúmeros podres se interchaga o obscuro
de seu eu todo uno
crucipendente só de si mesmo

 Tradução: Elson Fróes


A MESCLA

Não só
o fundo fofo
os ébrios leitos limos telúricos entre faróis seios
e seus líquens
não só o solicroo
as préfugas
o impar ido
o aonde
o tato incauto só
os acordes abismos dos órgãos sacros do orgasmo
o gosto o risco em botão
ao rito negro à alba com seu espreguiçar cheio de pardais
nem tampouco o regozo
os gemidinhos só
nem o fortuito dial senão
as autosondas em pleno plexo trópico
nem as ex-elas menos nem o endédalo
senão a viva mescla
a total mescla plena
a pura impura mescla que me reduz os erotimbres a
almamassa tensa as tontas fêmeas porcas
a mescla
sim
a mescla com que aderi minhas pontes

Tradução: Elson Fróes e Claudio Daniel

  
TRANSUMOS

AS VERTENTES as órbitas tem perdido a terra os espelhos
os braços os mortos as amarras
o olvido sua máscara de tapir não vidente
o gosto o gosto o leito seus engendros o fumo cada dedo
as flutuantes paredes donde amanhece o vinho as raízes a
frente todo canto rodado
sua corola seus músculos os tecidos os vasos o desejo os sumos que
fermenta a espera
as campinas as encostas os transonhos os hóspedes
seus favos o núbil os prados as crinas a chuva as pupilas
seu fanal o destino
mas a lua intacta é um lago de seios que se banham tomados
pela mão


Tradução: Elson Fróes e Claudio Daniel


OLIVERIO GIRONDO, O POETA DO TRÁGICO PARADOXO


Claudio Daniel

Oliverio Girondo (1891-1967) foi um dos principais renovadores da poesia latino-americana do século XX, ao lado do peruano César Vallejo, do chileno Vicente Huidobro e do brasileiro Oswald de Andrade. Sua obra, que une a tradição da lírica espanhola às conquistas da vanguarda, a linguagem do homem comum à erudição do filólogo, o sentimento nacional à consciência cosmopolita, está situada na mesma zona de in­surgência do Modernismo de 1922, e sua leitura é um estímulo à descoberta de novas fronteiras para além da linguagem dita “poética”. No Brasil, no entanto, a obra de Girondo permaneceu inédita ao longo de setenta anos, um déficit que se deve, em parte, ao fato de o eixo São Paulo/Rio de Janeiro estar mais próximo de Paris e Nova York do que de Buenos Aires, Lima e Santiago. Esse isolamento cultural, apartheid entre a língua de Camões e a de Góngora, foi desafiado, no entanto, por alguns de nossos melhores poetas.

Mário de Andrade, em 1927/28, publicou, no Diário Nacional, uma série de artigos sobre literatura argentina, destacando Oliverio Girondo  e o grupo da revista Martín Fierro. Em seus artigos, Mário fez considerações sobre Veinte poemas para ser leídos en el tranvía, de Girondo, e reproduziu o poema Otro nocturno. Em 1943, Oswald de Andrade encontrou-se com seu colega argentino quando este visitava o Brasil, acompanhado por sua mulher, Norah Lange. Em Ponta de lança, Oswald cita Girondo como um dos "mosqueteiros de 22" e pondera: "Outro seria o panorama americano se conhecêssemos melhor as letras que  produzimos". Po­rém, somente a partir dos anos 70, quando Augusto e Haroldo de Campos publica­ram traduções de El puro no, Plexilio e Hay que buscarlo no nº 2 da revista Qorpo estranho que os jovens poetas brasileiros afinados com a vanguarda tomaram co­nhecimento da obra girondiana. Devemos citar também Jorge Schwartz, cujo livro Vanguarda e cosmopolitismo faz uma importante análise da obra do poeta; e Régis Bonvicino, que publicou em 1995 A pupila do zero, com a tradução na íntegra de En la masmédula, de Girondo — obra capital desse autor insólito.


Um poeta a bordo do século XX

Oliverio Girondo nasceu em 17 de agosto de 1891 em Buenos Aires. Seus pais, Juan Girondo e Josefa Uriburu, o levaram à Europa  pela primeira vez em 1900, para visitar a Exposição Universal, e nos anos seguintes o poeta fez parte de seus estudos no Liceu Louis le Grand (França) e no Epsom College (Inglaterra). De volta à terra natal, formou-se em Direito. Na juventude, Girondo leu, sobretudo, poetas franceses — Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud — e o nicaraguense Ruben Darío, que influenciou toda a moderna poesia de língua espanhola. Com um grupo de amigos, Gi­rondo criou, em 1911, a revista literária Comoedia, e quatro anos mais tarde sua peça La Madrasta (escrita em parceria com René Zapata Quesada)  estreou no Teatro Apolo, em Buenos Aires. Os jornais da época noticiavam, então, dois acontecimentos que agitavam a Europa: a eclosão da I Guerra Mundial e a repercussão do Manifesto futurista, de Marinetti, publicado em 1909 no jornal Figaro, que desencadeou, nos anos seguintes, diversos manifestos e tendências de vanguarda. Os poetas e intelectuais argentinos, que se reuniam nos bares e cafés para discutir as novas idéias estéticas, entusiasmados por autores como Blaise Cendrars, Max Jacob, Apollinaire, logo criaram um movimento: o ultraísmo, liderado então por Jorge Luis Borges. Surgiam revistas, como Proa e Martín Fierro, que divulgavam as propostas vanguardistas e revelavam os jovens autores. Sob a influência da "nova sensibilidade" dessa geração, Girondo escreveu Veinte poemas para ser leídos en el tranvía, publicado em 1922, em Argenteuil, França. O humor, a sensualidade e o exotismo das imagens cubistas predominam neste livro de impressões de viagens, que tem ecos de Blaise Cendrars e é contemporâneo de Trilce, de César Vallejo, e de Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade. A abertura do poema Croquis na areia é uma boa amostra da técnica de colagem que Girondo utilizou nesse livro:


A manhã passeia na praia polvilhada de sol.
Braços.
Pernas amputadas.
Corpos que se reintegram.
Cabeças flutuantes de borracha.


É a época em que Eisenstein fazia experiências de montagem cinematográfica a partir do estudo dos ideogramas chineses, das colagens cubistas em pintura, do desenvolvimento de novas técnicas de fotografia e de peças musicais como A história do soldado, de Igor Stravinski. Mais adiante, o poema diz:
  
    Por oitenta centavos, os fotógrafos vendem os os corpos das mulheres que se banham. Há quiosques que  exploram a dramaticidade das ondas que se quebram. Criadas chocas. Sifões irascíveis, com extrato de mar. Rochas com peitos algosos  de marinheiros e corações pintados de esgrimista.

Este poema, como observou Jorge Schwartz em Vanguarda e cosmopolitismo, é um retrato crítico  do kitsch, do cartão-postal, do baedecker de turista, indicando, pela paródia, a banalidade do "belo" das imagens paradisíacas, convertidas em objetos de consumo. O mesmo enfoque se encontra nos romances de invenção de Oswald de Andrade e na poesia "pau-brasil", com os quais há notáveis semelhanças estilís­ticas.


O barroco e o simbolismo em Girondo

 Calcomanías (1925), o segundo livro de Girondo, retrata de modo carnavalizado a Espanha católica e agrária pré-guerra civil e é, segundo Schwartz, uma "declaração de independência" das letras argentinas. Cabe ressaltar, porém, que, apesar das influências francesas e do sarcasmo contra a ex-metrópole, Girondo permaneceu um herdeiro do barroco espanhol e, em particular, de Quevedo. O barroco está presente no exagero metafórico, na mescla de palavras cultas e chulas, na retórica transbordante, nas imagens a la Goya e no tom picaresco. O retrato do quotidiano em Calcomanías mescla realismo e humor, como nessas passagens de Calle de las sierpes: “Cobertos em suas capas, como toureiros, / os padres entram nas barbearias / a embelezar-se em quatrocentos espelhos por vez / e quando saem às ruas já têm uma barba de três dias. (...) A cada duzentos e quarenta e sete homens, / trezentos e doze padres / e duzentos e noventa e três soldados / passa uma mulher”.

Espantapájaros (1932) é uma obra singular da primeira fase de Girondo. O livro é constituído de poemas em prosa, numerados, sem uma sequência narrativa, enfocando basicamente o amor, a morte e o anseio de fuga, de "transmigrar", numa linguagem que só raramente, no caligrama-prefácio, nos jogos paronomásicos, no cultismo polifônico, lembra o Girondo posterior, do experimentalismo construtivo. Espantapájaros reflete também a influência de dois poemas em prosa da literatura maudite francesa: Une saison en enfer, de Rimbaud, e Les chants de Maldoror, de Lautréamont. (Nesta mesma linha, aliás, se insere Temblor de cielo, publicado em 1931 pelo chileno Vicente Huidobro.) Citaremos, como ilustração, um fragmento:

     Que tua família se divirta em deformar teu esqueleto para que os espelhos, ao mirar-te, se suicidem de repugnância; que teu único  entretenimento consista em instalar-te na sala de espera dos dentistas, disfarçado de crocodilo, e que te apaixones tão loucamente por uma caixa de ferro que não possas deixar, nem um só instante, de lamber-lhe a fechadura.

Interlúnio (l937) é o final tranqüilo da primeira fase de Girondo, marcado pelo oti­mismo inicial do século XX, a era das máquinas, das invenções e da utopia socialis­ta. Não era apenas a estética que os vanguardistas pretendiam transformar, mas a sociedade e o próprio homem. Como assinalou Mário Faustino em Poesia-experiência, o sonho da modernidade era unir o "mudar a vida" de Rimbaud ao "mudar o mundo" de Marx e, para isso, eram necessários novos meios de expres­são. Em Girondo, esse otimismo é manifestado sobretudo pela idéia de solidarie­dade, como notou Enrique Molina (Hacia el fuego central, em Obras de Oliverio Gi­rondo). O desejo de identificação com o mundo é uma das características básicas da poesia moderna, antecipado em Leaves of grass, de Whitman, e teve resso­nâncias em poetas tão diversos como Drummond, Neruda e Maiakóvski. O otimismo dos anos 20, porém, foi abalado pelos desvios da Revolução Russa, em especial após a ascen­são de Stalin, pelo surgimento do nazifascismo, pelo crash da Bolsa de Nova York, e entrou em colapso com a II Guerra Mundial.Persuasión de los días (l942) é, por essa razão, uma obra de ruptura e o começo de uma nova fase.


A geometria da composição

Conforme Enrique Molina, "já não são agora os movimentos e os significados do sonho e a imaginação que se impõem, mas um sentimento de náusea. (...) A visão de um mundo degradado pela miséria social e pela miséria de espírito". A poesia de Girondo torna-se mais concisa, com imagens exatas, sonoridades raras e uma preocupação geométrica com a arquitetura do poema. As influências iniciais, do cubismo e do surrealismo, parecem ceder lugar a um construtivismo a la Maliévitch. Nesta obra o poeta conserva o tom coloquial, retórico — e colérico — de sua prosódia, em brados de protesto como Es la baba e Azotadme!, poemas que foram escritos para ser lidos em voz alta, como A plenos pulmões, de Maiakóvski. A visão atormentada do poeta, sua solidão e o sentimento de impotência frente aos fatos do mundo têm como poema-símbolo a composição Areia: “De areia o horizonte. / O destino de areia. / De areia os caminhos. / O cansaço de areia. / De areia as palavras. / O silêncio de areia.”

Persuasión de los días, com toda sua beleza e ousadia, é apenas o prelúdio à re­volução de En la masmédula (1954-56), a obra culminante de Girondo, em que seu experimentalismo radical se aproxima da prosa de James Joyce e da poesia concre­ta dos anos 50 num mesmo grau de radioatividade poética. A estranheza da obra começa pelo título: o que é "masmédula"? Não é fácil saber, em se tratando de um autor que fazia do paradoxo o seu método. Nesse livro desconcertante, agressivo, cheio de energia e plasticidade, Girondo utiliza um arsenal linguístico que o coloca entre os maiores inventores de poesia em língua espanhola. O livro, gravado em LP nos anos 60 por Arturo Cuadrado e Carlos A. Mazzanti, é um dos emblemas do trágico paradoxo da América Latina que, exportadora de matérias-primas e importadora de manufaturados, produz, apesar disso, alta tecnologia poética.

En la masmédula é um labirinto, ou, para citar uma imagem borgeana, uma série infinita de labirintos, em que a linguagem é levada a seus limites, rompendo barrei­ras do próprio idioma e da dicção. Esta obra não pode ser vista apenas como o re­sultado de equações estético-formais; trata-se de um longo monólogo, dividido em fragmentos, cujo centro temático é a viagem — não o deslocamento geográfico-es­pacial, mas a jornada interior rumo às entranhas da melancolia e dos pesadelos de um homem fatigado pelos dissabores da existência. Neste sentido, o paralelo possí­vel é com oEscaravelho de Ouro, de Oswald de Andrade, e com a filosofia de Sartre e Camus.

Girondo passou os últimos anos de sua vida ao lado da mulher, Norah Lange. Após conhecer a Europa, os Estados Unidos e Oriente Médio, passou a viajar com mais freqüência pela América Latina, tendo se encontrado com Pablo Neruda, no Chile, e com Oswald de Andrade, no Brasil. A pintura foi sua grande paixão. Em sua juventude, escreveu um ensaio, Pintura moderna, em que fez o elogio de Cézanne, Picasso, Matisse. Pouco antes de morrer, pintava quadros de inspiração surrealista. O cronópio Oliverio Gi­rondo — aristocrata esnobe, homem bem-humorado, provocador e ferino, morreu em 24 de janeiro de 1967, aos 76 anos, em Buenos Aires.