A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (VIII)



Mestres budistas comparavam a mente humana a um espelho, cuja essência é pura e perfeita. Ao entrar em contato com o mundo material, a superfície cristalina acumula poeira, que recobre a sua pureza original. Shen-hsiu escreveu o seguinte poema, para apresentar o conceito: “Este corpo é a árvore Bodhi / a mente é como um espelho iluminado; / Empenhai-vos em mantê-la sempre limpa / Sem deixar que nela se junte o pó” (in SUZUKI, 1993: 15). Para “limpar a mente” dos resíduos mundanos e fazer com que ela recupere a sua natureza de puro cristal, Shen-hsiu propunha o “método gradual” para a iluminação, que incluía o estudo dos Preceitos morais (sila), Meditação (dhyana) e Sabedoria Transcendental (prajna)[1], tópicos que integravam a vida monástica na maioria das escolas budistas, tanto as do sul quanto as do norte da China. Rebelando-se contra o formalismo das práticas meditativas, o quietismo e sobretudo contra a ideia de uma evolução espiritual gradual, Hui-Neng apresentou o seguinte poema, em resposta ao de Shen-hsiu: “Não há árvore Bodhi, / nem o cessar do brilho do espelho. Sendo tudo vazio, onde / poderia assentar-se o pó?”. A natureza búdica da mente, para Hui-Neng, “não persiste nem é aniquilada; não chega nem parte; não está no meio nem nas extremidades; ela não morre nem nasce. Permanece a mesma o tempo todo, imutável em todas as mudanças. Assim como nunca nasceu, nunca morrerá” (idem, 33). O “método abrupto” de Hui-Neng não era a “arte de tranquilizar a mente para que sua essência interior, pura e imaculada, pudesse extravasar os seus invólucros” (idem), uma vez que ela já é “pura, simples e iluminadora como o sol por trás das nuvens” (idem, 22). O reconhecimento desse princípio, para o sábio chinês, era a iluminação súbita, que dispensava erudição, práticas de austeridades ou rigor nas normas cerimoniais e de conduta. A busca do satori tornou-se o centro da vivência zen-budista, e os meios para esse súbito despertar eram os mais inusitados, podendo incluir desde tarefas domésticas, como varrer o templo, até golpes de bambu aplicados pelo mestre no discípulo ou histórias absurdas ou enigmáticas (koans), como esta, relatada por Paulo Leminski:

Hui-Ko procurou Bodhidarma, primeiro patriarca do zen chinês, e lhe disse:

— Não tenho paz na minha mente. Pacifica a minha mente.

— Traz tua mente à minha presença e eu a pacifico, responde Bodhidarma.

— Mas quando busco a minha própria mente, não consigo encontrá-la, diz Hui-Ko.

E Bodhidarma:

— Pronto! Pacifiquei tua mente.

(LEMINSKI, 1983: 73)


A vivência profunda da espiritualidade zen-budista está presente na poesia de Bashô, e ainda na maneira como ele ensinava os seus discípulos, como podemos verificar nestes aforismos do poeta japonês, que abandonou o caminho do samurai após a morte de seu mestre para tornar-se monge andarilho:

Repita seu verso mil vezes nos lábios.

Não siga os antigos. Procure o que eles procuravam.

Respeite as regras. Então, jogue todas fora. Pela primeira vez, você atinge a liberdade.

(in LEMINSKI, 1983: 41-42)

Aprende do pinheiro diretamente do pinheiro; do bambu, diretamente do bambu.

(BASHÔ, 1997: 10)

Eugênio de Andrade, em outro momento histórico, outra dimensão geográfica e com outro repertório cultural, aproxima-se, pelo conceito laico (e mesmo pagão) da epifania — “uma luminosa manifestação, uma revelação clara e rara, uma clarividência essencial” (SARAIVA, 1995: 54) da experiência zen-budista. No prefácio à sua Antologia breve (Lisboa: Moraes Editores, 1980), o poeta português define o ato poético como “o empenho total do ser para a sua revelação”, que ele define como a “descida ao coração da alma, essa coragem de mostrar o que achou no caminho”, que caracterizaria “a dignidade do poeta e, com ela, a do homem” (ANDRADE, 1980: 7-8). A tarefa do poeta seria resistir à “desfiguração” imposta pela cultura moderna e resgatar o rosto original do homem, “belo e tenebroso, à luz limpa do dia” (idem). Enumerando poetas e místicos de diferentes épocas, culturas e países que considera seus companheiros de jornada, Eugênio de Andrade escreve: “De Homero a S. João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafys, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efêmero rosto” (idem, 8-9).  A rebelião do poeta seria feita “em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma” (idem, 9). A tonalidade desta breve nota é a de um manifesto, em que não são poucas as referências românticas, como a oposição entre cultura e natureza, a busca de uma verdade essencial, a valorização da sinceridade e da expressão subjetiva, e mesmo o emprego de palavras como rebelião, raízes, terra, sangue, alma. O poeta é visto de modo messiânico, como aquele que possui as chaves mágicas para decifrar a realidade e mostrar ao homem o seu próprio rosto. O pensamento filosófico de Eugênio de Andrade possui diversos matizes que contrastam com as percepções de Matsuo Bashô – único oriental citado entre os seus poetas de devoção, ao lado do chinês Li T’ai Po – mas podemos estabelecer uma relação elucidativa entre a perspectiva idealista do autor português e a visão sincrética do poeta samurai, que recebeu a educação militar e cultural adequada a um guerreiro (que incluía aulas de pintura, poesia, caligrafia e filosofia, além do treinamento no manejo de armas), absorveu as normas de conduta confucianas e depois abraçou a mística budista, sem nunca perder um vínculo espiritual com a natureza, herança da cosmovisão xintoísta, presente em todas as manifestações da arte japonesa.  


[1] A moralidade consiste em observar todos os preceitos estabelecidos por Buda, tendo em vista o progresso espiritual de seus discípulos; a meditação é o exercício destinado ao treinamento pessoal na tranquilização, pois se a mente não for controlada pela meditação, de nada adiantará observar mecanicamente as regras de conduta; na realidade, estas se destinam a tranqüilizar o espírito. Sabedoria ou prajna é o poder de penetrar a natureza do próprio ser (...). Não é preciso dizer que todas essas três disciplinas são necessárias a um budista sincero. Mas, com o passar do tempo, depois de Buda, a Tríplice Disciplina cindiu-se em três ramos distintos de estudo: os seguidores das regras de moralidade estabelecidas pelo Buda tornaram-se professores do Vinaya; os yogues da meditação incorporaram-se a várias espécies de Samadhi e até mesmo adquiriram algumas faculdades extraordinárias (...). E finalmente, os que buscavam Prajna tornaram-se filósofos dialéticos ou líderes intelectuais. Esse estudo unilateral da Tríplice Disciplina fez com que os budistas se desviassem do reto caminho da vida budista, especialmente quanto a Dhyana (meditação) e a Prajna (sabedoria ou conhecimento intuitivo). (SUZUKI, 1993: 30)

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (VII)


A observação rara, frequente na poesia de Bashô, está presente em várias peças de Pequeno formato, especialmente na última composição do volume, intitulada À sombra de Victor Hugo, que é quase um oxímoro: “A sombra é sempre escura até mesmo / a dos cisnes” (ANDRADE, 2000: 554). Além do “gosto das estruturas breves e simples, do poema, do verso, da frase” (SARAIVA: 1995, 38), encontramos na poesia de Eugênio de Andrade “as sonoridades cuidadas, os ritmos fluidos, a frase pontuada; o equilíbrio entre a simplicidade e o requinte da expressão (...); o apuramento dos sentidos; a revelação, a plenitude poética, o sentimento do tempo, o sentido do precário” (idem), elementos que estão em consonância com a arte poética japonesa, que valoriza especialmente a expressão sazonal, o vínculo entre o homem e a natureza, a imperfeição e a assimetria. Um outro aspecto da poesia de Eugênio de Andrade apontado por Arnaldo Saraiva e que merece especial atenção é a representação da epifania, palavra de origem grega (epi, sobre, phaino, brilhar) que o crítico português define como “uma luminosa manifestação, uma revelação clara e rara, uma clarividência essencial” (idem, 54). O conceito, de origem teológica, designava inicialmente “a manifestação ou o aparecimento divino no mundo ou a festa e o período que o celebra” (idem), como o nascimento de Cristo (caso em que o termo mais usado é teofania), aparições de santos ou outras entidades espirituais. Mircea Eliade, em seu Tratado de História das Religiões, define a epifania como “manifestação que lembra ou se parece com uma manifestação divina, uma experiência exaltante e inesperada, o súbito acesso a um conhecimento ou prazer essencial, a percepção nítida de uma verdade imprevista, um momento de inteligência global do real” (in SARAIVA, 1995: 53), como por exemplo as revelações obtidas em sonhos, transes xamânicos, experiências com alucinógenos místicos ou a iluminação zen-budista, estado que transcende a dualidade do mundo fenomênico e representa um retorno ao vazio original da mente. Conforme observa Antonio Saraiva, o conceito de epifania passou a ser empregado, na modernidade, por autores como James Joyce, num contexto laico e profano, para designar experiências estéticas de revelação e deslumbramento “perceptíveis pelos ou por alguns dos sentidos; não é uma experiência duradoura – é uma experiência intervalar e efêmera, salva na memória” (idem, 54). A poesia de Eugênio de Andrade revela “diversas modalidades epifânicas ou diversos tipos de narrativa epifânica”, escreve Arnaldo Saraiva (idem, 55). No poema Sul, que integra o volume O outro nome da terra, por exemplo, o poeta diz:


Era verão, havia o muro.
Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente,
o silêncio sacudia as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.

(in ANDRADE, 2000: 451-452)


Nesta composição de oito versos, sem medida métrica nem divisão estrófica, o poeta “documenta bem a passagem de um tempo e modo comum e concreto (verão, muro, praça, pombos, cal) para um tempo e modo epifânicos, que sem abolir a visão ou ‘evidência’ objetiva (‘assim’) implica, sobretudo, uma evidência, uma clarividência relativa ao sentimento ou ao pensamento escatológico” (SARAIVA, 2005: 56), o que acontece nas linhas finais do poema (“Pensei: devíamos morrer assim. / Assim: explodir no ar”). Em outro poema breve de Eugênio de Andrade, incluído em Pequeno formato, o registro epifânico é menos dramático que lírico: 


COMO NO INÍCIO

É a noite por fim, podes tocá-la.
Também a mão, a pequena e febril
música da mão, aí está a iluminá-la.
Agora vê-se melhor o caminho.

(in ANDRADE, 2000: 550)


A paisagem metafórica do poema, em que não falta o recurso da sinestesia (“É a noite por fim, podes tocá-la”), prescinde de um sujeito identificável; há um enunciador que descreve a sucessão de imagens e um receptor a quem esse discurso visual é transmitido, mas ambos permanecem quase invisíveis no poema, sem nada que os identifique além da própria enunciação. A epifania acontece no próprio discurso, em que elementos simples como a noite, a mão e a música se transfiguram para iluminar o caminho, que é trajeto, revelação e descoberta (podemos recordar aqui o ideograma chinês que representa o Tao, que significa, ao mesmo tempo, o caminhante, o caminho e o ato de caminhar).  Conforme observa Arnaldo Saraiva, “o fenômeno epifânico é sempre relacionável com o sujeito enunciador do poema, que interessadamente o assinala e acusa os seus efeitos, às vezes dentro do seu próprio corpo (‘subitamente como fonte ou ave / rompe dentro de mim); mas ele também pode implicar e afetar outros seres, árvores, bichos, a terra, o ar e até os nomes” (idem, 57-58). Nesta acepção, podemos relacionar o conceito de epifania com a experiência espiritual indissociável da prática do haicai, tal como compreendida por Bashô. Comentando o poema da rã, Alberto Marsicano escreve em sua introdução a Trilha estreita ao confim, que reúne os quatro principais diários de viagem do mestre japonês:


Bashô contemplou num harmonioso entardecer uma tranquila lagoa quando uma rã saltando sobre a água rompeu subitamente a lisa superfície. Não com um forte ruído mas com um som claro e distinto. Ao ouvir este som cristalino o poema fluiu quase que involuntariamente leve e simples, sem artifício algum. O haicai é o olho do furacão, o profundo toque de um gongo de bronze, o iridescente relâmpago que inesperadamente reluz na escuridão da noite. o haicai é o satori, o despertar zen que repentinamente surge no caminho.

ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante

(In Bashô: 1997, 11)


A experiência do satori, referida por Alberto Marsicano, é o objetivo da prática zen-budista: a tomada de consciência do vazio original da mente (sunyata) e a superação da percepção dualista do mundo, que nos leva ao desejo e à aversão, elos mentais que nos aprisionam ao mundo fenomênico. Como toda vivência espiritual profunda (os êxtases místicos de São João da Cruz ou de Santa Teresa de Ávila, na tradição cristã, ou a vivência do sagrado em Rumi e Attar, na tradição sufi, por exemplo), o satori não pode ser descrito em palavras; segundo Paulo Leminski, é algo “pessoal e intransferível, impossível de programar, prever ou administrar (o desejo de atingir a iluminação, inclusive, dizem, é o maior obstáculo para atingi-la)” (LEMINSKI, 1983: 68). Apesar da impossibilidade de se registrar na forma escrita as sensações e percepções da jornada espiritual, existe vasta literatura sobre o assunto, desde interpretações filosóficas ou teológicas da vivência mística até poemas ou relatos em prosa que de certa forma “transmitem” algo dessa experiência. Segundo relatos dos antigos historiadores chineses, técnicas indianas de meditação (dhyana, em sânscrito; ch’an, em chinês; zen, em japonês) foram introduzidas na China desde o século II a. C. por Bodhidarma, o primeiro patriarca do zen-budismo, e de lá foram levadas para a Coreia, o Tibete e o  Japão, mesclando-se com tradições locais como o taoísmo, o xintoísmo, o confucionismo, cultos devocionais e práticas mágicas ou esotéricas. O mestre mais reverenciado da tradição zen-budista é Hui-Neng, que teria ensinado no século VI no Mosteiro da Ameixa Amarela. A respeito deste sábio chinês escreve Paulo Leminski:


A assim chamada Doutrina Lanka de Bodhidarma foi transmitida por muitas gerações a Hui-Neng, homem de origem humilde, um lenhador analfabeto, ideias revolucionárias e duradoura influência. Nascido em Fan-Yang, a sudoeste de Pequim, Hui-Neng perdeu o pai muito cedo. E levava vida penosa, sustentando a mãe como apanhador e vendedor de lenha.

Aos vinte e quatro anos, vendendo lenha na cidade, ouviu alguém recitando o Sutra do Diamante, uma das escrituras hindus traduzidas para o chinês. Hui-Neng quis saber mais. Enviado a Hupei, submeteu-se à direção de Hung-Jen, o quinto patriarca, tornou-se monge e acabou superior do mosteiro Fa-Hsing, recebendo a dignidade de patriarca das mãos do próprio Hung-Jen.


Esta transmissão do patriarcado consistia na entrega do manto pessoal e da tigela de pedir esmolas.


Atuou por trinta e sete anos, atraindo os mais famosos mestres Zen da época, incluindo os quarenta e três ‘herdeiros da lei’, que disseminaram seus ensinamentos por toda a China, o Sudoeste Asiático, a Coreia e o Japão.


Do pensamento de Hui-Neng, chegou-nos um texto, “A Escritura Plataforma”, sermão pronunciado pelo sexto patriarca, no mosteiro Tan-fan.


De Hui-Neng descendem, espiritualmente, Bashô e seu haicai, bem como as artes zen, das quais o haicai se alimentou. (Idem, 78-79)



quarta-feira, 27 de março de 2013

PROGRAMAÇÃO DE ABRIL DA CURADORIA DE LITERATURA E POESIA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO



CLUBE DE LEITURA DE POESIA: ANELITO DE OLIVEIRA

O poeta, editor e ensaísta Anelito de Oliveira conversará com o público sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer perguntas ao poeta, para um bate-papo.

Quarta-feira, dia 10/04/13, das 19h30 às 21h  
Sala de Debates –

  
JÚLIO CÉSAR MORTO POR UM DISPARO DE BROWNING 

Ricardo Corona, poeta, tradutor e editor da revista Bólide apresentará uma performance poética, a partir do conceito de que “livro” e “poesia” estão situados num mesmo espaço. Quando o livro não é mero suporte, mas poesia. Quando é objeto que participa da linguagem poética, num movimento que o aproxima do espaço da ação performativa e vice-versa. Quando autor, livro, texto, imagem se potencializam no espaço da performance. Na ocasião, haverá o lançamento do livro ¿Ahn? (edições brasileira e espanhola), de Ricardo Corona, e do primeiro número da revista de literatura e arte Bólide.

Terça-feira, dia 23/04/13, das 19h30 às 21h
Sala de Debates
  

POESIA DOS 4 CANTOS: NOITE LIBANESA

Poesia dos Quatro Cantos é uma atividade mensal dedicada à divulgação da poesia internacional, num formato que inclui a leitura com danças e músicas típicas de cada país, nos intervalos das leituras. Em março, será feita a apresentação de uma Noite Libanesa com a poeta Francesca Cricelli, com a participação dos músicos Claudio Kairouz, Rogério de Queiroz, William Bordokan, Semi el Khouri Bordokan e da dançarina Cristina Antoniadis Bordokan.

Quarta-feira, dia 24/04/13, das 20h30 às 22h
Sala Adoniran Barbosa

  
MENU DE POESIA

Recital dedicado à obra do poeta carioca Rodrigo de Souza Leão, organizado por Maria Alice Vasconcelos.

Quinta-feira, dia 25/04/2013, das 20h30 às 22h 
Praça Mário Chamie


POEMAS À FLOR DA PELE

Sarau poético realizado pelo grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de músicos e atores. Haverá também o lançamento de livros de poesia de novos autores.

Sexta-feira, dia 26/04/13, das 20h30 às 22h 
Praça Mário Chamie

domingo, 24 de março de 2013

POEMAS DE EUGÊNIO DE ANDRADE



AS GAIVOTAS

As gaivotas. Vão e vêm. Entram
pela pupila.
Devagar, também os barcos entram.
Por fim o mar.
Não tardará a fadiga da alma.
De tanto olhar, tanto
olhar.


VARIAÇÃO SOBRE UM TEMA ANTIGO

Vem de tão longe que tenho piedade
dos seus cães: abro a porta, aceito
a festa dos animais.
Aproximou as mãos do fogo
e encontrou a flauta, levou-a
à boca: então o silêncio brilhou
acariciado.


AS JANELAS

As janelas
por onde entram as silvas,
a púrpura pisada,
o aroma das tílias, a luz
em declínio,
fazem deste abandono
uma beleza devastadora
e sem contorno.


MULHERES DE PRETO

Há muito tempo que são velhas, vestidas
de preto até a alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
Pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.


ROSA DE AREIA

Enquanto
um calor mole nos tira a roupa
e mesmo nus sobre a cama
os corpos continuam a pedir água
em vez doutro corpo,
penso no tempo em que o suor
e a saliva e o odor e o esperma
faziam dessa agonia
a alegria
a que chamávamos amor.


FRÉSIAS

Uma pátria tem algum sentido
quando é a boca
que nos beija a falar dela,
a trazer nas suas sílabas
o trigo, as cigarras,
a vibração
da alma ou do corpo ou do ar,
ou a luz que irrompe pela casa
com as frésias
e torna, amigo, o coração tão leve.

(Do livro Rente ao dizer, 1992)

quinta-feira, 21 de março de 2013

A RECEPÇÃO CLÁSSICA DA POESIA JAPONESA EM PORTUGAL (VI)



2. 4 De Eugênio de Andrade a Albano Martins

Uma rã que salta – Homenagem a Bashô (Porto: Limiar, 1995) é um elegante volume que apresenta traduções e poemas originais que dialogam com o mais conhecido de todos os haicais japoneses – “No velho tanque / uma rã salta – mergulha. / Ruído na água”, de Bashô. A antologia, organizada por Casimiro de Brito para o Pen Club português, apresenta ensaio introdutório do estudioso inglês Stephen Reckert, professor da Universidade de Londres e autor de Beyond Chrysanthemus (Oxford Press, 1993), e poemas escritos por vinte autores de língua portuguesa, entre eles Eugênio de Andrade (1923-2005), Antonio Ramos Rosa (n. 1924), Albano Martins (n. 1930), Yvette Centeno (n. 1940), Maria Alzira Seixo (1941) e o brasileiro Murilo Mendes (1901-1975).  No final do volume, foi incluído um caderno com traduções de Bashô realizadas por outros nomes de importância na literatura portuguesa, como Jorge de Sena (1919-1978), Ana Hatherly (n. 1929) e Liberto Cruz (1935), e ainda dos brasileiros Paulo Franchetti (1954) e Elsa Taeko Doi. A leitura atenta desta antologia revela enorme diversidade de dicções e estilos, que dialogam de maneira criativa com temas e técnicas da poesia japonesa tradicional, sem intenção caricatural ou mimética. Casimiro de Brito abre a mostra com a sua renga À sombra de Bashô, que intercala haicais do autor japonês com outros de sua própria lavra, num diálogo já examinado neste capítulo. Eugênio de Andrade, que aparece em seguida, multiplica as três linhas do haicai em três tercetos completos, autônomos, aos quais adiciona um verso isolado, totalizando dez versos:


HOMENAGEM A BASHÔ

As cigarras ardem
nos ramos do verão
como lenha verde.

Um rumor pueril
e doce de abelhas
enganava a sede.

No cimo da torre
da praça mais branca
é que o sol se despe,

e dança dança dança.


O primeiro terceto, fortemente imagético, com métrica próxima à redondilha menor (com versos de cinco e seis sílabas), inclui o signo da estação do ano, o kigo (“nos ramos do verão”) e o olhar do poeta está voltado às pequenas coisas da natureza, como cigarras e ramos de árvore, mostrados de maneira metafórica, que atribui um brilho virtuosístico à cena observada – “As cigarras ardem / (...) / como lenha verde”.  No segundo terceto, permanece o foco nos seres de menor dimensão do reino animal, no caso, as abelhas,  mas a objetividade do haicai é perdida com a adjetivação retórica (pueril, doce) e com a abstração metafórica da imagem. Na terceira composição, Eugênio de Andrade alcança maior precisão de imagens, nos dois versos iniciais, e conclui o poema com uma inesperada prosopopéia, em que o sol, convertido em personagem, despe-se da luz e “dança dança dança”, sendo o quarto verso – inexistente no haicai – uma possível citação de Une saison en enfer, de Rimbaud (“Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança”, lemos na tradução de Ledo Ivo, in RIMBAUD, 1982: 52). A cena criada por Eugênio de Andrade neste poema foge das convenções do haicai, mas, pela imagem inusitada, lúdica, próxima ao imaginário das crianças, não destoa da tradição inaugurada por Bashô, a quem o poema é dedicado no título. O apreço do poeta por esse pequeno conjunto de (quase) haicais pode ser avaliado por sua inclusão no livro Pequeno formato (1997), publicado por Eugênio de Andrade dois anos após o lançamento da antologia Uma rã que salta. A sensibilidade poética do autor, no entanto, submeteu os tercetos a uma rigorosa revisão estilística, a começar pelo título, que muda para Rumores de verão, excluindo a óbvia referência metalingüística do título anterior. O primeiro terceto, talvez o mais virtuosístico, foi reelaborado, perdendo um pouco do brilho original mas ganhando maior proximidade com o espírito do haicai:  “As cigarras cantam, / como no inverno / arde a lenha verde”,  imagem simples e eficaz, com economia de recursos e  alta definição de contornos. Já o segundo terceto sofreu a alteração de uma única palavra, que mudou completamente o seu sentido: em lugar de “Um rumor pueril / e doce de abelhas / enganava a sede”, o poeta escreve agora: “Um rumor pueril / e doce de abelhas / acrescenta a sede”, mudança imprevista que adiciona uma discreta ironia ao verso. A terceira estrofe muda completamente: em vez de “No cimo da torre / da praça mais branca / é que o sol se despe”, o poeta escreve agora: “Quando o sol avista /os flancos do mar / despe-se a correr, / e dança dança dança” (in ANDRADE, 2000: 545), substituindo a paisagem quase estática da versão anterior por uma imagem em movimento, que recorda a desmesura de uma composição de Bashô: “o dia em chamas / joga no mar / o rio mogâmi”, na tradução de Paulo Leminski.


Rumores de verão é a peça de abertura de Pequeno formato, conjunto de 30 poemas breves, em que predominam os dísticos, tercetos e quartetos; de todos os livros de Eugênio de Andrade, este é o que apresenta maior economia verbal. A simplicidade, a presença da natureza, dos animais e das quatro estações, a observação rara e as ações imprevistas, elementos característicos do haicai, predominam neste volume, embora poucas peças possam ser chamadas, a rigor, de haicais; talvez apenas o Jardim de Lou Lim Leoc, que diz: “Deste jardim o que levo comigo / é um ramo de bambu para servir / de espelho ao resto dos meus dias” (idem, 551), terceto antecedido pelo dístico intitulado Templo da barra: “O verde dos bambus mais altos é azul / ou então é o céu que pousa nos seus ramos” (idem). A imagética dessas composições é japonesa, sendo o bambu uma imagem recorrente na pintura sumiê e em diversos haicais, como neste poema de Buson, traduzido por Paulo Franchetti: “Com a luz do relâmpago / Barulho de pingos – / Orvalho nos bambus” (in FRANCHETTI, 2012: 100). A proximidade na página entre os dois poemas, um de três versos, o outro de dois versos, sem uma relação sintática ou referencial entre eles – com exceção da palavra bambu – remete ainda à forma do tanka, em que as duas estrofes têm certa autonomia, relacionando-se por analogia. A justaposição de sentenças sem um nexo lógico entre elas, à maneira de uma montagem cinematográfica, é um recurso estrutural da poesia japonesa, presente no tanka e também no haicai, como neste poema de Bashô: “Um corvo pousado / Num ramo seco – / Entardecer de outono” (in FRANCHETTI, 2012: 128). Podemos encontrar vários exemplos dessa técnica nos poemas de Pequeno formato, como neste poema de cinco linhas, intitulado Cantam na madrugada: “À beira / d’água a luz / é em mim que tem morada: / tão longe / ainda a última barca” (ANDRADE, 2000: 553), em que há um claro corte entre os três primeiros versos e os dois seguintes, que se relacionam de maneira metafórica, assim como as estrofes de um tanka tradicional.  A justaposição de cenas e ações simultâneas é ainda mais expressiva nessa quadrinha, intitulada Verão, escrita em versos de dez sílabas:  “Era verão, pela varanda entrava / a madura ondulação do trigo, / o grito lancinante dos pavões, / o cavalo na sombra ardendo em cio” (ANDRADE, 2000: 547), em que não faltam o signo da estação do ano, os animais e vegetais integrados numa ordenação cósmica.

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (V)



Todos esses elementos construtivos estão presentes no ambicioso projeto que Casimiro de Brito denominou LIVRO DOS HAIKU, obra em progresso desenvolvida desde 1958 que será constituída de 14 livros, sendo que apenas dois foram publicados até a presente data: 1) À sombra de Bashô (renga que intercala haicais traduzidos do poeta japonês com outros de autoria do próprio Casimiro de Brito); 2) renga com Ban’Ya; 3) (Elementos, estações); 4) Eros mínimo; 5) Devastação; 6) Da comoção; 7) Através do ar (editado no Japão, em quatro línguas, em parceria com Ban’Ya); 8) Amando, escrevendo; 9) Para além; 10) Outras músicas; 11) Desprendimento; 12) No amor tudo se move; 13 e 14) antologias de haikus antigos e contemporâneos. O primeiro livro deste ciclo, À sombra de Bashô, uma elegante publicação em formato vertical e textura roxa na capa e contracapa, de 14,5cm por 35cm, é um conjunto de 110 poemas alinhados na forma de renga, gênero poético japonês em que dois ou mais poetas participam, intercalando os versos. Conforme escreve Shuichi Kato, “cada um faz uma estrofe relacionada exclusivamente à última estrofe composta, sem nenhuma necessidade de considerar as estrofes anteriores.” (KATO, 2011: 94). “O fluir do renga não é planejado”, afirma o autor japonês, “ele segue conforme as ideias que surgem no momento, ora mudando-se o tema, ora o cenário, ora a emotividade (idem).” Nessa forma de fazer poético regida pela mobilidade, casualidade e surpresa, sem uma unidade ou foco de interesse, o encanto reside no “encontro inesperado”, na “engenhosidade” e na “retórica” de cada estrofe apresentada (idem). 


Em À sombra de Bashô há um elemento insólito adicional, que é o diálogo involuntário de um poeta-samurai japonês do século XVII com um autor português do século XX, que responde aos haicais de Bashô, traduzidos diretamente do idioma original e apresentados em itálico, com outros haicais, concebidos de maneira paródica (no sentido original da palavra, que em grego significa “canto dialogado”). Assim, o conhecido poema de Bashô “No velho tanque – / uma rã salta, mergulha – / ruído na água” é seguido por esta composição de Casimiro de Brito: “Na página branca / na branca voz – outra rã / salta. Silêncio”, que introduz, sub-repticiamente, uma terceira voz na renga, a do simbolista francês Stephane Mallarmé, representado por algumas de suas obsessões – o silêncio, a página em branco e o acaso. Outro poema de Bashô, “O mar escurece / ouço grasnar os patos / vagamente brancos[1]” recebe a seguinte resposta criativa de Casimiro de Brito: “Nuvem deitada / Os olhos espreitam o peixe / que vai saltar”, em que a metáfora e o close cinematográfico de uma imagem inusitada respondem às sinestesias do poema anterior. O diálogo poético estabelecido por Casimiro de Brito com Matsuo Bashô não hesita em subverter o sentido dos poemas com os quais conversa, nem guarda pudores em relação a princípios do haicai tradicional, injetando o sensualismo (ausente na lírica do poeta-samurai), metáforas complexas, citações metalinguísticas, a presença ostensiva do eu lírico e referências urbanas que denunciam o poeta como um cidadão da modernidade, em contraste com o mundo místico, simples e rural de um Japão que não mais existe (tornou-se literatura). Alguns exemplos da riqueza imagética das composições de Casimiro de Brito:


42

Aproximam-se as patas
invisíveis do sol –
de sombras calçadas.


58

O sol adormece
no seu lençol de nuvens
– insônia vermelha.


60

As patas do sol
aproximam-se, invisíveis,
da relva do corpo.


72

Cidade caótica –
a borboleta atravessa a rua
com o sinal vermelho.


Podemos recordar, lendo estes poemas, de alguns haicais de Bashô que colocam em primeiro plano a imagem rara, como esta peça traduzida por Paulo Leminski : “chuva de primavera / a água escorre do teto / pelo ninho de vespas” (in LEMINSKI, 1983: 51), ou ainda: “relampagueia / através das trevas / a garça ecoa” (idem, 50). Bashô, samurai sem mestre (ronin) que tornou-se monge zen-budista,  tematiza o amor universal, a compaixão por todos os seres vivos, de todos os gêneros e condição social, até mesmo pelas plantas e os insetos (“sob o mesmo teto / dormem rameiras, a lua / e também o trevo”, na tradução de Casimiro de Brito), mas nada fala sobre o amor erótico (embora fosse contemporâneo dos Livros de primavera, romances pornográficos em voga na época, e dos rengas satíricos produzidos por comerciantes e soldados); já o poeta português elege esse tema como um dos pontos centrais de seu labor criativo, como podemos ler nesta composição de extrema sutileza e delicadeza: “Cabelos que vou pentear / a noite inteira. O vestido / junto à lareira”. Em outros momentos da renga, Casimiro de Brito inclui haicais de caráter mais filosófico, como se fossem aforismos:


64

O mundo não vou mudar –
deixa-me sacudir a areia
das tuas sandálias


90

A morte não existe.
Onde secam ervas foi água,
que se partiu triste.

102

Tanta luz feliz
Por tão pouco tempo! Amanhã
Estaremos velhos.


110

Talvez a morte não
exista. Talvez seja apenas   
viagem, flutuação.


A afinidade entre o haicai e o aforismo foi percebida por Maria João Cantinho, que, na resenha do livro mais recente de Casimiro de Brito, A boca da fonte (Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim – Editora Unip. Lda., 2012), escreve: “A estética do haiku tem, ainda, vários pontos de afinidade com o aforismo, pela mesma retórica, pelo mesmo sentido de economia e de rigor poético”, motivo pelo qual “tenha entrado na literatura ocidental pela estética do fragmento, tão cara aos poetas alemães românticos, tendo como cultor máximo do gênero o poeta Novalis[2]” (CANTINHO, 2013).  O aforismo e o fragmento estão presentes em diversas obras do autor português, relata a autora, citando livros como A arte da respiração, editado pela D. Quixote (1988), Da frágil sabedoria, (2001), Fragmentos de Babel (2007) e Arte de bem morrer (2007), aos quais podemos acrescentar Na via do mestre (2010), conjunto de 81 poemas-aforismos que dialogam com o Tao te king, do sábio taoísta chinês Lao Zi, que viveu no sexto século antes de Cristo. “A peculiaridade e o próprio sentido desta estética do fragmento nasce do próprio instante e da concentração temporal nele existente, do Aqui e do Agora que se abrem na sua leitura”, escreve a autora (idem). O tempo do poema é o tempo presente; mesmo a recordação evocada de situações localizadas em outras coordenadas espaço-temporais se concretiza poeticamente a partir da rememoração / refabulação feita no agora. Ou ainda: o poema cria o seu próprio tempo, que se manifesta na duração da leitura, e o seu próprio espaço, que é o branco da página. Conforme diz Maria João Cantinho, “o poema conquista a sua plenitude à luz da organicidade e da estruturação que dele irradia, da sua própria concentração temporal e espacial”. Por essa razão, “cada poema deve ser lido ao centro, para que, da concentração do olhar, surja também a contemplação da origem e do fim do poema, da palavra e da coisa” (idem). Partindo desses pressupostos, afirma a autora que “a estética do haiku ou do fragmento recusa a ideia de um acabamento ou de uma definição da obra e esta vai-se fazendo à medida que se escreve cada poema, definindo-se precisamente pela ausência da sua definição” (idem). Desse modo, a poesia concentrada colhe, em cada verso, “a imperfeição e o segredo, o inesperado” (idem). Os vetores conceituais apresentados por Maria João Cantinho em seu texto são instigantes pontos de partida para uma discussão do conjunto de cem haicais que Casimiro de Brito compilou em seu livro A boca da fonte. A série não tem unidade temática, nem é dividida em focos de interesse; os poemas são numerados e alinhados em grupos de dois, quatro ou cinco por página, sem um critério de organização claramente identificável. Os haicais de Casimiro de Brito não têm rimas e a métrica não é sempre exata, embora esteja próxima das medidas japonesas, de 5-7-5 sílabas. O autor prescinde do signo da estação do ano, o kigo, mas investe na concisão, na economia sintática e nos cortes elípticos, e por vezes dialoga com imagens e recursos da poesia japonesa clássica, como acontece nesta peça: “Vagueiam pela casa / o homem, a mosca e o ar -- / ninguém descansa”, onde a enumeração de personagens humanos e não-humanos em um mesmo cenário e situação recorda o princípio da compaixão budista por todos os seres vivos, tema de numerosos haicais de Bashô, como este poema, traduzido por Kimi Takenaka e Alberto Marsicano: “em profundo silêncio / o menino, a cotovia / o banco crisântemo” (BASHÔ, 1997: 10). A reflexão filosófica é a tonalidade que predomina na maioria das composições de A boca na fonte, em outro ponto de contato com os aforismos de autores alemães como Nietzsche e Novalis; essa “busca do primordial, do ato de beber diretamente da fonte”, escreve Maria João Cantinho, está contida já no título da obra, que alude à imersão “no sentido da natureza e simultaneamente da linguagem” (idem). A inflexão filosofante, sob o signo da água, aparece já na peça de abertura do volume: “Não separes a água / da sua espuma – / a vida é só uma” (BRITO, 2010: 7), que parece responder aos axiomas de Tales de Mileto (“tudo é água”) e Heráclito de Éfeso (“ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”), bem como à tradicional imagem budista que representa o mundo fenomênico como algo temporário, mutável, sem realidade permanente, tal como a espuma nas águas de um rio. Casimiro de Brito, divergindo da ótica budista, parece dizer o oposto: que essência e aparência, substância e acidente formam uma unidade (“a vida é só uma”).  O elemento líquido aparece em diversas composições do livro, em geral com o mesmo viés existencial ou filosofante, por vezes com timbre melancólico: “Silêncio. Ouçam / a vida – água correndo / cada vez mais triste” (idem, 16), que recorda a imagem da clepsidra, na poesia de Camilo Pessanha; “Em cada pedra / um rio que não cessa / de louvar as margens” (idem, 26); “Lágrimas que são / cascata pura. Outras vezes / avalanche mortal” (idem, 28).  A água, símbolo da mobilidade, fluidez, mutação e brevidade dos fenômenos, é um dos motivos-condutores de A boca na fonte, ao lado de outros elementos da natureza, como as montanhas, as vacas, os bambus, os gatos e os figos, entre muitos outros. Conforme Maria João Cantinho,     


Se os elementos e a força da terra e da natureza perpassam a sua poética, sob as mais variadas formas, desde a ínfima gota de chuva ou grão de areia até ao enigmático silêncio das constelações, também o onírico deflagra, a todo o instante, para nos recordar a brevidade da vida e do instante: “Viagem nocturna –/ regresso à origem do sonho/donde nunca saí. (CANTINHO, 2013)


Morte, sonho, infância, destino e linguagem são outros temas que aparecem nesta coletânea de haicais, que compõem uma espécie de diário íntimo do poeta, um registro de lembranças (reais ou inventadas), terrores, desejos, obsessões. O tema mais recorrente talvez seja o da infância, presente em dez poemas, em que se destaca um subtema doloroso, o da orfandade: “A mãe a perdi / no dia em que nasci -- / amor no exílio” (BRITO, 2012: 14); “A mãe não me deu / à luz. Passou-me duma nuvem / para outra” (idem, 12); “O pai ao colo / do filho que traz no colo. / Os dois um só” (idem, 12). A infância é percebida pelo poeta como duas realidades distintas: a biológica, que ele recorda com saudade[3] – “O cheiro da casa / que já não há: o sabor / dos figos da infância” (idem, 15) e a atemporal, uma infância infinda, cujo único limite é a morte: “Acompanha-me / sem nenhuma idade / a criança que fui” (idem, 22); “Infância sem fim -- / enquanto a morte, felina / se vai instalando” (idem, 19). Thanatos é a contraparte do elogio ao Menino, e está presente numa das mais belas composições do volume: “Caminho devagar -- / viverei menos se caminhar / mais depressa?” (idem, 21). As peças mais originais do livro, no entanto, são as sete que comparecem nas páginas finais, sob o título Cf. Lautréamont. Traçar um paralelo entre a poesia clássica japonesa, com todo o seu lastro zen-budista, e a prosa cruel de Isidore Ducasse parece um paradoxo, ou mesmo impossibilidade, mas Casimiro de Brito consegue sair-se bem na dificultosa empresa, fazendo uma releitura intertextual focada na imagética surrealizante, como na peça de abertura da série: “A terra não passa / de um imenso cu celeste / fremindo, cantando”. Claro, este já não é um haicai stricto sensu, mas um terceto que estabelece o diálogo possível entre elementos na estética japonesa – concisão, fala popular, imagens raras, relação Céu-Terra, o imprevisto – e o repertório linguístico e temático dos Cantos de Maldoror, como a pederastia (indicada, de maneira metonímica, na palavra cu), a imaginação fantástica ou bizarra, a atribuição de características humanas a formas inanimadas (este “cu celeste / fremindo, cantando”, que recorda ainda o William Burroughs de O homem que ensinou o seu cu a falar). Em outro poema da série, Casimiro de Brito escreve: “Mãos vegetais / raízes de árvores invisíveis / trepando nas veias”. Neste poema, ainda mais estranho que o anterior, as aliterações em v e s podem ser comparadas aos trocadilhos e jogos verbais da poesia japonesa, como o kakekotoba, e as “árvores invisíveis”, numa leitura um pouco forçada, podem remeter ao signo da estação do ano, o kigo; porém, a fúria semântica e metafórica dessas linhas está bem mais próxima do simbolismo e do surrealismo europeus, movimentos aos quais Lautréamont, em geral, é associado. “Mãos vegetais” é uma bela imagem, mas talvez soasse, a um poeta como Bashô, mera exibição de virtuosismo; “árvores invisíveis” é igualmente construção mental, diferente do registro da observação direta dos fenômenos. A organização estrutural do poema em duas partes, separadas por um travessão, aproxima-se da lógica compositiva de muitos haicais japoneses (p. ex., “Cerejas do anoitecer – / Hoje também / já é outrora”, de Issa, na tradução de Paulo Franchetti), mas o efeito causado é totalmente diverso: no haicai, mesmo a sinestesia, a metáfora e o paradoxo remetem a uma paisagem observada, ou à ação de algum elemento da natureza, sem nenhuma brecha para relações intertextuais cultas, obscuridade ou devaneios do poeta. Ao colocar em primeiro plano a sua fantasmagoria pessoal, parodiando as fantasias de Lautréamont, Casimiro de Brito, guiado “pelo rigor e pela claridade enigmática do pensamento” (CANTINHO, 2013), caminha para além da mera adaptação de uma forma poética oriental para o nosso idioma, obtendo um resultado poético denso, com originalidade formal e temática.



[1] Este poema foi assim traduzido por Paulo Leminski: “o mar escurece / a voz das gaivotas / quase branca” (LEMINSKI, 1983: 36).
[2] Casimiro de Brito: A boca na fonte, resenha publicado no n. XXVII da revista Zunái (março / 2013).
[3] A saudade dos pais também é um tema caro à poesia japonesa: “O grito do faisão / Que saudade imensa de meu pai e minha mãe” (Bashô) (in: FRANCHETTI, 2012: 80). 

sexta-feira, 15 de março de 2013

A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (IV)



2.3 Casimiro de Brito: o “rigor e a claridade enigmática do pensamento”

A poesia portuguesa das primeiras décadas do século XX, desde Orpheu até os grupos que se articularam em torno de revistas como Presença, Árvore e Prisma, não assimilou qualquer influência direta da poesia clássica japonesa, que permaneceu desconhecida até meados da década de 1950. A ausência de recepção crítica da lírica de Bashô nas letras portuguesas nesse longo período é um caso excêntrico, uma vez que os leitores europeus e norte-americanos já entraram em contato com o haicai e a cultura japonesa muito tempo antes. Conforme escreve Octavio Paz:

Na história das paixões do Ocidente pelas outras civilizações há dois momentos de fascínio diante do Japão, se esquecermos o engouerment dos jesuítas no século XVII e o dos filósofos no século XVIII: um se inicia em França em fins do século passado e, após fecundar diversos pintores extraordinários, culmina com o Imagism dos poetas anglo-americanos; outro começa nos Estados Unidos alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial e ainda não terminou. O primeiro período foi, antes de tudo, estético; o encontro entre a sensibilidade ocidental e a arte japonesa produziu várias obras notáveis, tanto na esfera da pintura – e o exemplo maior é o impressionismo – como na da linguagem: Pound, Yeats, Claudel, Eluard. No segundo período a tonalidade tem sido menos estética e mais espiritual ou moral; isto é, não só nos apaixonam as formas artísticas japonesas como também as correntes religiosas, filosóficas ou intelectuais de que são expressão, em particular o budismo. (PAZ, 1996: 171)

Uma das principais referências desse diálogo “entre a sensibilidade ocidental e a arte japonesa” a que se refere Octavio Paz é a publicação, em 1902, do livro Bashô and the japanese poetical epigram, de autoria do estudioso britânico Basil Chamberlain. Quatro anos depois, o orientalista francês Paul-Louis Couchoud publica na revista Les lettres dois importantes ensaios: Les haikai e Les épigrammes lyriques du Japon, esse último acompanhado de cerca de cem haicais traduzidos, possivelmente a partir do inglês. Conforme diz Paulo Franchetti, o segundo ensaio de Couchoud foi republicado no volume Sages et poetes d’Asie, em 1916, e o livro “correu o mundo, precedido de um prefácio de Anatole France, tornando-se uma das principais referências sobre o assunto, para os leitores de formação francesa” (FRANCHETTI: 2012, 200). Nesse mesmo ano, Julien Vocance (nome literário de Jodseph Seguin) publica uma coletânea de haicais intitulada Cent visions de guerre, e em 1921 “sistematiza as suas ideias sobre o haicai e o seu papel de exemplo de uma nova arte poética. Trata-se de Art Poétique, que saiu na revista La connaissance” (idem, 201). Apesar da contribuição dos estudos de autores franceses e britânicos sobre o haicai e a cultura japonesa, foi graças ao norte-americano Ezra Pound que “a poesia japonesa passou a ser uma referência realmente importante no Ocidente” (idem, 44), escreve Paulo Franchetti. O autor dos Cantos “fará da reflexão sobre a poesia chinesa e japonesa um dos pontos centrais da sua influente concepção de poesia e literatura” (idem). Na obra teórica e ensaística de Ezra Pound, “a poesia do Extremo Oriente não vai ser nem uma preocupação lateral de um grande poeta (esse era o caso de Camilo Pessanha), nem uma referência importante de um poeta sem nenhuma influência duradoura (como se dá com Amy Lowell, por exemplo)” (idem). Pound descobriu o haicai e as peças de teatro nô a partir de seu interesse pela escrita e poesia chinesas – ele foi o editor do livro Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para a poesia, de Ernst Fenollosa, que leu pela primeira vez em 1913, quando recebeu os originais que lhe foram entregues pela viúva do sinólogo. Nesta obra singular, “os caracteres chineses eram entendidos radicalmente como ideogramas, isto é, sinais que mantêm uma relação muito próxima com o objeto, ação ou propriedade que representam” (idem, 41). Pound irá valorizar, sobretudo, a justaposição de imagens no ideograma, “em que a relação entre as partes é de natureza metafórica” (idem, 42), recurso que utilizou na concepção estrutural de seu poema longo Os cantos (ou Cantares), que escreveu entre 1917 e 1949, no qual inseriu também personagens e episódios reais e lendários da cultura chinesa e japonesa, mesclados a citações enciclopédicas da literatura, da história e da mitologia de diferentes culturas ocidentais.

Ezra Pound foi o “inventor da poesia japonesa” para o nosso tempo, escreve Paulo Franchetti (parodiando a célebre frase de T. S. Eliot), porque “a desvinculou de uma vez para sempre das leituras que a reduziam a um exotismo sentimental e afetado, sem nenhum interesse para a poesia do Ocidente” (idem, 47), ao mesmo tempo que investiu na assimilação elementos da estética chinesa e japonesa em seu próprio trabalho poético (e recordemos aqui o poema Numa estação de metrô, um quase haicai, assim traduzido por Augusto de Campos: “A visão destas faces dentre a turba: / Pétalas num ramo úmido, escuro”). Earl Roy Minner, em texto publicado na revista de estudos Pound Newsletter, chega a afirmar que “enquanto o seu débito para com a China consiste principalmente em ideias históricas, éticas, políticas e outras, sua dívida para com o Japão é mais importante do ponto de vista de sua teoria literária e de sua técnica” (in CAMPOS, 1977: 57). Ao lado de Pound, outra referência que precisa ser citada é a do escritor norte-americano Reginald Horace Blyth, autor da importante antologia Haiku, obra em quatro volumes com traduções de poemas de Bashô, Issa, Buson e outros poetas menos conhecidos no Ocidente. Segundo Paulo Franchetti, “suas traduções e comentários aos haicai, aos senryu e aos textos zen são de valor inestimável para todo estudioso da literatura japonesa no Ocidente.” (idem). Ele conhecia profundamente “não só a literatura japonesa como ainda a chinesa e a coreana, e sua familiaridade com os poetas de língua inglesa era também invejável” (idem). Blyth tornou-se um ícone da cultura pop nas décadas de 1950 e 1960, contribuindo para a divulgação da estética e da espiritualidade japonesa, ao lado de autores como D. T. Suzuki e Allan Watts, que foram essenciais para a formação de autores como Allen Ginsberg, Gary Snyder e Jack Kerouac. Todo esse rico diálogo entre a cultura japonesa e o Ocidente, no entanto, só frutificaria no cenário poético português no final da década de 1950, quando Casimiro de Brito (nascido em 1938), em viagem de estudos na Inglaterra, entrou em contato com o haicai. Em depoimento publicado na edição XXVI da revista Zunái, o poeta português afirma:

Em 1958, numa espécie de exílio político (para me libertar do eminente recrutamento para a Guerra Colonial), fui para Londres e freqüentei o Westfield College. Era um curso de verão, organizado pela BBC, e coube-me ficar instalado nos aposentos de um professor de Poesia Oriental. Foi um deslumbramento – estar dentro de uma pequena biblioteca de poesia que eu desconhecia. E os livros de haiku deslumbraram-me. Na Universidade havia alunos de mais de 50 países e, entre eles, uma japonesa. Aproximei-me dela, contei-lhe quem era e ao que vinha: que ela me ajudasse a traduzir alguns daqueles poetas já que algumas das traduções inglesas não me agradavam. Disse-me que sim, e foram semanas, meses de trabalho delicado e quase abençoado; foi uma relação amorosa iluminada pela poesia. Quando regressei a Portugal a minha poesia transformou-se noutro mundo porque não só se desenvolvia na tradução dos famosos mestres japoneses como eu próprio comecei a escrever de outra maneira. (in Zunái, Revista de Poesia e Debates n. XXVI, março de 2013)

Fascinado pela condensação poética do haicai, sua economia verbal, sutileza e ironia, o poeta português desenvolve atividades de estudo e tradução da poesia japonesa, além de escrever, ele próprio, composições na forma do terceto e de organizar antologias com trabalhos de outros autores portugueses que se dedicaram às formas do tanka e do haicai, de modo ocasional ou sistemático (Uma rã que salta – Homenagem a Bashô. Porto: Limiar, 1995). Seu trabalho no campo da tradução, acompanhado de estudos críticos, está reunido em duas publicações: Poemas orientais, pequeno volume editado em 1962, na cidade de Faro, e o caderno Poesia japonesa, separata da revista de poesia Limiar n. 5, editada no Porto, que saiu em 1995. As traduções de Casimiro de Brito diferenciam-se daquelas realizadas por Wenceslau de Moraes na década de 1920 por não serem meros registros literais, não raro com adições explicativas ou decorativas ausentes nos textos originais. A informação semântica está aqui, o cuidado em manter a simplicidade e a coloquialidade do haicai tradicional também, mas o poeta procura preservar o estilo conciso, por vezes seco e abrupto dos textos japoneses, como nesta curiosa composição: “Narciso e biombo: / iluminam-se, branco / no branco, um ao outro” (Bashô, 1644-1694), que podemos comparar com versão similar feita por Paulo Leminski: “narciso / biombo / um ao outro ilumina / branco no branco”. A abstração deste poema, que já foi comparado com a pintura de um artista europeu de vanguarda como o suprematista russo Casimir Maliévitch, contrasta com a delicadeza de outra composição, quase uma fotografia do cotidiano: “Mulher sem filhos – / como ela é terna / com as bonecas!” (Ransetsu, 1654-1707). A metáfora, como já vimos, é uma figura quase ausente na poesia japonesa, preocupada em retratar a paisagem de modo claro e distinto, mas comparece por vezes na lírica tradicional, como nesta peça: “Mulheres no arrozal – / tudo nelas é sujo / menos o seu canto” (Raizan, 1654-1716), e ainda neste poema de refinada construção imagética: “O vento, no outono, / toma a forma do capim, / tão espesso!” (Kigin, 1624-1704). A participação do eu poético, outra raridade numa escrita poética tão impessoal, comparece aqui, associada a outra metáfora: “A cobrir os milênios / da minha ausência / o véu duma cascata” (Natsuishi Banya, 1955).

Casimiro de Brito obtém resultados poéticos consistentes em português, evitando a afetação e o exotismo, tipo rice powder poetry, males citados por Haroldo de Campos em sua crítica às traduções de poesia oriental filtradas por um simbolismo finissecular. Ao mesmo tempo que evitava os clichês associados a uma ideia romântica de “Oriente”, Casimiro de Brito não intentou uma recriação radical da estrutura do ideograma, aquilo que Haroldo de Campos chamava de “metáfora visual” e que é inseparável tanto da escrita como do pensamento japonês. A dimensão visual dessa micropoética altamente condensada permite-lhe “um extremo refinamento de percepção, um grande poder de síntese imaginativa, em consonância, aliás, com o espírito poético japonês” (CAMPOS: 1977, 65), afirma o poeta e ensaísta brasileiro, citando como exemplo a palavra yumê (“sonho” em japonês), “expressa pelos desenhos abreviados, superpostos, de vegetação crescendo + rede de pesca + cobertura + sol-pôr” (idem, 64). É impossível deixar de pensar “nos estímulos que este simples vocábulo, a partir de seu casulo gráfico, oferece à imaginação poética. É ele, por si só, um verdadeiro diorama de estratos metafóricos” (idem). “No pensamento por imagens do poeta japonês”, prossegue o autor brasileiro, “o haicai funciona como uma espécie de objetiva portátil, apta a captar a realidade circundante e o mundo interior, e a convertê-los em matéria visível” (idem, 65).

A recriação da poesia clássica japonesa para o nosso idioma, tarefa levada a cabo por Casimiro de Brito, desconsidera a dimensão visual da escrita e os jogos polissêmicos do kakekotoba mas mantém a alta precisão, a dicção enxuta e substantiva do verso japonês, sua simplicidade e espontaneidade, características de todas as artes tradicionais influenciadas pelo zen. A naturalidade da própria caligrafia japonesa, que incorpora o traçado rápido, o borrão e os contornos assimétricos e imprecisos, dificilmente poderia ser recriada em um método de tradução que valoriza o controle do acaso e o rigoroso cálculo prévio dos efeitos. Neste sentido, podemos considerar válida a observação de Paulo Franchetti, para quem esse método leva a um afastamento “do contexto de produção e recepção, bem como da função social de um dado texto em uma dada sociedade”, privilegiando as “correspondências sintáticas, semânticas e sonoras” (FRANCHETTI, 2012: 49). “Quando o poema a ser traduzido pertence a um universo de referências próximo a essa visão de literatura, o método tem resultados excelentes, como se pode ver na tradução que Haroldo de Campos fez do Un coup de dés, de Mallarmé” (idem), prossegue Paulo Franchetti, fazendo a ressalva que “na leitura do haicai, no entanto, que provém de um outro universo de referências, esses pressupostos têm mais efeitos nocivos do que positivos” (idem, 50), citando como exemplo a tradução que Haroldo de Campos fez do famoso poema da rã, de Bashô:

o velho tanque
rã salt’
tomba
rumor de água

Na opinião de Paulo Franchetti, “em face da poética de Bashô, que sempre demonstrou aversão à mera exibição técnica em haicai (...), a utilização de uma ‘palavra-valise’ à James Joyce parece completamente inadequada” (idem, 51). O autor justifica seu severo parecer argumentando que “o hokku de Bashô, célebre por inaugurar a maneira despojada e não simbólica de uma escola que se dizia acessível a crianças e incultos, converte-se em um precioso micropoema ostensivamente trabalhado com agudeza e engenho” (idem, 51) (observemos aqui o uso de palavras extraídas do vocabulário barroco, com intenção crítica; os grifos são de minha autoria). Uma outra visão sobre o tema é apresentada por Paulo Leminski em seu livro Bashô, a lágrima do peixe, onde analisa a imensa variedade de sentidos de outro conhecido poema do autor japonês:

Takotsubo yá
Hakanáki yumê wó
Nátsu no tsuki

a armadilha do polvo
sonhos flutuantes
lua de verão


ou ainda:

polvos na armadilha
sonhos pululam
a lua vermelha


Traduções: Paulo Leminski

“ ‘Flutuantes’ não dá conta, plenamente, do japonês hakanáki, verdadeira onomatopeia visual, imitativa do movimento de oscilação das águas”, escreve Leminski. “A intuição é barroca. A tessitura sonora do haicai é rica de anagramas, tranças de sons que se entrelaçam. A sílaba tsu está em ‘armadilha’ (tsubo), em ‘verão’ (nátsu) e em ‘lua’ (tsúki). Hakanáki quase rima com nátsu” (LEMINSKI: 1983, 54-55). Prosseguindo a análise do poema, o autor diz: “Em hakanáki, um japonês pode enxergar, ainda, uma aparição do verbo ‘chorar’, náku, reforçando o clima aquático. Hakanáki compõe-se de dois ideogramas: ‘fruto’ + ‘não’ = ‘sem fruto’. Hakanáki yumê, portanto, é, literalmente, ‘sonho sem fruto’.” (idem, 54) Em resposta aos que advogam em defesa da simplicidade do haicai, Leminski responde: “Assim, muita complexidade está lá, escondida dentro dos haicais, aparentemente, mais banais” (idem). Como resolver o impasse entre a recriação formal e o espírito de despojamento da filosofia zen-budista? Temos aqui um caso para a liberdade de escolha do tradutor, que pode adotar a estratégia criativa que encontrar correspondência com a sua visão particular sobre a poesia e a literatura, uma vez que nenhuma tradução será perfeitamente exata ou inexata, em especial quando se trata do haicai, com todas as suas camadas de significação, tanto semânticas quanto históricas e culturais. A tradução, assim, não busca uma verdade essencial, mas a relação estética e de pensamento entre o tradutor e o texto traduzido. O próprio Casimiro de Brito, no prefácio aos Poemas Orientais, diz:

A poesia é intraduzível, e a minha tentativa de verter para o português, de fazer poesia a partir dos haicais japoneses, sem lhes roubar a magia, o clímax oriental é, reconheço-o, demasiado arriscada. Penitencio-me dizendo que foi uma tentação, e considero estes poemas breves um pouco como poesia minha. (BRITO, 1962: 10)

A ideia da tradução poética como um novo texto original, em condições de igualdade com os poemas escritos pelo próprio poeta/tradutor, não é nova: ela deriva dos ensaios teóricos e da prática criativa de Ezra Pound, que em seu poema longo Os cantos inseriu textos traduzidos da Odisseia de Homero, de canções dos trovadores da Idade Média, entre outros, de diferentes momentos históricos e países, mesclados aos versos de sua própria lavra, sem nenhuma sinalização prévia para o leitor sobre os créditos de cada composição. O autor norte-americano considerava a tradução como persona (máscara dramática), que lhe permitia falar pela voz de grandes poetas do passado, como François Villon, Guido Cavalcanti e Artaud Daniel, e ainda de Li T’ai Po (ou Rikaku, em japonês) e Zeami (autor da peça de teatro nô Hagoromo, “O manto de plumas”). Ao lado da ideia da tradução como um tipo de heteronímia (tese formulada por Adolfo Casais Monteiro[1]), Ezra Pound desenvolveu o conceito da crítica pelo exercício no estilo de uma época – ou seja, o poeta passou a escrever poemas usando a linguagem e os recursos formais de autores da Idade Média ou do Renascimento, como forma de aprendizado e de diálogo com a tradição, visando realçar elementos poéticos pouco conhecidos nos dias de hoje. O autor norte-americano não desejava fazer de seu trabalho ensaístico e crítico-criativo uma mera arqueologia do passado literário, e sim descobrir, dentro da tradição, o que ainda era novo, ou pouco assimilado, fiel ao princípio confuciano do Make it new, que adotou como palavra-de-ordem. Quando Casimiro de Brito fala em “fazer poesia a partir dos haicais japoneses” ele apresenta uma proposta-desafio análoga à do autor norte-americano, analogia que ganha força quando pensamos que o português, assim como Ezra Pound, exercitou-se na criação conforme o estilo de uma época, nos haicais de sua própria autoria. 

Nas traduções incluídas no volume Poemas orientais (1962), notamos versos mais longos, de sintaxe regular, próxima ao ritmo da prosa. Já nas composições compiladas em Poesia japonesa (1995) há maior concisão, cortes sintáticos e ritmo mais seco, que reforçam o poder de impacto da imagem poética. Os elementos temáticos e formais desse conjunto de traduções serão incorporados e transformados na poesia do próprio Casimiro de Brito, que realiza uma notável mescla do imaginário tradicional japonês com uma sensibilidade moderna temperada pelas vanguardas europeias, que reivindicavam a síntese, a concisão, a ruptura com a lógica sintático-discursiva, a visualidade e o pensamento analógico (lembremos que Casimiro de Brito integrou um dos movimentos de renovação da poesia portuguesa, o chamado Poesia 61, ao lado de Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Tereza Horta e Gastão Cruz, aliás contemporâneo da PO-EX, liderado por Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro).





[1] Na opinião de Augusto de Campos, “O paralelo é, sem dúvida, instigante. Mas o exame em profundidade dos dois artifícios revela atitudes poéticas diversas. As personae de Pessoa são, na verdade, personalidades fictícias projetadas do próprio poeta, de dentro para fora. (...) Já as máscaras de Pound correspondem (com exceção talvez única de Mauberley) a pessoas reais de poetas que falam, em sua própria linguagem, ‘através de’ Pound: Cino, Bertran de Born, Villon, Heine, Laforgue, Corbière etc.” (CAMPOS, 1983: 25)