domingo, 31 de março de 2013
A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (VIII)
Mestres budistas comparavam a
mente humana a um espelho, cuja essência é pura e perfeita. Ao entrar em
contato com o mundo material, a superfície cristalina acumula poeira, que
recobre a sua pureza original. Shen-hsiu escreveu o seguinte poema, para
apresentar o conceito: “Este corpo é a árvore Bodhi / a mente é como um espelho
iluminado; / Empenhai-vos em mantê-la sempre limpa / Sem deixar que nela se
junte o pó” (in SUZUKI, 1993: 15). Para
“limpar a mente” dos resíduos mundanos e fazer com que ela recupere a sua natureza
de puro cristal, Shen-hsiu propunha o “método gradual” para a iluminação, que
incluía o estudo dos Preceitos morais (sila),
Meditação (dhyana) e Sabedoria
Transcendental (prajna)[1], tópicos
que integravam a vida monástica na maioria das escolas budistas, tanto as do
sul quanto as do norte da China. Rebelando-se contra o formalismo das práticas
meditativas, o quietismo e sobretudo contra a ideia de uma evolução espiritual gradual,
Hui-Neng apresentou o seguinte poema, em resposta ao de Shen-hsiu: “Não há
árvore Bodhi, / nem o cessar do brilho do espelho. Sendo tudo vazio, onde /
poderia assentar-se o pó?”. A natureza búdica da mente, para Hui-Neng, “não
persiste nem é aniquilada; não chega nem parte; não está no meio nem nas
extremidades; ela não morre nem nasce. Permanece a mesma o tempo todo, imutável
em todas as mudanças. Assim como nunca nasceu, nunca morrerá” (idem, 33). O
“método abrupto” de Hui-Neng não era a “arte de tranquilizar a mente para que
sua essência interior, pura e imaculada, pudesse extravasar os seus invólucros”
(idem), uma vez que ela já é “pura, simples e iluminadora como o sol por trás
das nuvens” (idem, 22). O reconhecimento desse princípio, para o sábio chinês,
era a iluminação súbita, que dispensava erudição, práticas de austeridades ou rigor
nas normas cerimoniais e de conduta. A busca do satori tornou-se o centro da vivência zen-budista, e os meios para
esse súbito despertar eram os mais inusitados, podendo incluir desde tarefas
domésticas, como varrer o templo, até golpes de bambu aplicados pelo mestre no
discípulo ou histórias absurdas ou enigmáticas (koans), como esta, relatada por Paulo Leminski:
Hui-Ko procurou Bodhidarma, primeiro patriarca do zen
chinês, e lhe disse:
— Não tenho paz na minha mente. Pacifica a minha
mente.
— Traz tua mente à minha presença e eu a pacifico,
responde Bodhidarma.
— Mas quando busco a minha própria mente, não consigo
encontrá-la, diz Hui-Ko.
E Bodhidarma:
— Pronto! Pacifiquei tua mente.
(LEMINSKI, 1983: 73)
A vivência profunda da
espiritualidade zen-budista está presente na poesia de Bashô, e ainda na
maneira como ele ensinava os seus discípulos, como podemos verificar nestes
aforismos do poeta japonês, que abandonou o caminho do samurai após a morte de
seu mestre para tornar-se monge andarilho:
Repita seu verso mil vezes nos lábios.
Não siga os antigos. Procure o que eles procuravam.
Respeite as regras. Então, jogue todas fora. Pela
primeira vez, você atinge a liberdade.
(in
LEMINSKI, 1983: 41-42)
Aprende do pinheiro diretamente do pinheiro; do bambu,
diretamente do bambu.
(BASHÔ, 1997: 10)
Eugênio de Andrade, em outro
momento histórico, outra dimensão geográfica e com outro repertório cultural, aproxima-se,
pelo conceito laico (e mesmo pagão) da epifania — “uma luminosa manifestação,
uma revelação clara e rara, uma clarividência essencial” (SARAIVA, 1995: 54) da
experiência zen-budista. No prefácio à sua Antologia
breve (Lisboa: Moraes Editores, 1980), o poeta português define o ato
poético como “o empenho total do ser para a sua revelação”, que ele define como
a “descida ao coração da alma, essa coragem de mostrar o que achou no caminho”,
que caracterizaria “a dignidade do poeta e, com ela, a do homem” (ANDRADE, 1980: 7-8). A tarefa do poeta seria
resistir à “desfiguração” imposta pela cultura moderna e resgatar o rosto
original do homem, “belo e tenebroso, à luz limpa do dia” (idem). Enumerando
poetas e místicos de diferentes épocas, culturas e países que considera seus
companheiros de jornada, Eugênio de Andrade escreve: “De Homero a S. João da
Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a
Cavafys, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis
o homem, eis o seu efêmero rosto” (idem, 8-9).
A rebelião do poeta seria feita “em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao
homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde
mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da
verdade última do sangue, que é também verdade da alma” (idem, 9). A tonalidade
desta breve nota é a de um manifesto, em que não são poucas as referências
românticas, como a oposição entre cultura e natureza, a busca de uma verdade
essencial, a valorização da sinceridade e da expressão subjetiva, e mesmo o
emprego de palavras como rebelião,
raízes, terra, sangue, alma. O poeta é visto de modo messiânico, como
aquele que possui as chaves mágicas para decifrar a realidade e mostrar ao
homem o seu próprio rosto. O pensamento filosófico de Eugênio de Andrade possui
diversos matizes que contrastam com as percepções de Matsuo Bashô – único
oriental citado entre os seus poetas de devoção, ao lado do chinês Li T’ai Po –
mas podemos estabelecer uma relação elucidativa entre a perspectiva idealista
do autor português e a visão sincrética do poeta samurai, que recebeu a
educação militar e cultural adequada a um guerreiro (que incluía aulas de
pintura, poesia, caligrafia e filosofia, além do treinamento no manejo de
armas), absorveu as normas de conduta confucianas e depois abraçou a mística
budista, sem nunca perder um vínculo espiritual com a natureza, herança da
cosmovisão xintoísta, presente em todas as manifestações da arte japonesa.
[1] A moralidade consiste em observar todos os preceitos
estabelecidos por Buda, tendo em vista o progresso espiritual de seus
discípulos; a meditação é o exercício destinado ao treinamento pessoal na
tranquilização, pois se a mente não for controlada pela meditação, de nada
adiantará observar mecanicamente as regras de conduta; na realidade, estas se
destinam a tranqüilizar o espírito. Sabedoria ou prajna é o poder de penetrar a natureza do próprio ser (...). Não é
preciso dizer que todas essas três disciplinas são necessárias a um budista
sincero. Mas, com o passar do tempo, depois de Buda, a Tríplice Disciplina
cindiu-se em três ramos distintos de estudo: os seguidores das regras de
moralidade estabelecidas pelo Buda tornaram-se professores do Vinaya; os yogues
da meditação incorporaram-se a várias espécies de Samadhi e até mesmo adquiriram algumas faculdades extraordinárias
(...). E finalmente, os que buscavam Prajna tornaram-se filósofos dialéticos ou
líderes intelectuais. Esse estudo unilateral da Tríplice Disciplina fez com que
os budistas se desviassem do reto caminho da vida budista, especialmente quanto
a Dhyana (meditação) e a Prajna (sabedoria ou conhecimento
intuitivo). (SUZUKI, 1993: 30)
sexta-feira, 29 de março de 2013
A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (VII)
A
observação rara, frequente na poesia de Bashô, está presente em várias peças de
Pequeno formato, especialmente na
última composição do volume, intitulada À
sombra de Victor Hugo, que é quase um oxímoro: “A sombra é sempre escura
até mesmo / a dos cisnes” (ANDRADE, 2000:
554). Além do “gosto das estruturas breves e simples, do poema, do verso, da
frase” (SARAIVA: 1995, 38), encontramos
na poesia de Eugênio de Andrade “as sonoridades cuidadas, os ritmos fluidos, a
frase pontuada; o equilíbrio entre a simplicidade e o requinte da expressão
(...); o apuramento dos sentidos; a revelação, a plenitude poética, o
sentimento do tempo, o sentido do precário” (idem), elementos que estão em
consonância com a arte poética japonesa, que valoriza especialmente a expressão
sazonal, o vínculo entre o homem e a natureza, a imperfeição e a assimetria. Um
outro aspecto da poesia de Eugênio de Andrade apontado por Arnaldo Saraiva e
que merece especial atenção é a representação da epifania, palavra de origem grega (epi, sobre, phaino,
brilhar) que o crítico português define como “uma luminosa manifestação, uma
revelação clara e rara, uma clarividência essencial” (idem, 54). O conceito, de
origem teológica, designava inicialmente “a manifestação ou o aparecimento
divino no mundo ou a festa e o período que o celebra” (idem), como o nascimento
de Cristo (caso em que o termo mais usado é teofania),
aparições de santos ou outras entidades espirituais. Mircea Eliade, em seu Tratado
de História das Religiões, define a
epifania como “manifestação que lembra ou se parece com uma manifestação
divina, uma experiência exaltante e inesperada, o súbito acesso a um
conhecimento ou prazer essencial, a percepção nítida de uma verdade imprevista,
um momento de inteligência global do real” (in SARAIVA,
1995: 53), como por exemplo as revelações obtidas em sonhos, transes xamânicos,
experiências com alucinógenos místicos ou a iluminação zen-budista, estado que
transcende a dualidade do mundo fenomênico e representa um retorno ao vazio
original da mente. Conforme observa Antonio Saraiva, o conceito de epifania
passou a ser empregado, na modernidade, por autores como James Joyce, num
contexto laico e profano, para designar experiências estéticas de revelação e deslumbramento
“perceptíveis pelos ou por alguns dos sentidos; não é uma experiência duradoura
– é uma experiência intervalar e efêmera, salva na memória” (idem, 54). A
poesia de Eugênio de Andrade revela “diversas modalidades epifânicas ou
diversos tipos de narrativa epifânica”, escreve Arnaldo Saraiva (idem, 55). No
poema Sul, que integra o volume O outro
nome da terra, por exemplo, o poeta diz:
Era verão, havia o muro.
Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente,
o silêncio sacudia as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.
(in ANDRADE, 2000: 451-452)
Nesta composição de oito versos, sem medida métrica nem divisão
estrófica, o poeta “documenta bem a passagem de um tempo e modo comum e
concreto (verão, muro, praça, pombos, cal) para um tempo e modo epifânicos, que
sem abolir a visão ou ‘evidência’ objetiva (‘assim’) implica, sobretudo, uma
evidência, uma clarividência relativa ao sentimento ou ao pensamento
escatológico” (SARAIVA, 2005: 56), o que acontece nas linhas finais do poema
(“Pensei: devíamos morrer assim. / Assim: explodir no ar”). Em outro poema
breve de Eugênio de Andrade, incluído em Pequeno
formato, o registro epifânico é menos dramático que lírico:
COMO NO INÍCIO
É a noite por fim, podes tocá-la.
Também a mão, a pequena e febril
música da mão, aí está a iluminá-la.
Agora vê-se melhor o caminho.
(in ANDRADE, 2000: 550)
A paisagem metafórica do poema, em que não falta o recurso da
sinestesia (“É a noite por fim, podes tocá-la”), prescinde de um sujeito
identificável; há um enunciador que descreve a sucessão de imagens e um
receptor a quem esse discurso visual é transmitido, mas ambos permanecem quase
invisíveis no poema, sem nada que os identifique além da própria enunciação. A
epifania acontece no próprio discurso, em que elementos simples como a noite, a mão e a música se
transfiguram para iluminar o caminho, que é trajeto, revelação e descoberta (podemos
recordar aqui o ideograma chinês que representa o Tao, que significa, ao mesmo tempo, o caminhante, o caminho e o
ato de caminhar). Conforme observa
Arnaldo Saraiva, “o fenômeno epifânico é sempre relacionável com o sujeito
enunciador do poema, que interessadamente o assinala e acusa os seus efeitos,
às vezes dentro do seu próprio corpo (‘subitamente como fonte ou ave / rompe
dentro de mim); mas ele também pode implicar e afetar outros seres, árvores,
bichos, a terra, o ar e até os nomes” (idem, 57-58). Nesta acepção, podemos
relacionar o conceito de epifania com a experiência espiritual indissociável da
prática do haicai, tal como compreendida por Bashô. Comentando o poema da rã, Alberto
Marsicano escreve em sua introdução a Trilha
estreita ao confim, que reúne os quatro principais diários de viagem do mestre
japonês:
Bashô contemplou num harmonioso entardecer uma
tranquila lagoa quando uma rã saltando sobre a água rompeu subitamente a lisa
superfície. Não com um forte ruído mas com um som claro e distinto. Ao ouvir
este som cristalino o poema fluiu quase que involuntariamente leve e simples,
sem artifício algum. O haicai é o olho do furacão, o profundo toque de um gongo
de bronze, o iridescente relâmpago que inesperadamente reluz na escuridão da
noite. o haicai é o satori, o
despertar zen que repentinamente surge no caminho.
ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante
(In Bashô: 1997, 11)
A
experiência do satori, referida por
Alberto Marsicano, é o objetivo da prática zen-budista: a tomada de consciência
do vazio original da mente (sunyata)
e a superação da percepção dualista do mundo, que nos leva ao desejo e à
aversão, elos mentais que nos aprisionam ao mundo fenomênico. Como toda
vivência espiritual profunda (os êxtases místicos de São João da Cruz ou de
Santa Teresa de Ávila, na tradição cristã, ou a vivência do sagrado em Rumi e
Attar, na tradição sufi, por exemplo), o satori
não pode ser descrito em palavras; segundo Paulo Leminski, é algo “pessoal e
intransferível, impossível de programar, prever ou administrar (o desejo de
atingir a iluminação, inclusive, dizem, é o maior obstáculo para atingi-la)” (LEMINSKI, 1983: 68). Apesar da impossibilidade
de se registrar na forma escrita as sensações e percepções da jornada
espiritual, existe vasta literatura sobre o assunto, desde interpretações filosóficas
ou teológicas da vivência mística até poemas ou relatos em prosa que de certa
forma “transmitem” algo dessa experiência. Segundo relatos dos antigos historiadores
chineses, técnicas indianas de meditação (dhyana,
em sânscrito; ch’an, em chinês; zen, em japonês) foram introduzidas na
China desde o século II a. C. por Bodhidarma, o primeiro patriarca do
zen-budismo, e de lá foram levadas para a Coreia, o Tibete e o Japão, mesclando-se com tradições locais como
o taoísmo, o xintoísmo, o confucionismo, cultos devocionais e práticas mágicas
ou esotéricas. O mestre mais reverenciado da tradição zen-budista é Hui-Neng,
que teria ensinado no século VI no Mosteiro da Ameixa Amarela. A respeito deste
sábio chinês escreve Paulo Leminski:
A assim chamada Doutrina Lanka de Bodhidarma foi transmitida por
muitas gerações a Hui-Neng, homem de origem humilde, um lenhador analfabeto,
ideias revolucionárias e duradoura influência. Nascido em Fan-Yang, a sudoeste
de Pequim, Hui-Neng perdeu o pai muito cedo. E levava vida penosa, sustentando
a mãe como apanhador e vendedor de lenha.
Aos vinte e quatro anos, vendendo lenha na cidade, ouviu alguém
recitando o Sutra do Diamante, uma das escrituras hindus traduzidas para o
chinês. Hui-Neng quis saber mais. Enviado a Hupei, submeteu-se à direção de
Hung-Jen, o quinto patriarca, tornou-se monge e acabou superior do mosteiro
Fa-Hsing, recebendo a dignidade de patriarca das mãos do próprio Hung-Jen.
Esta transmissão do patriarcado consistia na entrega do manto
pessoal e da tigela de pedir esmolas.
Atuou por trinta e sete anos, atraindo os mais famosos mestres Zen
da época, incluindo os quarenta e três ‘herdeiros da lei’, que disseminaram
seus ensinamentos por toda a China, o Sudoeste Asiático, a Coreia e o Japão.
Do pensamento de Hui-Neng, chegou-nos um texto, “A Escritura
Plataforma”, sermão pronunciado pelo sexto patriarca, no mosteiro Tan-fan.
De Hui-Neng descendem, espiritualmente, Bashô e seu haicai, bem
como as artes zen, das quais o haicai se alimentou. (Idem, 78-79)
quarta-feira, 27 de março de 2013
PROGRAMAÇÃO DE ABRIL DA CURADORIA DE LITERATURA E POESIA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO
CLUBE
DE LEITURA DE POESIA: ANELITO DE OLIVEIRA
O poeta, editor e ensaísta
Anelito de Oliveira conversará com o público sobre a sua carreira literária e
fará uma leitura de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer
perguntas ao poeta, para um bate-papo.
Quarta-feira, dia 10/04/13, das
19h30 às 21h
Sala de Debates –
JÚLIO
CÉSAR MORTO POR UM DISPARO DE BROWNING
Ricardo Corona, poeta, tradutor e editor da revista Bólide apresentará uma performance
poética, a partir do conceito de que “livro” e “poesia” estão situados num
mesmo espaço. Quando o livro não é mero suporte, mas poesia. Quando é objeto
que participa da linguagem poética, num movimento que o aproxima do espaço da
ação performativa e vice-versa. Quando autor,
livro, texto, imagem se potencializam no espaço da performance. Na ocasião,
haverá o lançamento do livro ¿Ahn? (edições brasileira e
espanhola), de Ricardo Corona, e do primeiro número da revista de literatura e
arte Bólide.
Terça-feira, dia 23/04/13, das
19h30 às 21h
Sala de Debates
POESIA
DOS 4 CANTOS: NOITE LIBANESA
Poesia
dos Quatro Cantos é uma atividade mensal dedicada à divulgação da poesia
internacional, num formato que inclui a leitura com danças e músicas típicas de
cada país, nos intervalos das leituras. Em março, será feita a apresentação de
uma Noite Libanesa com a poeta Francesca Cricelli, com a participação dos músicos Claudio Kairouz,
Rogério de Queiroz, William Bordokan, Semi el Khouri Bordokan e da dançarina Cristina Antoniadis Bordokan.
Quarta-feira, dia 24/04/13, das
20h30 às 22h
Sala Adoniran Barbosa
MENU DE
POESIA
Recital dedicado à obra do
poeta carioca Rodrigo de Souza Leão, organizado por Maria Alice Vasconcelos.
Quinta-feira,
dia 25/04/2013, das 20h30 às 22h
Praça
Mário Chamie
POEMAS
À FLOR DA PELE
Sarau
poético realizado pelo grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de
músicos e atores. Haverá também o lançamento de livros de poesia de novos
autores.
Sexta-feira, dia 26/04/13, das
20h30 às 22h
Praça Mário Chamie
terça-feira, 26 de março de 2013
domingo, 24 de março de 2013
POEMAS DE EUGÊNIO DE ANDRADE
AS GAIVOTAS
As gaivotas. Vão e vêm. Entram
pela pupila.
Devagar, também os barcos entram.
Por fim o mar.
Não tardará a fadiga da alma.
De tanto olhar, tanto
olhar.
VARIAÇÃO SOBRE UM
TEMA ANTIGO
Vem de tão longe que tenho piedade
dos seus cães: abro a porta, aceito
a festa dos animais.
Aproximou as mãos do fogo
e encontrou a flauta, levou-a
à boca: então o silêncio brilhou
acariciado.
AS JANELAS
As janelas
por onde entram as silvas,
a púrpura pisada,
o aroma das tílias, a luz
em declínio,
fazem deste abandono
uma beleza devastadora
e sem contorno.
MULHERES DE PRETO
Há muito tempo que são velhas, vestidas
de preto até a alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
Pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.
ROSA DE AREIA
Enquanto
um calor mole nos tira a roupa
e mesmo nus sobre a cama
os corpos continuam a pedir água
em vez doutro corpo,
penso no tempo em que o suor
e a saliva e o odor e o esperma
faziam dessa agonia
a alegria
a que chamávamos amor.
FRÉSIAS
Uma pátria tem algum sentido
quando é a boca
que nos beija a falar dela,
a trazer nas suas sílabas
o trigo, as cigarras,
a vibração
da alma ou do corpo ou do ar,
ou a luz que irrompe pela casa
com as frésias
e torna, amigo, o coração tão leve.
(Do livro Rente ao
dizer, 1992)
quinta-feira, 21 de março de 2013
A RECEPÇÃO CLÁSSICA DA POESIA JAPONESA EM PORTUGAL (VI)
2. 4 De Eugênio de Andrade a Albano Martins
Uma rã que salta – Homenagem a Bashô (Porto:
Limiar, 1995) é um elegante volume que apresenta traduções e poemas originais
que dialogam com o mais conhecido de todos os haicais japoneses – “No velho
tanque / uma rã salta – mergulha. / Ruído na água”, de Bashô. A antologia, organizada
por Casimiro de Brito para o Pen Club português, apresenta ensaio introdutório
do estudioso inglês Stephen Reckert, professor da Universidade de Londres e
autor de Beyond Chrysanthemus (Oxford Press, 1993), e poemas escritos por vinte
autores de língua portuguesa, entre eles Eugênio de Andrade (1923-2005),
Antonio Ramos Rosa (n. 1924), Albano Martins (n. 1930), Yvette Centeno (n.
1940), Maria Alzira Seixo (1941) e o brasileiro Murilo Mendes (1901-1975). No final do volume, foi incluído um caderno
com traduções de Bashô realizadas por outros nomes de importância na literatura
portuguesa, como Jorge de Sena (1919-1978), Ana Hatherly (n. 1929) e Liberto
Cruz (1935), e ainda dos brasileiros Paulo Franchetti (1954) e Elsa Taeko Doi.
A leitura atenta desta antologia revela enorme diversidade de dicções e
estilos, que dialogam de maneira criativa com temas e técnicas da poesia
japonesa tradicional, sem intenção caricatural ou mimética. Casimiro de Brito
abre a mostra com a sua renga À sombra de
Bashô, que intercala haicais do autor japonês com outros de sua própria lavra,
num diálogo já examinado neste capítulo. Eugênio de Andrade, que aparece em
seguida, multiplica as três linhas do haicai em três tercetos completos,
autônomos, aos quais adiciona um verso isolado, totalizando dez versos:
HOMENAGEM A
BASHÔ
As
cigarras ardem
nos
ramos do verão
como
lenha verde.
Um
rumor pueril
e doce
de abelhas
enganava
a sede.
No cimo
da torre
da
praça mais branca
é que o
sol se despe,
e dança
dança dança.
O
primeiro terceto, fortemente imagético, com métrica próxima à redondilha menor
(com versos de cinco e seis sílabas), inclui o signo da estação do ano, o kigo (“nos ramos do verão”) e o olhar do
poeta está voltado às pequenas coisas da natureza, como cigarras e ramos de
árvore, mostrados de maneira metafórica, que atribui um brilho virtuosístico à
cena observada – “As cigarras ardem / (...) / como lenha verde”. No segundo terceto, permanece o foco nos
seres de menor dimensão do reino animal, no caso, as abelhas, mas a objetividade do haicai é perdida com a
adjetivação retórica (pueril, doce) e
com a abstração metafórica da imagem. Na terceira composição, Eugênio de
Andrade alcança maior precisão de imagens, nos dois versos iniciais, e conclui o
poema com uma inesperada prosopopéia, em que o sol, convertido em personagem,
despe-se da luz e “dança dança dança”, sendo o quarto verso – inexistente no
haicai – uma possível citação de Une
saison en enfer, de Rimbaud (“Fome, sede, gritos, dança, dança, dança,
dança”, lemos na tradução de Ledo Ivo, in
RIMBAUD, 1982: 52). A cena criada por
Eugênio de Andrade neste poema foge das convenções do haicai, mas, pela imagem
inusitada, lúdica, próxima ao imaginário das crianças, não destoa da tradição
inaugurada por Bashô, a quem o poema é dedicado no título. O apreço do poeta
por esse pequeno conjunto de (quase) haicais pode ser avaliado por sua inclusão
no livro Pequeno formato (1997), publicado por Eugênio de Andrade dois anos após o
lançamento da antologia Uma rã que salta.
A sensibilidade poética do autor, no entanto, submeteu os tercetos a uma
rigorosa revisão estilística, a começar pelo título, que muda para Rumores de verão, excluindo a óbvia
referência metalingüística do título anterior. O primeiro terceto, talvez o
mais virtuosístico, foi reelaborado, perdendo um pouco do brilho original mas ganhando maior proximidade com o espírito do haicai: “As cigarras cantam, / como no inverno / arde
a lenha verde”, imagem simples e eficaz,
com economia de recursos e alta
definição de contornos. Já o segundo terceto sofreu a alteração de uma única
palavra, que mudou completamente o seu sentido: em lugar de “Um rumor pueril /
e doce de abelhas / enganava a sede”,
o poeta escreve agora: “Um rumor pueril / e doce de abelhas / acrescenta a sede”, mudança imprevista que
adiciona uma discreta ironia ao verso. A terceira estrofe muda completamente:
em vez de “No cimo da torre / da praça mais branca / é que o sol se
despe”, o poeta escreve agora: “Quando o sol avista /os flancos do mar /
despe-se a correr, / e dança dança dança” (in ANDRADE,
2000: 545), substituindo a paisagem quase estática da versão anterior por uma
imagem em movimento, que recorda a desmesura de uma composição de Bashô: “o dia
em chamas / joga no mar / o rio mogâmi”, na tradução de Paulo Leminski.
Rumores de verão é a peça de abertura de Pequeno formato, conjunto de 30 poemas breves, em que predominam os
dísticos, tercetos e quartetos; de todos os livros de Eugênio de Andrade, este
é o que apresenta maior economia verbal. A simplicidade, a presença da
natureza, dos animais e das quatro estações, a observação rara e as ações
imprevistas, elementos característicos do haicai, predominam neste volume,
embora poucas peças possam ser chamadas, a rigor, de haicais; talvez apenas o Jardim de Lou Lim Leoc, que diz: “Deste jardim o que levo comigo / é um ramo
de bambu para servir / de espelho ao resto dos meus dias” (idem, 551), terceto
antecedido pelo dístico intitulado Templo
da barra: “O verde dos bambus mais altos é azul / ou então é o céu que pousa
nos seus ramos” (idem). A imagética dessas composições é japonesa, sendo o
bambu uma imagem recorrente na pintura sumiê
e em diversos haicais, como neste poema de Buson, traduzido por Paulo
Franchetti: “Com a luz do relâmpago / Barulho de pingos – / Orvalho nos bambus”
(in FRANCHETTI, 2012: 100). A proximidade
na página entre os dois poemas, um de três versos, o outro de dois versos, sem
uma relação sintática ou referencial entre eles – com exceção da palavra bambu – remete ainda à forma do tanka, em que as duas estrofes têm certa
autonomia, relacionando-se por analogia. A justaposição de sentenças sem um
nexo lógico entre elas, à maneira de uma montagem cinematográfica, é um recurso
estrutural da poesia japonesa, presente no tanka
e também no haicai, como neste poema de Bashô: “Um corvo pousado / Num ramo
seco – / Entardecer de outono” (in FRANCHETTI,
2012: 128). Podemos encontrar vários exemplos dessa técnica nos poemas de Pequeno formato, como neste poema de
cinco linhas, intitulado Cantam na
madrugada: “À beira / d’água a luz / é em mim que tem morada: / tão longe /
ainda a última barca” (ANDRADE, 2000: 553), em que há um claro corte entre os
três primeiros versos e os dois seguintes, que se relacionam de maneira
metafórica, assim como as estrofes de um tanka
tradicional. A justaposição de cenas e ações
simultâneas é ainda mais expressiva nessa quadrinha, intitulada Verão, escrita em versos de dez sílabas:
“Era verão, pela varanda entrava / a
madura ondulação do trigo, / o grito lancinante dos pavões, / o cavalo na
sombra ardendo em cio” (ANDRADE, 2000: 547), em que não faltam o
signo da estação do ano, os animais e vegetais integrados numa ordenação
cósmica.
segunda-feira, 18 de março de 2013
A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (V)
Todos esses elementos construtivos estão
presentes no ambicioso projeto que Casimiro de Brito denominou LIVRO DOS HAIKU,
obra em progresso desenvolvida desde 1958 que será constituída de 14 livros,
sendo que apenas dois foram publicados até a presente data: 1) À sombra de Bashô (renga que intercala haicais traduzidos do poeta japonês com outros
de autoria do próprio Casimiro de Brito); 2) renga com Ban’Ya; 3) (Elementos, estações); 4) Eros mínimo; 5) Devastação; 6) Da comoção;
7) Através do ar (editado no Japão,
em quatro línguas, em parceria com Ban’Ya); 8) Amando, escrevendo; 9) Para
além; 10) Outras músicas; 11) Desprendimento; 12) No amor tudo se move; 13 e 14) antologias de haikus antigos e contemporâneos. O primeiro livro deste ciclo, À sombra de Bashô, uma elegante
publicação em formato vertical e textura roxa na capa e contracapa, de 14,5cm por
35cm, é um conjunto de 110 poemas alinhados na forma de renga, gênero poético japonês em que dois ou mais poetas
participam, intercalando os versos. Conforme escreve Shuichi Kato, “cada
um faz uma estrofe relacionada exclusivamente
à última estrofe composta, sem nenhuma necessidade de considerar as estrofes
anteriores.” (KATO, 2011: 94). “O fluir
do renga não é planejado”, afirma o autor
japonês, “ele segue conforme as ideias que surgem no momento, ora mudando-se o
tema, ora o cenário, ora a emotividade (idem).” Nessa forma de fazer poético
regida pela mobilidade, casualidade e surpresa, sem uma unidade ou foco de
interesse, o encanto reside no “encontro inesperado”, na “engenhosidade” e na
“retórica” de cada estrofe apresentada (idem).
Em À sombra de Bashô há um elemento
insólito adicional, que é o diálogo involuntário de um poeta-samurai japonês do
século XVII com um autor português do século XX, que responde aos haicais de
Bashô, traduzidos diretamente do idioma original e apresentados em itálico, com
outros haicais, concebidos de maneira paródica (no sentido original da palavra,
que em grego significa “canto dialogado”). Assim, o conhecido poema de Bashô “No
velho tanque – / uma rã salta, mergulha – / ruído na água” é seguido por esta
composição de Casimiro de Brito: “Na página branca / na branca voz – outra rã /
salta. Silêncio”, que introduz, sub-repticiamente, uma terceira voz na renga, a do simbolista francês Stephane
Mallarmé, representado por algumas de suas obsessões – o silêncio, a página em
branco e o acaso. Outro poema de Bashô, “O mar escurece / ouço grasnar os patos
/ vagamente brancos[1]” recebe
a seguinte resposta criativa de Casimiro de Brito: “Nuvem deitada / Os olhos
espreitam o peixe / que vai saltar”, em que a metáfora e o close cinematográfico de uma imagem inusitada respondem às
sinestesias do poema anterior. O diálogo poético estabelecido por Casimiro de
Brito com Matsuo Bashô não hesita em subverter o sentido dos poemas com os
quais conversa, nem guarda pudores em relação a princípios do haicai
tradicional, injetando o sensualismo (ausente na lírica do poeta-samurai),
metáforas complexas, citações metalinguísticas, a presença ostensiva do eu
lírico e referências urbanas que denunciam o poeta como um cidadão da
modernidade, em contraste com o mundo místico, simples e rural de um Japão que
não mais existe (tornou-se literatura). Alguns exemplos da riqueza imagética
das composições de Casimiro de Brito:
42
Aproximam-se as patas
invisíveis do sol –
de sombras calçadas.
58
O sol adormece
no seu lençol de nuvens
– insônia vermelha.
60
As patas do sol
aproximam-se, invisíveis,
da relva do corpo.
72
Cidade caótica –
a borboleta atravessa a
rua
com o sinal vermelho.
Podemos recordar, lendo estes poemas, de
alguns haicais de Bashô que colocam em primeiro plano a imagem rara, como esta
peça traduzida por Paulo Leminski : “chuva de primavera / a água escorre do
teto / pelo ninho de vespas” (in LEMINSKI, 1983: 51), ou ainda: “relampagueia / através das trevas / a
garça ecoa” (idem, 50). Bashô, samurai sem mestre (ronin) que tornou-se monge zen-budista, tematiza o amor universal, a compaixão por
todos os seres vivos, de todos os gêneros e condição social, até mesmo pelas
plantas e os insetos (“sob o mesmo teto / dormem rameiras, a lua / e também o
trevo”, na tradução de Casimiro de Brito), mas nada fala sobre o amor erótico
(embora fosse contemporâneo dos Livros de
primavera, romances pornográficos em voga na época, e dos rengas satíricos produzidos por
comerciantes e soldados); já o poeta português elege esse tema como um dos
pontos centrais de seu labor criativo, como podemos ler nesta composição de
extrema sutileza e delicadeza: “Cabelos que vou pentear / a noite inteira. O
vestido / junto à lareira”. Em outros momentos da renga, Casimiro de Brito inclui haicais de caráter mais filosófico,
como se fossem aforismos:
64
O mundo não vou mudar –
deixa-me sacudir a areia
das tuas sandálias
90
A morte não existe.
Onde secam ervas foi
água,
que se partiu triste.
102
Tanta luz feliz
Por tão pouco tempo! Amanhã
Estaremos velhos.
110
Talvez a morte não
exista. Talvez seja apenas
viagem, flutuação.
A afinidade entre o haicai e o aforismo
foi percebida por Maria João Cantinho, que, na resenha do livro mais recente de
Casimiro de Brito, A boca da fonte
(Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim – Editora Unip. Lda., 2012), escreve: “A
estética do haiku tem, ainda, vários
pontos de afinidade com o aforismo, pela mesma retórica, pelo mesmo sentido de
economia e de rigor poético”, motivo pelo qual “tenha entrado na literatura
ocidental pela estética do fragmento, tão cara aos poetas alemães românticos,
tendo como cultor máximo do gênero o poeta Novalis[2]” (CANTINHO, 2013). O aforismo e o fragmento estão presentes em
diversas obras do autor português, relata a autora, citando livros como A arte da respiração, editado pela D.
Quixote (1988), Da frágil sabedoria,
(2001), Fragmentos de Babel (2007) e Arte de bem morrer (2007), aos quais
podemos acrescentar Na via do mestre
(2010), conjunto de 81 poemas-aforismos que dialogam com o Tao te king, do sábio taoísta chinês Lao Zi, que viveu no sexto
século antes de Cristo. “A peculiaridade e o próprio sentido desta estética do
fragmento nasce do próprio instante e da concentração temporal nele existente,
do Aqui e do Agora que se abrem na sua leitura”, escreve a autora (idem). O
tempo do poema é o tempo presente; mesmo a recordação evocada de situações
localizadas em outras coordenadas espaço-temporais se concretiza poeticamente a
partir da rememoração / refabulação feita no agora. Ou ainda: o poema cria o
seu próprio tempo, que se manifesta na duração da leitura, e o seu próprio
espaço, que é o branco da página. Conforme diz Maria João Cantinho, “o poema
conquista a sua plenitude à luz da organicidade e da estruturação que dele
irradia, da sua própria concentração temporal e espacial”. Por essa razão, “cada
poema deve ser lido ao centro, para que, da concentração do olhar, surja também
a contemplação da origem e do fim do poema, da palavra e da coisa” (idem). Partindo
desses pressupostos, afirma a autora que “a estética do haiku ou do fragmento recusa a ideia de um acabamento ou de uma
definição da obra e esta vai-se fazendo à medida que se escreve cada poema,
definindo-se precisamente pela ausência da sua definição” (idem). Desse modo, a
poesia concentrada colhe, em cada verso, “a imperfeição e o segredo, o
inesperado” (idem). Os vetores conceituais apresentados por Maria João Cantinho
em seu texto são instigantes pontos de partida para uma discussão do conjunto
de cem haicais que Casimiro de Brito compilou em seu livro A boca da fonte. A série não tem unidade temática, nem é dividida
em focos de interesse; os poemas são numerados e alinhados em grupos de dois, quatro
ou cinco por página, sem um critério de organização claramente identificável.
Os haicais de Casimiro de Brito não têm rimas e a métrica não é sempre exata,
embora esteja próxima das medidas japonesas, de 5-7-5 sílabas. O autor
prescinde do signo da estação do ano, o kigo,
mas investe na concisão, na economia sintática e nos cortes elípticos, e por
vezes dialoga com imagens e recursos da poesia japonesa clássica, como acontece
nesta peça: “Vagueiam pela casa / o
homem, a mosca e o ar -- / ninguém descansa”, onde a enumeração de personagens
humanos e não-humanos em um mesmo cenário e situação recorda o princípio da
compaixão budista por todos os seres vivos, tema de numerosos haicais de Bashô,
como este poema, traduzido por Kimi Takenaka e Alberto Marsicano: “em profundo
silêncio / o menino, a cotovia / o banco crisântemo” (BASHÔ, 1997: 10). A reflexão filosófica
é a tonalidade que predomina na maioria das composições de A boca na fonte, em outro ponto de contato com os aforismos de
autores alemães como Nietzsche e Novalis; essa “busca do primordial, do ato de
beber diretamente da fonte”, escreve Maria João Cantinho, está contida já no
título da obra, que alude à imersão “no sentido da natureza e simultaneamente
da linguagem” (idem). A inflexão filosofante, sob o signo da água, aparece já
na peça de abertura do volume: “Não separes a água / da sua espuma – / a vida é
só uma” (BRITO, 2010: 7), que parece
responder aos axiomas de Tales de Mileto (“tudo é água”) e Heráclito de Éfeso
(“ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”), bem como à tradicional imagem
budista que representa o mundo fenomênico como algo temporário, mutável, sem
realidade permanente, tal como a espuma nas águas de um rio. Casimiro de Brito,
divergindo da ótica budista, parece dizer o oposto: que essência e aparência,
substância e acidente formam uma unidade (“a vida é só uma”). O elemento líquido aparece em diversas
composições do livro, em geral com o mesmo viés existencial ou filosofante, por
vezes com timbre melancólico: “Silêncio. Ouçam / a vida – água correndo / cada
vez mais triste” (idem, 16), que recorda a imagem da clepsidra, na poesia de
Camilo Pessanha; “Em cada pedra / um rio que não cessa / de louvar as margens”
(idem, 26); “Lágrimas que são / cascata pura. Outras vezes / avalanche mortal”
(idem, 28). A água, símbolo da
mobilidade, fluidez, mutação e brevidade dos fenômenos, é um dos
motivos-condutores de A boca na fonte,
ao lado de outros elementos da natureza, como as montanhas, as vacas, os
bambus, os gatos e os figos, entre muitos outros. Conforme Maria João
Cantinho,
Se os elementos e a força da terra e da natureza perpassam
a sua poética, sob as mais variadas formas, desde a ínfima gota de chuva ou
grão de areia até ao enigmático silêncio das constelações, também o onírico
deflagra, a todo o instante, para nos recordar a brevidade da vida e do
instante: “Viagem nocturna –/ regresso à origem do sonho/donde nunca saí.
(CANTINHO, 2013)
Morte, sonho, infância, destino e
linguagem são outros temas que aparecem nesta coletânea de haicais, que compõem
uma espécie de diário íntimo do poeta, um registro de lembranças (reais ou inventadas),
terrores, desejos, obsessões. O tema mais recorrente talvez seja o da infância,
presente em dez poemas, em que se destaca um subtema doloroso, o da orfandade:
“A mãe a perdi / no dia em que nasci -- / amor no exílio” (BRITO, 2012: 14); “A
mãe não me deu / à luz. Passou-me duma nuvem / para outra” (idem, 12); “O pai
ao colo / do filho que traz no colo. / Os dois um só” (idem, 12). A infância é
percebida pelo poeta como duas realidades distintas: a biológica, que ele
recorda com saudade[3] – “O
cheiro da casa / que já não há: o sabor / dos figos da infância” (idem, 15) e a
atemporal, uma infância infinda, cujo único limite é a morte: “Acompanha-me /
sem nenhuma idade / a criança que fui” (idem, 22); “Infância sem fim -- /
enquanto a morte, felina / se vai instalando” (idem, 19). Thanatos é a
contraparte do elogio ao Menino, e está presente numa das mais belas composições
do volume: “Caminho devagar -- / viverei menos se caminhar / mais depressa?”
(idem, 21). As peças mais originais do livro, no entanto, são as sete que
comparecem nas páginas finais, sob o título Cf.
Lautréamont. Traçar um paralelo entre a poesia clássica japonesa, com todo
o seu lastro zen-budista, e a prosa cruel de Isidore Ducasse parece um
paradoxo, ou mesmo impossibilidade, mas Casimiro de Brito consegue sair-se bem
na dificultosa empresa, fazendo uma releitura intertextual focada na imagética surrealizante,
como na peça de abertura da série: “A terra não passa / de um imenso cu celeste
/ fremindo, cantando”. Claro, este já não é um haicai stricto sensu, mas um terceto que estabelece o diálogo possível
entre elementos na estética japonesa – concisão, fala popular, imagens raras, relação
Céu-Terra, o imprevisto – e o repertório linguístico e temático dos Cantos de Maldoror, como a pederastia
(indicada, de maneira metonímica, na palavra cu), a imaginação fantástica ou bizarra, a atribuição de
características humanas a formas inanimadas (este “cu celeste / fremindo,
cantando”, que recorda ainda o William Burroughs de O homem que ensinou o seu cu a falar). Em outro poema da série,
Casimiro de Brito escreve: “Mãos vegetais / raízes de árvores invisíveis /
trepando nas veias”. Neste poema, ainda mais estranho que o anterior, as
aliterações em v e s podem ser comparadas aos trocadilhos e
jogos verbais da poesia japonesa, como o kakekotoba,
e as “árvores invisíveis”, numa leitura um pouco forçada, podem remeter ao
signo da estação do ano, o kigo;
porém, a fúria semântica e metafórica dessas linhas está bem mais próxima do
simbolismo e do surrealismo europeus, movimentos aos quais Lautréamont, em
geral, é associado. “Mãos vegetais” é uma bela imagem, mas talvez soasse, a um
poeta como Bashô, mera exibição de virtuosismo; “árvores invisíveis” é igualmente
construção mental, diferente do registro da observação direta dos fenômenos. A organização
estrutural do poema em duas partes, separadas por um travessão, aproxima-se da
lógica compositiva de muitos haicais japoneses (p. ex., “Cerejas do anoitecer –
/ Hoje também / já é outrora”, de Issa, na tradução de Paulo Franchetti), mas o
efeito causado é totalmente diverso: no haicai, mesmo a sinestesia, a metáfora
e o paradoxo remetem a uma paisagem observada, ou à ação de algum elemento da
natureza, sem nenhuma brecha para relações intertextuais cultas, obscuridade ou
devaneios do poeta. Ao colocar em primeiro plano a sua fantasmagoria pessoal,
parodiando as fantasias de Lautréamont, Casimiro de Brito, guiado “pelo rigor e
pela claridade enigmática do pensamento” (CANTINHO,
2013), caminha para além da mera adaptação de uma forma poética oriental para o
nosso idioma, obtendo um resultado poético denso, com originalidade formal e
temática.
[1]
Este poema foi assim traduzido por Paulo Leminski: “o mar escurece / a voz das
gaivotas / quase branca” (LEMINSKI, 1983: 36).
[2] Casimiro de Brito: A boca na fonte,
resenha publicado no n. XXVII da revista Zunái (março / 2013).
[3] A
saudade dos pais também é um tema caro à poesia japonesa: “O grito do faisão /
Que saudade imensa de meu pai e minha mãe” (Bashô) (in: FRANCHETTI, 2012: 80).
sexta-feira, 15 de março de 2013
A RECEPÇÃO DA POESIA CLÁSSICA JAPONESA EM PORTUGAL (IV)
2.3 Casimiro de
Brito: o “rigor e a claridade enigmática do pensamento”
A poesia portuguesa das primeiras décadas do século XX,
desde Orpheu até os grupos que se
articularam em torno de revistas como Presença,
Árvore e Prisma, não assimilou qualquer influência direta da poesia clássica
japonesa, que permaneceu desconhecida até meados da década de 1950. A ausência de
recepção crítica da lírica de Bashô nas letras portuguesas nesse longo período
é um caso excêntrico, uma vez que os leitores europeus e norte-americanos já
entraram em contato com o haicai e a cultura japonesa muito tempo antes.
Conforme escreve Octavio Paz:
Na história das paixões do Ocidente pelas outras civilizações há dois
momentos de fascínio diante do Japão, se esquecermos o engouerment dos
jesuítas no século XVII e o dos filósofos no século XVIII: um se inicia em
França em fins do século passado e, após fecundar diversos pintores
extraordinários, culmina com o Imagism dos poetas anglo-americanos;
outro começa nos Estados Unidos alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial e
ainda não terminou. O primeiro período foi, antes de tudo, estético; o encontro
entre a sensibilidade ocidental e a arte japonesa produziu várias obras
notáveis, tanto na esfera da pintura – e o exemplo maior é o impressionismo –
como na da linguagem: Pound, Yeats, Claudel, Eluard. No segundo período a
tonalidade tem sido menos estética e mais espiritual ou moral; isto é, não só
nos apaixonam as formas artísticas japonesas como também as correntes
religiosas, filosóficas ou intelectuais de que são expressão, em particular o
budismo. (PAZ, 1996: 171)
Uma das principais referências desse diálogo “entre a
sensibilidade ocidental e a arte japonesa” a que se refere Octavio Paz é a
publicação, em 1902, do livro Bashô and
the japanese poetical epigram, de autoria do estudioso britânico Basil
Chamberlain. Quatro anos depois, o orientalista francês Paul-Louis
Couchoud publica na revista Les
lettres dois importantes ensaios: Les
haikai e Les épigrammes lyriques du
Japon, esse último acompanhado de cerca de cem haicais traduzidos,
possivelmente a partir do inglês. Conforme diz Paulo Franchetti, o segundo
ensaio de Couchoud foi republicado no volume Sages et poetes d’Asie, em 1916, e o livro “correu o mundo,
precedido de um prefácio de Anatole France, tornando-se uma das principais
referências sobre o assunto, para os leitores de formação francesa” (FRANCHETTI:
2012, 200). Nesse mesmo ano, Julien Vocance (nome literário de Jodseph Seguin)
publica uma coletânea de haicais intitulada Cent
visions de guerre, e em 1921 “sistematiza as suas ideias sobre o haicai e o
seu papel de exemplo de uma nova arte poética. Trata-se de Art Poétique, que saiu na revista La connaissance” (idem, 201). Apesar da contribuição dos estudos de
autores franceses e britânicos sobre o haicai e a cultura japonesa, foi graças
ao norte-americano Ezra Pound que “a poesia japonesa passou a ser uma
referência realmente importante no Ocidente” (idem, 44), escreve Paulo
Franchetti. O autor dos Cantos “fará
da reflexão sobre a poesia chinesa e japonesa um dos pontos centrais da sua
influente concepção de poesia e literatura” (idem). Na obra teórica e
ensaística de Ezra Pound, “a poesia do Extremo Oriente não vai ser nem uma
preocupação lateral de um grande poeta (esse era o caso de Camilo Pessanha),
nem uma referência importante de um poeta sem nenhuma influência duradoura
(como se dá com Amy Lowell, por exemplo)” (idem). Pound descobriu o haicai e as
peças de teatro nô a partir de seu interesse pela escrita e poesia chinesas –
ele foi o editor do livro Os caracteres
da escrita chinesa como instrumento para a poesia, de Ernst Fenollosa, que
leu pela primeira vez em 1913, quando recebeu os originais que lhe foram
entregues pela viúva do sinólogo. Nesta obra singular, “os caracteres chineses
eram entendidos radicalmente como ideogramas, isto é, sinais que mantêm uma
relação muito próxima com o objeto, ação ou propriedade que representam” (idem,
41). Pound irá valorizar, sobretudo, a justaposição de imagens no ideograma,
“em que a relação entre as partes é de natureza metafórica” (idem, 42), recurso
que utilizou na concepção estrutural de seu poema longo Os cantos (ou Cantares),
que escreveu entre 1917 e 1949, no qual inseriu também personagens e episódios
reais e lendários da cultura chinesa e japonesa, mesclados a citações
enciclopédicas da literatura, da história e da mitologia de diferentes culturas
ocidentais.
Ezra Pound foi o “inventor da poesia japonesa” para o nosso
tempo, escreve Paulo Franchetti (parodiando a célebre frase de T. S. Eliot),
porque “a desvinculou de uma vez para sempre das leituras que a reduziam a um
exotismo sentimental e afetado, sem nenhum interesse para a poesia do Ocidente”
(idem, 47), ao mesmo tempo que investiu na assimilação elementos da estética
chinesa e japonesa em seu próprio trabalho poético (e recordemos aqui o poema Numa estação de metrô, um quase haicai, assim
traduzido por Augusto de Campos: “A visão destas faces dentre a turba: /
Pétalas num ramo úmido, escuro”). Earl Roy Minner, em texto publicado na
revista de estudos Pound Newsletter,
chega a afirmar que “enquanto o seu débito para com a China consiste
principalmente em ideias históricas, éticas, políticas e outras, sua dívida
para com o Japão é mais importante do ponto de vista de sua teoria literária e
de sua técnica” (in CAMPOS, 1977: 57). Ao lado de Pound, outra referência que precisa
ser citada é a do escritor norte-americano Reginald Horace Blyth, autor da
importante antologia Haiku, obra em
quatro volumes com traduções de poemas de Bashô, Issa, Buson e outros poetas
menos conhecidos no Ocidente. Segundo Paulo Franchetti, “suas traduções e
comentários aos haicai, aos senryu e
aos textos zen são de valor inestimável para todo estudioso da literatura
japonesa no Ocidente.” (idem). Ele conhecia profundamente “não só a literatura
japonesa como ainda a chinesa e a coreana, e sua familiaridade com os poetas de
língua inglesa era também invejável” (idem). Blyth tornou-se um ícone da
cultura pop nas décadas de 1950 e 1960, contribuindo para a divulgação da
estética e da espiritualidade japonesa, ao lado de autores como D. T. Suzuki e
Allan Watts, que foram essenciais para a formação de autores como Allen
Ginsberg, Gary Snyder e Jack Kerouac. Todo esse rico diálogo entre a cultura
japonesa e o Ocidente, no entanto, só frutificaria no cenário poético português
no final da década de 1950, quando Casimiro de Brito (nascido em 1938), em
viagem de estudos na Inglaterra, entrou em contato com o haicai. Em depoimento
publicado na edição XXVI da revista Zunái,
o poeta português afirma:
Em 1958, numa espécie de exílio político
(para me libertar do eminente recrutamento para a Guerra Colonial), fui para
Londres e freqüentei o Westfield College. Era um curso de verão, organizado
pela BBC, e coube-me ficar instalado nos aposentos de um professor de Poesia
Oriental. Foi um deslumbramento – estar dentro de uma pequena biblioteca de
poesia que eu desconhecia. E os livros de haiku
deslumbraram-me. Na Universidade havia alunos de mais de 50 países e, entre
eles, uma japonesa. Aproximei-me dela, contei-lhe quem era e ao que vinha: que
ela me ajudasse a traduzir alguns daqueles poetas já que algumas das traduções
inglesas não me agradavam. Disse-me que sim, e foram semanas, meses de trabalho
delicado e quase abençoado; foi uma relação amorosa
iluminada pela poesia. Quando regressei a Portugal a minha poesia
transformou-se noutro mundo porque não só se desenvolvia na tradução dos
famosos mestres japoneses como eu próprio comecei a escrever de outra maneira.
(in Zunái, Revista de Poesia e Debates
n. XXVI, março de 2013)
Fascinado pela condensação poética do
haicai, sua economia verbal, sutileza e ironia, o poeta português desenvolve
atividades de estudo e tradução da poesia japonesa, além de escrever, ele
próprio, composições na forma do terceto e de organizar antologias com
trabalhos de outros autores portugueses que se dedicaram às formas do tanka e do haicai, de modo ocasional ou
sistemático (Uma rã que salta – Homenagem
a Bashô. Porto: Limiar, 1995). Seu trabalho no campo da tradução,
acompanhado de estudos críticos, está reunido em duas publicações: Poemas orientais, pequeno volume editado
em 1962, na cidade de Faro, e o caderno Poesia
japonesa, separata da revista de poesia Limiar
n. 5, editada no Porto, que saiu em 1995. As traduções de Casimiro de Brito
diferenciam-se daquelas realizadas por Wenceslau de Moraes na década de 1920
por não serem meros registros literais, não raro com adições explicativas ou
decorativas ausentes nos textos originais. A informação semântica está aqui, o
cuidado em manter a simplicidade e a coloquialidade do haicai tradicional
também, mas o poeta procura preservar o estilo conciso, por vezes seco e
abrupto dos textos japoneses, como nesta curiosa composição: “Narciso e biombo:
/ iluminam-se, branco / no branco, um ao outro” (Bashô, 1644-1694), que podemos
comparar com versão similar feita por Paulo Leminski: “narciso / biombo / um ao
outro ilumina / branco no branco”. A abstração deste poema, que já foi
comparado com a pintura de um artista europeu de vanguarda como o suprematista
russo Casimir Maliévitch, contrasta com a delicadeza de outra composição, quase
uma fotografia do cotidiano: “Mulher sem filhos – / como ela é terna / com as
bonecas!” (Ransetsu, 1654-1707). A metáfora, como já vimos, é uma figura quase
ausente na poesia japonesa, preocupada em retratar a paisagem de modo claro e
distinto, mas comparece por vezes na lírica tradicional, como nesta peça:
“Mulheres no arrozal – / tudo nelas é sujo / menos o seu canto” (Raizan,
1654-1716), e ainda neste poema de refinada construção imagética: “O vento, no
outono, / toma a forma do capim, / tão espesso!” (Kigin, 1624-1704). A
participação do eu poético, outra raridade numa escrita poética tão impessoal,
comparece aqui, associada a outra metáfora: “A cobrir os milênios / da minha
ausência / o véu duma cascata” (Natsuishi Banya, 1955).
Casimiro de Brito obtém resultados
poéticos consistentes em português, evitando a afetação e o exotismo, tipo rice powder poetry, males citados por Haroldo de Campos em sua crítica às
traduções de poesia oriental filtradas por um simbolismo finissecular. Ao mesmo
tempo que evitava os clichês associados a uma ideia romântica de “Oriente”,
Casimiro de Brito não intentou uma recriação radical da estrutura do ideograma,
aquilo que Haroldo de Campos chamava de “metáfora visual” e que é inseparável
tanto da escrita como do pensamento japonês. A dimensão visual dessa
micropoética altamente condensada permite-lhe “um extremo refinamento de
percepção, um grande poder de síntese imaginativa, em consonância, aliás, com o
espírito poético japonês” (CAMPOS:
1977, 65), afirma o poeta e ensaísta brasileiro, citando como exemplo a palavra
yumê (“sonho” em japonês), “expressa
pelos desenhos abreviados, superpostos, de vegetação crescendo + rede de pesca
+ cobertura + sol-pôr” (idem, 64). É impossível deixar de pensar “nos estímulos
que este simples vocábulo, a partir de seu casulo gráfico, oferece à imaginação
poética. É ele, por si só, um verdadeiro diorama de estratos metafóricos”
(idem). “No pensamento por imagens do poeta japonês”, prossegue o autor
brasileiro, “o haicai funciona como uma espécie de objetiva portátil, apta a
captar a realidade circundante e o mundo interior, e a convertê-los em matéria
visível” (idem, 65).
A recriação da poesia clássica japonesa
para o nosso idioma, tarefa levada a cabo por Casimiro de Brito, desconsidera a
dimensão visual da escrita e os jogos polissêmicos do kakekotoba mas mantém a alta precisão, a dicção enxuta e
substantiva do verso japonês, sua simplicidade e espontaneidade,
características de todas as artes tradicionais influenciadas pelo zen. A
naturalidade da própria caligrafia japonesa, que incorpora o traçado rápido, o
borrão e os contornos assimétricos e imprecisos, dificilmente poderia ser
recriada em um método de tradução que valoriza o controle do acaso e o rigoroso
cálculo prévio dos efeitos. Neste sentido, podemos considerar válida a
observação de Paulo Franchetti, para quem esse método leva a um afastamento “do
contexto de produção e recepção, bem como da função social de um dado texto em
uma dada sociedade”, privilegiando as “correspondências sintáticas, semânticas
e sonoras” (FRANCHETTI, 2012: 49). “Quando o poema a ser
traduzido pertence a um universo de referências próximo a essa visão de
literatura, o método tem resultados excelentes, como se pode ver na tradução
que Haroldo de Campos fez do Un coup de
dés, de Mallarmé” (idem), prossegue Paulo Franchetti, fazendo a ressalva
que “na leitura do haicai, no entanto, que provém de um outro universo de
referências, esses pressupostos têm mais efeitos nocivos do que positivos”
(idem, 50), citando como exemplo a tradução que Haroldo de Campos fez do famoso
poema da rã, de Bashô:
o velho tanque
rã salt’
tomba
rumor de água
Na opinião de Paulo Franchetti, “em face
da poética de Bashô, que sempre demonstrou aversão à mera exibição técnica em
haicai (...), a utilização de uma ‘palavra-valise’ à James Joyce parece
completamente inadequada” (idem, 51). O autor justifica seu severo parecer
argumentando que “o hokku de Bashô,
célebre por inaugurar a maneira despojada e não simbólica de uma escola que se
dizia acessível a crianças e incultos, converte-se em um precioso micropoema
ostensivamente trabalhado com agudeza
e engenho” (idem, 51) (observemos
aqui o uso de palavras extraídas do vocabulário barroco, com intenção crítica;
os grifos são de minha autoria). Uma outra visão sobre o tema é apresentada por
Paulo Leminski em seu livro Bashô, a
lágrima do peixe, onde analisa a imensa variedade de sentidos de outro
conhecido poema do autor japonês:
Takotsubo yá
Hakanáki yumê wó
Nátsu no tsuki
a armadilha do polvo
sonhos flutuantes
lua de verão
ou ainda:
polvos na armadilha
sonhos pululam
a lua vermelha
Traduções: Paulo Leminski
“ ‘Flutuantes’ não dá conta, plenamente,
do japonês hakanáki, verdadeira
onomatopeia visual, imitativa do movimento de oscilação das águas”, escreve
Leminski. “A intuição é barroca. A
tessitura sonora do haicai é rica de anagramas, tranças de sons que se
entrelaçam. A sílaba tsu está em
‘armadilha’ (tsubo), em ‘verão’ (nátsu) e em ‘lua’ (tsúki). Hakanáki quase
rima com nátsu” (LEMINSKI: 1983, 54-55). Prosseguindo a análise do
poema, o autor diz: “Em hakanáki, um
japonês pode enxergar, ainda, uma aparição do verbo ‘chorar’, náku, reforçando o clima aquático. Hakanáki compõe-se de dois ideogramas:
‘fruto’ + ‘não’ = ‘sem fruto’. Hakanáki
yumê, portanto, é, literalmente, ‘sonho sem fruto’.” (idem, 54) Em resposta
aos que advogam em defesa da simplicidade do haicai, Leminski responde: “Assim,
muita complexidade está lá, escondida dentro dos haicais, aparentemente, mais
banais” (idem). Como resolver o impasse entre a recriação formal e o espírito
de despojamento da filosofia zen-budista? Temos aqui um caso para a liberdade
de escolha do tradutor, que pode adotar a estratégia criativa que encontrar
correspondência com a sua visão particular sobre a poesia e a literatura, uma
vez que nenhuma tradução será perfeitamente exata ou inexata, em especial
quando se trata do haicai, com todas as suas camadas de significação, tanto
semânticas quanto históricas e culturais. A tradução, assim, não busca uma
verdade essencial, mas a relação estética e de pensamento entre o tradutor e o
texto traduzido. O próprio Casimiro de Brito, no prefácio aos Poemas Orientais, diz:
A poesia é intraduzível,
e a minha tentativa de verter para o português, de fazer poesia a partir dos haicais japoneses, sem lhes roubar a
magia, o clímax oriental é, reconheço-o, demasiado arriscada. Penitencio-me
dizendo que foi uma tentação, e considero estes poemas breves um pouco como
poesia minha. (BRITO, 1962: 10)
A ideia da tradução poética como um novo
texto original, em condições de igualdade com os poemas escritos pelo próprio
poeta/tradutor, não é nova: ela deriva dos ensaios teóricos e da prática
criativa de Ezra Pound, que em seu poema longo Os cantos inseriu textos traduzidos da Odisseia de Homero, de canções dos trovadores da Idade Média, entre
outros, de diferentes momentos históricos e países, mesclados aos versos de sua
própria lavra, sem nenhuma sinalização prévia para o leitor sobre os créditos
de cada composição. O autor norte-americano considerava a tradução como persona (máscara dramática), que lhe
permitia falar pela voz de grandes poetas do passado, como François Villon,
Guido Cavalcanti e Artaud Daniel, e ainda de Li T’ai Po (ou Rikaku, em japonês)
e Zeami (autor da peça de teatro nô Hagoromo,
“O manto de plumas”). Ao lado da ideia da tradução como um tipo de heteronímia
(tese formulada por Adolfo Casais Monteiro[1]),
Ezra Pound desenvolveu o conceito da crítica pelo exercício no estilo de uma
época – ou seja, o poeta passou a escrever poemas usando a linguagem e os
recursos formais de autores da Idade Média ou do Renascimento, como forma de
aprendizado e de diálogo com a tradição, visando realçar elementos poéticos
pouco conhecidos nos dias de hoje. O autor norte-americano não desejava fazer
de seu trabalho ensaístico e crítico-criativo uma mera arqueologia do passado
literário, e sim descobrir, dentro da tradição, o que ainda era novo, ou pouco
assimilado, fiel ao princípio confuciano do Make
it new, que adotou como palavra-de-ordem. Quando Casimiro de Brito fala em
“fazer poesia a partir dos haicais japoneses” ele
apresenta uma proposta-desafio análoga à do autor norte-americano, analogia que
ganha força quando pensamos que o português, assim como Ezra Pound,
exercitou-se na criação conforme o estilo de uma época, nos haicais de sua
própria autoria.
Nas traduções incluídas no volume Poemas orientais (1962), notamos versos mais longos, de sintaxe
regular, próxima ao ritmo da prosa. Já nas composições compiladas em Poesia japonesa (1995) há maior concisão, cortes sintáticos e ritmo mais
seco, que reforçam o poder de impacto da imagem poética. Os elementos temáticos
e formais desse conjunto de traduções serão incorporados e transformados na
poesia do próprio Casimiro de Brito, que realiza uma notável mescla do
imaginário tradicional japonês com uma sensibilidade moderna temperada pelas
vanguardas europeias, que reivindicavam a síntese, a concisão, a ruptura com a
lógica sintático-discursiva, a visualidade e o pensamento analógico (lembremos
que Casimiro de Brito integrou um dos movimentos de renovação da poesia
portuguesa, o chamado Poesia 61, ao
lado de Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Tereza Horta e Gastão
Cruz, aliás contemporâneo da PO-EX,
liderado por Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro).
[1] Na
opinião de Augusto de Campos, “O paralelo é, sem dúvida, instigante. Mas o
exame em profundidade dos dois artifícios revela atitudes poéticas diversas. As
personae de Pessoa são, na verdade, personalidades fictícias projetadas do próprio
poeta, de dentro para fora. (...) Já as máscaras de Pound correspondem (com
exceção talvez única de Mauberley) a pessoas reais de poetas que falam, em sua
própria linguagem, ‘através de’ Pound: Cino, Bertran de Born, Villon, Heine,
Laforgue, Corbière etc.” (CAMPOS, 1983: 25)