quarta-feira, 31 de outubro de 2012
POEMAS DE GOTTFRIED BENN (III)
TR
TREM RÁPIDO
Marrom de conhaque. Marrom de folhagem. Marrom avermelhado.
[Amarelo malaio.
Trem rápido Berlim-Trelleborg e
estâncias no mar Báltico.
Carne que ia nua:
Até a boca queimada do mar.
Maduramente mergulhada. Para a felicidade grega.
Em saudade-crescente: quão longe está o
verão!
Já é o penúltimo dia do nono mês!
Restolho e última amêndoa são nossos
desejos.
Ostentações, o sangue, as fadigas.
A proximidade das dálias entorpece.
Marrom-de-homem atira-se em
marrom-de-mulher:
Uma mulher é algo para a noite.
E se foi bom, ainda para a próxima!
Ah! e então de novo aquele
estar-consigo-próprio!
Esses mutismos! Esse ser-levado!
Uma mulher é algo com cheiro.
Indizível! Agonize! Resedá.
Para lá é Sul, pastor e mar.
Em cada declive se encosta uma sorte.
Marrom-claro-de-mulher cambaleia em
marrom-escuro-de-homem:
Pare-me! ei, estou caindo!
Sinto a nuca tão cansada.
Ah, este febril doce
último cheiro dos jardins.
Tradução: Claudia Cavalcanti
POEMAS DE GOTTFRIED BENN (II)
HOMEM E MULHER
PASSEIAM NO PAVILHÃO DO CÂNCER
O homem:
Nesta fila aqui estão ventres apodrecidos e nesta está o peito apodrecido. Lado a lado camas malcheirosas. As enfermeiras revezam-se a cada hora. Vem, levanta sem medo esta coberta. Vê, esse monte de gordura e sumos putrefatos para um homem um dia já foi tudo, também foi êxtase, lar. Vem, olha esta cicatriz no peito. Sentes o rosário de pontos moles? Toca, sem medo. A carne é mole e não dói. Esta aqui sangra como se de trinta corpos. Ninguém tem tanto sangue. Desta aqui ainda tiraram um filho do ventre canceroso. Deixa-se que durmam. Dia e noite. - Aos novos diz-se: aqui o sono cura. - Só aos domingos para as visitas podem estar mais despertos. Já se come pouco. As costas são feridas. Vês as moscas. Às vezes a enfermeira lava. Como se lavam bancos. Aqui o solo já incha em torno de cada leito. Carne nivela-se à terra. Brasa vai-se embora. Sumo começa a correr. Terra chama. |
terça-feira, 30 de outubro de 2012
POEMAS DE GOTTFRIED BENN (I)
FLORZINHA
Um afogado carregador de cervejas foi fincado sobre a mesa.
Alguém havia entalado uma sécia de lilás claro-escuro
entre seus dentes.
Quando recortei fundo
desde o peito
língua e palatino
com uma longa faca,
devo tê-la empurrado, pois escorregou
para o cérebro, que estava ao lado.
Enfiei-a na cavidade torácica
entre os fios
que o costuravam.
Embeba-se no seu vaso!
descanse em paz,
florzinha!
Tradução: Claudia Cavalcanti
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
QUEM PENSA, VOTA HADDAD!
O último ato da campanha de Fernando Haddad aconteceu ontem à noite na Casa de Portugal, reunindo cerca de 500 pessoas, entre estudantes, professores, artistas e intelectuais. Estavam presentes Fernando Moraes, Emir Sader, Olgária Mattos, Alceu Valença, Chico César, Sérgio Mamberti e outras personalidades da cultura brasileira, além de partidos como o PT, o PSB, o PC do B, centrais sindicais, Apeoesp e entidades estudantis.
Um
abaixo-assinado em apoio a Haddad contou com os nomes de Marilena Chauí,
Antonio Candido, Roberto Schwartz, Alfredo Bosi, Tata Amaral e outros nomes
destacados da literatura, do pensamento e das artes.
Claro
que a revista ZUNÁI estava presente,
e teve o seu nome citado pelo mestre de cerimônias do evento. Rubens
Jardim e Paulo Farah, da Bibliaspa / Comitê pelo Estado da Palestina Já, também
estavam presentes.
É
significativo que o último evento da campanha de Haddad tenha sido um encontro
com intelectuais, artistas e professores. A educação e a cultura serão
prioridades no governo Haddad, que terá o apoio de Dilma para fazer parcerias
em benefício da cidade, seja para a construção de novas creches e escolas, seja
para a reforma e ampliação de equipamentos culturais e implantação de programas
de qualificação profissional para os professores, entre muitas outras coisas.
Mais
importante: o diálogo dos produtores intelectuais com Haddad e o futuro
secretário da cultura será muito mais fácil e proveitoso do que com o Coisa
Ruim e seus diabos, diabinhos e diabretes. Aliás, um dos slogans entoados no
evento foi esse: "Xô, Satanás, xô, Satanás!".
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
CANTIGA
Penso em você eroticamente.
Até a fabulação
de outra margem,
na estranha habitação onde os números,
pares e ímpares, enlouquecem.
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Um minúsculo leão branco habita a sua fenda.
***
A ferocidade
no limiar da noite,
quando a pele —
desmedida, irremissível,
se projeta em outra pele:
nenhum destino além do nervo tumultuário.
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
EVENTOS DA CURADORIA DE LITERATURA E POESIA DO CENTRO CUL.TURAL SÃO PAULO EM NOVEMBRO
A Poesia Rebelde de
Maiakovski
Debate
entre Zoia Prestes e Adalberto Monteiro sobre o poema Lênin, de Maiakovski, publicado pela primeira vez em livro no
Brasil pela Editora Anita Garibaldi.
Quarta-feira,
dia 21/11/12, das 19h30 às 21h
Sala de Debates
Poetas de Cabeceira: Jorge Luis
Borges
Julian Fuks fará uma palestra
sobre o poeta e ficcionista argentino Jorge Luis Borges, comentando a biografia
do autor, sua época, características estéticas e, sobretudo, a sua experiência
pessoal como leitor da poesia de Borges, um dos autores mais importantes da
língua espanhola do século XX.
Sexta-feira,
dia 23/11/12, das 19h30 às 21h
Sala de Debates
Poesia dos 4 Cantos: Noite
Argentina
Poesia dos Quatro Cantos é uma
atividade mensal dedicada à divulgação da poesia internacional, num formato que
inclui a leitura com danças e músicas típicas de cada país, nos intervalos das
leituras. Em novembro, será feita a apresentação de uma noite argentina com a
poeta Francesca Cricelli, com a participação Carolina Morgado Leão, Fábio
Henrique Menezes Evangelista e Edmar Pereira Costa Filho (músicos), André Luis
Magro e Andressa de Souza Moraes (dançarinos).
Quinta-feira,
dia 28/11/12, das 20h30 às 22h
Praça Mário Chamie (Bibliotecas)
Poemas à Flor da Pele
Sarau poético realizado pelo
grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de músicos e atores. Haverá
também o lançamento de livros de poesia de novos autores.
Sexta-feira,
dia 30/11/12, das 20h30 às 22h
Praça das Bibliotecas
UM POEMA DE BERTOLT BRECHT
ALGUMAS PERGUNTAS A UM HOMEM BOM
Bom. Para quê?
Você não é corrupto,
Mas o raio que destrói a casa
Também não é corrupto.
Você diz: jamais se desdiz.
Mas o que você diz?
Você é de boa fé
Declara a sua opinião
Mas qual opinião?
Você tem coragem
Contra quem?
Você é um artista
Repleto de sabedoria
Pleno de talento
Para quem?
Você não visa o próprio interesse
O interesse de quem, então?
Você é um bom amigo,
De boa gente?
Então, escuta:
Nós sabemos que você é o nosso inimigo.
Por isso vamos te encostar no paredão.
Mas, em consideração aos seus méritos
E às suas boas qualidades,
Num bom paredão.
E te fuzilar com boas balas
Disparadas por bons fuzis
E te enterrar
Com boa pá
Em terra boa.
Tradução: Maria Alice Vergueiro / Catherine Hirsch
domingo, 21 de outubro de 2012
REFLEXÕES BRECHTIANAS (VII)
Testemunha dos trágicos acontecimentos da era nacional-socialista, Brecht relata em seus poemas, como se fossem pequenas crônicas ou notas de um historiador, eventos como a queima pública de livros de autores incômodos ao regime, os métodos de intimidação das tropas de assalto, a resistência dos operários alemães nas fábricas, a experiência do exílio de poetas e intelectuais e ainda os conflitos psicológicos de uma nação dominada pelo medo. A crônica política de Brecht, porém, não se resume à narrativa de fatos históricos, aos moldes de um jornalismo poético, orientado pelo espírito militante e pela leitura do materialismo histórico e dialético do pensamento marxista. O poeta, consciente do valor estético do artesanato linguístico e do caráter atemporal da tragédia humana, incorpora em poemas políticos elementos da fábula, da parábola, da alegoria, mistura diferentes referências históricas e repertórios culturais, numa miscigenação universalista, quase barroca. No poema Canção de Salomão, de linguagem coloquial e humor provocativo,os protagonistas são o personagem bíblico que dá título ao poema, a rainha egípcia Cleópatra, Júlio César e o próprio poeta alemão, condenados pelo desejo excessivo de poder, de prazer e de saber:
O indiscreto Brecht quis saber
Escutem suas canções
Como os ricos têm poder
De acumular tantos milhões
Pobre no exílio foi parar
Brecht xereta
Bisbilhoteiro
E com o tempo a correr
Enfim o mundo percebeu
Fuçar demais foi a sua perdição
Melhor viver na discrição...
(Fragmento traduzido por Luiz Roberto Galizia)
(Fragmento traduzido por Luiz Roberto Galizia)
O tema do exílio é recorrente no autor, que viveu longe da Alemanha entre 1933 e 1949, quando fixa-se na República Democrática Alemã. No poema A emigração dos poetas, Brecht faz um interessante paralelo entre a sua experiência de fugitivo e a de outros poetas que admirava, usando novamente o procedimento de recorte e montagem de elementos de diferentes épocas, culturas e países:
Homero não tinha morada
E Dante teve que deixar a sua.
Li-Po e Tu-Fu andaram por guerras civis
Que tragaram 30 milhões de pessoas
Eurípedes foi ameaçado com processos
E shakespeare, moribundo, foi impedido de falar.
Não apenas a Musa, também a polícia
Visitou François Villon.
Conhecido como “o Amado”
Lucrécio foi para o exílio
Também Heine, e assim também
Brecht, que buscou refúgio
Sob o teto de palha dinamarquês.
Tradução: Paulo César de Souza
Neste poema, encontramos autores já citados no presente ensaio como precursores da poética brechtiana, entre eles Villon, Heine e os chineses Li-Po e Tu-Fu. A presença chinesa é evidente não apenas nas peças mais breves e concisas traduzidas e comentadas por Haroldo de Campos, em que se destacam a justaposição de imagens e estrofes à maneira do ideograma, mas ainda nas traduções criativas que o autor de A boa alma de Se-Tzuan realizou de versos clássicos de Po Chu-yi, Ts’ao Sung e de autores anônimos do cânone tradicional do Império do Meio, não raro escolhendo os poemas por seu viés crítico e temática atemporal. Neste sentido, as traduções de Brecht podem ser comparadas às personae de Ezra Pound, que também vestia a máscara dramática de autores da Antiguidade, da Idade Média ou do Renascimento para manifestar o seu desconforto com o desconcerto do mundo. Assim, por exemplo, nesta breve peça recriada pelo autor alemão:
UM PROTESTO NO SEXTO ANO DE CHIEN FU
Os rios e morros da planície
Transformais em vosso campo de batalha.
Como, pensais, o povo que aqui vive
Poderá se abastecer de “madeira e feno”?
Poupai-me por favor vosso palavreado
De nomeações e títulos.
A reputação de um único general
Significa: dez mil cadáveres
Ts’ao Sung (870-920)
Tradução: Paulo César de Souza
Reler Brecht é uma experiência rica e de extrema atualidade, que nos faz pensar sobre os aspectos éticos e estéticos da criação literária e, não menos importante, sobre a escolha que o artista tem a liberdade de fazer entre a cooptação pela cultura de mercado e o compromisso com a construção de uma nova realidade.
BIBLIOGRAFIA:
BRECHT, Bertolt. A Santa Joana dos matadouros. Tradução: Roberto Schwartz. São Paulo: Cosacnaif, 2009.
BRECHT, Bertolt. A Santa Joana dos matadouros. Tradução: Roberto Schwartz. São Paulo: Cosacnaif, 2009.
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: editora 34, 2001.
CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
CARPEAUX, Otto Maria. A literatura alemã. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
FAUSTINO, Mário. Artesanatos de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
FAUSTINO, Mário. Artesanatos de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
JAMESON, Frederic. Método Brecht São Paulo: Vozes, 1999.
PEIXOTO, Fernando. Brecht vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. 2ª. edição.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. SP: Editora Perspectiva, 1985.
domingo, 14 de outubro de 2012
REFLEXÕES BRECHTIANAS (VI)
Notável, nesta reunião de poemas de
Brecht, a fusão entre o eu lírico, o eu social e o rigoroso artesanato de
linguagem, que se manifesta em versos de alta precisão e objetividade, como na
conhecida peça
Lista de Preferências de
Orge
Alegrias, as desmedidas.
Dores, as não curtidas.
Casos, os inconcebíveis;
Conselhos, os inexequíveis.
Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.
Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.
Domicílios, os temporários.
Adeuses, os bem sumários.
Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.
Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.
Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.
Cores, o rubro.
Meses, outubro
Elementos, os Fogos
Divindades, o Logos.
Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.
Dores, as não curtidas.
Casos, os inconcebíveis;
Conselhos, os inexequíveis.
Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.
Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.
Domicílios, os temporários.
Adeuses, os bem sumários.
Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.
Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.
Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.
Cores, o rubro.
Meses, outubro
Elementos, os Fogos
Divindades, o Logos.
Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.
Tradução: Paulo César de Souza
O poema, construído na forma de
dísticos rimados, recorda o estilo coloquial-satírico do poeta francês Jules
Laforgue (que aliás viveu na Alemanha, onde foi leitor da imperatriz), em especial o da série de litanias da lua, como na peça que
apresentamos a seguir:
Litanias dos Quartos
Crescentes da Lua
Crescentes da Lua
Lua sublime,
Nos ilumine!
Nos ilumine!
É o medalhão
De Endimião,
De Endimião,
Astro de argila
Que tudo exila,
Que tudo exila,
Caixão milenar
De Salambô lunar,
De Salambô lunar,
Cais etéreo
Do alto mistério,
Do alto mistério,
Madona e miss,
Diana-Artemis,
Diana-Artemis,
Santa vigia
De nossa orgia,
De nossa orgia,
Jetaturá
Do bacará,
Do bacará,
Dama tão pálida
Em nossa praça,
Em nossa praça,
Vago perfume
De vaga-lume,
De vaga-lume,
Rosácea calma
Do último salmo,
Do último salmo,
Olho-de-gata
Que nos resgata,
Que nos resgata,
Seja o auxílio
A nosso delírio!
A nosso delírio!
Seja o edredão
Do Grande Perdão!
Do Grande Perdão!
Tradução: Claudio Daniel
A intertextualidade é um recurso
frequente em Brecht – como vimos em seus diálogos com Villon e Laforgue – e
assinalam, mais do que a exibição narcísica da referência erudita, uma tomada
de posição, uma filiação poética, junto à estirpe dos poetas malditos,
sarcásticos, questionadores das normas vigentes na poesia e na sociedade. O diálogo com Laforgue nos parece bastante natural, sobretudo se recordarmos o comentário feito por Mário Faustino sobre o poeta francês: "Jules Laforgue (1860-87): mais um jovem de gênio (Rimbaud, Corbière...) a explodir na língua francesa para desmoralização de uma rotina ética e estética e para preparar o terreno de um novo mundo (ainda hoje por vir). O processo que deu origem a Laforgue: decadência do mundo capitalista, miséria existencial do homem do fin-de-siècle, falácias e panaceias burguesas (Amor etc.) e a linhagem Heine-Baudelaire-Rimbaud-Corbière" (FAUSTINO, 2004: 184). Curioso observar que nesta breve nota crítica -- mas concentrada e densa, como toda a obra crítica de Faustino -- o autor faz um paralelo entre o francês Laforgue e o alemão Heinrich Heine, seu possível precursor na objetividade, precisão e ironia. Os dois poetas -- assim como Brecht -- limparam a linguagem poética de adornos e ornamentos decadentistas, colocando em primeiro plano os substantivos, as coisas. Heine é, sem dúvida, um dos precursores de Brecht na língua alemã, inclusive no campo político, se pensarmos em poemas como Os tecelões da Silésia, de 1844, e de seu posicionamento político, de claro perfil socialista, embora sem estar filiado a nenhum dos partidos operários de sua época.
Na poesia política de Brecht, herdeira da lírica inconformista de Heine, predominam quatro temas: o da natureza predatória do capitalismo -- especialmente da especulação financeira --, o elogio da revolução socialista, a denúncia do nazismo e o testemunho dos horrores da II Guerra Mundial. Brecht abandonou a Alemanha logo
após ascensão de Hitler, em 1933, e viveu no exílio em diversos países
europeus até 1941, partindo depois para os Estados Unidos, onde vive até 1947. Sua
produção ao longo dos anos 1930-1940 é fortemente marcada pelos acontecimentos
internacionais, assim como ocorreu na obra de Carlos Drummond de Andrade, sobretudo no livro Rosa do Povo, com.o
qual também poderíamos traçar um curioso paralelo:
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
(Versos iniciais de O medo, de Carlos Drummond de Andrade)
e:
Um estrangeiro, voltando de uma
viagem ao Terceiro Reich
Ao ser perguntado quem realmente
governava lá, respondeu:
O medo.
(Versos iniciais do poema Os medos do regime)
Tradução: Paulo César de Souza
A
poesia de Brecht, como a de Drummond, nesse período, é uma poesia de
resistência e combate, em que o eu lírico não se oculta, mas está presente em
sua angústia, em suas dúvidas, em sua fragmentação (que é também a fragmentação
do mundo), e ainda no júbilo epifânico que traduz a esperança utópica, em flashes como este:
ORGULHO
Quando o soldado americano me
contou
Que as alemãs filhas de burgueses
Vendiam-se por tabaco, e as
filhas de pequeno-burgueses por chocolate
As esfomeadas trabalhadoras
escravas russas, porém, não se vendiam
Senti orgulho.
quarta-feira, 10 de outubro de 2012
REFLEXÕES BRECHTIANAS (V)
A proximidade entre a poesia
de Brecht e as baladas tradicionais já foi observada por Otto Maria Carpeaux, para
quem o verso do autor alemão tem o feitio “de canção popular e da balada
popular, é deliberadamente primitivo”, sendo moderno “apenas pelo uso da
linguagem dos jornais e da vida cotidiana”. O prosaísmo de Brecht, segundo
Carpeaux, “é herança da ‘objetividade nova’. Mas o milagre é esse: que esses
versos primitivos e essa linguagem prosaica fazem profunda impressão poética,
às vezes até sentimental; e gravam-se na memória como se os tivéssemos
conhecido desde sempre” (CARPEAUX: 1994, 286). A Nova Objetividade foi um
movimento artístico alemão surgido na década de 1920 como reação ao
Expressionismo -- recusava a expressão mais subjetiva e colocava em primeiro
plano a denúncia social, a crítica mordaz à burguesia e à guerra. Trata-se portanto de uma arte de forte acento realista que recusava
as inclinações abstratas defendidas pelo grupo Die Brücke [A Ponte]. O termo foi criado em 1923 por Gustav Hartlaub, que
publicou um artigo nos jornais manifestando a intenção de realizar uma
exposição com o título Nova Objetividade, que ocorreu dois anos depois no Kunsthalle
de Munique e deu nome à nova tendência figurativa da arte alemã das primeiras
décadas do século XX. O movimento sofreu forte perseguição dos nazistas e
deixou de existir em meados de 1930. Um poema de Brecht que representa bem a
dicção realista é a conhecida peça Perguntas
de um trabalhador que lê, publicado no livro Svendborger Gedichte (Poesias de Svenborg), escrito quando Brecht
estava exilado da Alemanha nazista:
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia, várias vezes destruída,
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma esta cheia de arcos do triunfo.
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia, várias vezes destruída,
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma esta cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida, os que se afogavam gritaram por seus escravos na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu alem dele?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida, os que se afogavam gritaram por seus escravos na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu alem dele?
Cada pagina uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
Tradução: Paulo César de Souza
terça-feira, 9 de outubro de 2012
REFLEXÕES BRECHTIANAS (IV)
Brecht
escreveu versos durante a vida toda. Seu primeiro livro de poemas, publicado em
1925, foi Hauspostille, título de
difícil tradução, que remete aos breviários, ou livros de devoção, que os
protestantes costumavam ler em casa (recordemos que a mãe de Brecht era
luterana devota). Esta obra, como ressalva Carpeaux, “é evidentemente o
contrário de um livro de devoção. São baladas em estilo popular sobre crimes
célebres da época, sendo invariavelmente os criminosos elogiados e a Justiça e
a moral burguesa vilipendiadas. (...) Essa poesia de cabaré engagé é, como
disse um crítico católico, o ‘breviário do diabo’. Mas não é poesia
revolucionária, apesar de todos os ataques às convenções religiosas, apesar de
todos os ataques às convenções religiosas e políticas. É a expressão de um
niilismo total” (CARPEAUX, 1994: 285-286).
Um poema que
se destaca no livro de estreia de Brecht é A infanticida Marie Farrar, que
vamos ler agora, na tradução de Paulo César de Souza:
1
Marie Farrar, nascida em abril, menor
De idade, raquítica, sem sinais, órfã
Até agora sem antecedentes, afirma
Ter matado uma criança, da seguinte maneira:
Diz que, com dois meses de gravidez
Visitou uma mulher num subsolo
E recebeu, para abortar, uma injeção
Que em nada adiantou, embora doesse.
Os senhores, por favor, não fiquem
indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda,
coitados.
2
Ela porém, diz, não deixou de pagar
O combinado, e passou a usar uma cinta
E bebeu álcool, colocou pimenta dentro
Mas só fez vomitar e expelir
Sua barriga aumentava a olhos vistos
E também doía, por exemplo, ao lavar pratos.
E ela mesma, diz, ainda não terminara de crescer.
Rezava à Virgem Maria, a esperança não perdia.
Os senhores, por favor, não fiquem
indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda,
coitados.
3
Mas as rezas foram de pouca ajuda, ao que parece.
Havia pedido muito. Com o corpo já maior
Desmaiava na Missa. Várias vezes suou
Suor frio, ajoelhada diante do altar.
Mas manteve seu estado em segredo
Até a hora do nascimento.
Havia dado certo, pois ninguém acreditava
Que ela, tão pouco atraente, caísse em tentação.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
4
Nesse dia, diz ela, de manhã cedo
Ao lavar a escada, sentiu como se
Lhe arranhassem as entranhas. Estremeceu.
Conseguiu no entanto esconder a dor.
Durante o dia, pendurando a roupa lavada
Quebrou a cabeça pensando: percebeu angustiada
Que iria dar à luz, sentindo então
O coração pesado. Era tarde quando se retirou.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
5
Mas foi chamada ainda uma vez, após se deitar:
Havia caído mais neve, ela teve que limpar.
Isso até a meia-noite. Foi um dia longo.
Somente de madrugada ela foi parir em paz.
E teve, como diz, um filho homem.
Um filho como tantos outros filhos.
Uma mãe como as outras ela não era, porém
E não podemos desprezá-la por isso.
Mas os senhores, por favor, não fiquem indignados.
Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados.
6
Vamos deixá-la então acabar
De contar o que aconteceu ao filho
(Diz que nada deseja esconder)
Para que se veja como sou eu, como é você.
Havia acabado de se deitar, diz, quando
Sentiu náuseas. Sozinha
Sem saber o que viria
Com esforço calou seus gritos.
E os senhores, por favor, não fiquem indignados
Pois todos precisamos de ajuda, coitados.
7
Com as últimas forças, diz ela
Pois seu quarto estava muito frio
Arrastou-se até o sanitário, e lá (já não
sabe quando) deu à luz sem cerimônia
Lá pelo nascer do sol. Agora, diz ela
Estava inteiramente perturbada, e já com o corpo
Meio enrijecido, mal podia segurar a criança
Porque caía neve naquele sanitário dos serventes.
Os senhores, por favor, não fiquem
indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda,
coitados.
8
Então, entre o quarto e o sanitário — diz que
Até então não havia acontecido — a criança começou
A chorar, o que a irritou tanto, diz, que
Com ambos os punhos, cegamente, sem parar
Bateu nela até que se calasse, diz ela.
Levou em seguida o corpo da criança
Para sua cama, pelo resto da noite
E de manhã escondeu-o na lavanderia.
Os senhores, por favor, não fiquem
indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda,
coitados.
9
Marie Farrar, nascida em abril
Falecida na prisão de Meissen
Mãe solteira, condenada, pode lhes mostrar
A fragilidade de toda criatura. Vocês
Que dão à luz entre lençóis limpos
E chamam de “abençoada” sua gravidez
Não amaldiçoem os fracos e rejeitados, pois
Se o seu pecado foi grave, o sofrimento é grande.
Por isso lhes peço que não fiquem
indignados
Pois todos nós precisamos de ajuda,
coitados.
Este poema tem
notável semelhança formal com a Balada
dos Enforcados, de François Villon, também composta em estrofes de dez
versos – mas, ao contrário do autor francês, que compôs o seu poema em notáveis
decassílabos, Brecht preferiu o verso livre, em ritmo de balada. A principal
chave para a leitura intertextual está nos dois versos finais que se repetem a
cada estrofe, ou com ligeiras modificações, em ambos os poemas. Brecht: “Por isso lhes peço que não fiquem
indignados / Pois todos nós precisamos de ajuda, coitados”. Villon: “Que de
nossa aflição ninguém se ria, / Mas suplicai a Deus por todos nós”. O refrão, que no caso do poeta francês remete
à compaixão universal ensinada pelo cristianismo, no caso de Brecht indica a
solidariedade com os miseráveis, vítimas de um sistema econômico e social
injusto, que condena, hipocritamente, o crime de Marie Farrar, ao mesmo tempo que fecha os olhos à situação que a levou a cometer o infanticídio. A inversão de papeis nas peças e poemas de Brecht, em que o criminoso ou proscrito por vezes
assume a posição de herói, recorda também a lenda criada em torno de Villon,
que teria sido, conforme alguns relatos, bêbado, ladrão e assassino – portanto um
pária, à margem das normas da sociedade medieval.
No conhecido poema A lenda da puta Evelyn Roe, Brecht retoma o tema da mulher oprimida, na figura de uma beata -- possível referência à Santa Maria Egipcíaca, também abordada por Cecília Meireles e Manuel Bandeira -- que oferece seu corpo ao capitão de um navio, em troca da passagem com destino à Terra Santa. A protagonista do poema -- um dos mais fortes do poeta alemão, do ponto de vista da construção dramática e expressão emocional -- falece, porém, no meio da viagem, e sua alma é recusada por Deus e pelo Diabo, que não a desejam em seus reinos etéreos:
No conhecido poema A lenda da puta Evelyn Roe, Brecht retoma o tema da mulher oprimida, na figura de uma beata -- possível referência à Santa Maria Egipcíaca, também abordada por Cecília Meireles e Manuel Bandeira -- que oferece seu corpo ao capitão de um navio, em troca da passagem com destino à Terra Santa. A protagonista do poema -- um dos mais fortes do poeta alemão, do ponto de vista da construção dramática e expressão emocional -- falece, porém, no meio da viagem, e sua alma é recusada por Deus e pelo Diabo, que não a desejam em seus reinos etéreos:
Quando enfim chegou ao Paraíso
São Pedro o portão trancou
Deus disse: “Não vou acolher no céu
A puta Evelyn Roe”.
Também quando ao Inferno ela chegou
A porta na cara levou
E o diabo gritou: “Não quero aqui
A beata Evelyn Roe”.
Tradução: Tatiana Berlinky / Maria
Alice Vergueiro / Catherine Hirsch
Os heróis de Brecht, em seu
teatro e em sua poesia, são sempre os excluídos, os malditos, sejam eles operários,
camponeses, prostitutas, bêbados, vagabundos, todos aqueles que, nos quatro
cantos do globo, eram colocados sob suspeita pela sociedade capitalista, e que
– acreditava o poeta – um dia iriam se levantar contra a opressão, hipótese que
se tornou crível a partir da derrota e fuga dos exércitos nazistas da Europa
Oriental e do surgimento das repúblicas de democracia popular, lideradas pelos
comunistas.Brecht acreditou com sinceridade no modelo do chamado socialismo real, e foi um cidadão orgulhoso da República Democrática Alemã até a sua morte, em 1956.
sexta-feira, 5 de outubro de 2012
REFLEXÕES BRECHTIANAS (III)
Haroldo de Campos, no livro O Arco-Íris Branco, apresenta um interessante ensaio – O duplo compromisso de Bertolt Brecht – acompanhado de várias traduções da poesia do autor alemão, com ênfase nas peças mais elípticas, enigmáticas e lacunares, como estas, de nítidas ressonâncias da poética chinesa e japonesa:
EPITÁFIO
Escapei aos
tigres
Nutri os
percevejos
Fui devorado
Pela
mediocridade
A MÁSCARA DO MAL
Na minha
parede, a máscara de madeira
de um demônio
maligno, japonesa –
ouro e laca.
Compassivo,
observo
as túmidas
veias frontais, denunciando
o esforço de
ser maligno.
SOBRE UM LEÃO CHINÊS DE RAIZ DE CHÁ
Os maus temem
tuas garras.
Os bons
alegram-se com teu garbo.
O mesmo
quero ouvir
de meus
versos.
Claro – esta é
uma das facetas da obra poética de Brecht, que é bastante variada na temática e
na arquitetura estilística, embora seja menos conhecida e estudada do que o conjunto de suas peças para o teatro. Otto Maria Carpeaux, no livro A literatura alemã, declara: “Muitos o consideram como o maior
dramaturgo do século XX. Enquanto isso, fala-se muito menos de sua poesia
lírica que, sendo dificilmente traduzível, pouco se conhece no estrangeiro. É,
porém, necessário salientar que Brecht foi antes de tudo um grande poeta (...).
É um dos poetas mais tipicamente alemães da literatura alemã”. (CARPEAUX: 1994:
285)
Willi Bolle
considera que “Bertolt Brecht trouxe para a poesia urbana a proposta de uma
nova sensibilidade, caracterizada por um olhar sóbrio sobre o cotidiano. Seus
poemas falam do ritual de se lavar, da leitura do jornal ao fazer o chá, do
pequeno aparelho de rádio, do dinheiro, do desemprego, do registro das
‘palavras que gritam aos outros’. A poesia de Brecht é política no sentido
próprio da palavra: propõe elucidar as leis da convivência entre os homens na
‘polis’, a metrópole contemporânea, que já não é cidade-mãe, mas praça
mercantil ‘onde se negocia o ser humano’.” (in BRECHT, 2001).
A lírica brechtiana
também aborda temas como a natureza, a fuga, o exílio, a morte, o amor, o Oriente, mas, como adverte Willi Bolle, “há uma
decidida ruptura com os moldes românticos. (...) O que o poeta diz do amor? ‘Do
amor cuidei displicente’ – ao contrário do que pode sugerir este verso, que
representa um papel, não uma confissão, Brecht dedicou muita atenção ao amor.
Certamente mais do que os editores alemães, que retardaram a publicação dos
poemas eróticos e os separaram do resto da obra” (idem).
CANTO DE UMA AMADA
1. Eu sei amada: agora me caem os cabelos, nessa vida dissoluta, e eu tenho que deitar nas pedras. Vocês me vêem bebendo as cachaças mais baratas, e eu ando nu no vento.
2. Mas houve um tempo, amada, em que era puro.
3. Eu tinha um mulher mais forte que eu, como o capim é mais forte que o touro: ele se levanta de novo.
4. Ela via que eu era mau, e me amou.
5. Ela não perguntava para onde ia o caminho que era seu. e talvez ele fosse para baixo. Ao me dar o seu corpo, ela disse: Isso é tudo. E seu corpo se tornou meu corpo.
6. Agora ela não está mais em lugar nenhum, desapareceu como nuvem após a chuva, ela caiu, pois este era seu caminho.
7. Mas a noite, às vezes, quando me vêem bebendo, vejo o rosto dela, pálido no vento, forte, voltado para mim, e me inclino no vento.
Tradução: Paulo César de Souza
CANTO DE UMA AMADA
1. Eu sei amada: agora me caem os cabelos, nessa vida dissoluta, e eu tenho que deitar nas pedras. Vocês me vêem bebendo as cachaças mais baratas, e eu ando nu no vento.
2. Mas houve um tempo, amada, em que era puro.
3. Eu tinha um mulher mais forte que eu, como o capim é mais forte que o touro: ele se levanta de novo.
4. Ela via que eu era mau, e me amou.
5. Ela não perguntava para onde ia o caminho que era seu. e talvez ele fosse para baixo. Ao me dar o seu corpo, ela disse: Isso é tudo. E seu corpo se tornou meu corpo.
6. Agora ela não está mais em lugar nenhum, desapareceu como nuvem após a chuva, ela caiu, pois este era seu caminho.
7. Mas a noite, às vezes, quando me vêem bebendo, vejo o rosto dela, pálido no vento, forte, voltado para mim, e me inclino no vento.
Tradução: Paulo César de Souza
REFLEXÕES BRECHTIANAS (II)
Uma peça que se destaca na
dramaturgia brechtiana é Santa Joana dos Matadouros (1929-31),
cujo tema, segundo Roberto Schwartz, é “a crise do capitalismo, cujo ciclo de
prosperidade, superprodução, desemprego, quebras e nova concentração do capital
determina as estações do entrecho” (in BRECHT: 2009, 9). Os personagens dessa obra insólita,
continua o autor, são “a massa trabalhadora, empregada ou desempregada, os
magnatas da indústria da carne, os especuladores e – disputando as consciências
– os comunistas e uma variante do Exército da Salvação (os Boinas Pretas)” (idem).
Brecht retrata a luta de classes e a situação miserável das camadas mais pobres
da população sem cair numa estética de tipo naturalista, mais frequente nas
peças de agitação política. Podemos observar, em sua técnica narrativa, uma
semelhança com o cinema de Eisenstein, como o filme Encouraçado
Potemkin, em que a montagem das cenas obedece a uma ordem associativa,
metafórica, analógica, como acontece na estrutura do ideograma japonês. A este
respeito, observa Haroldo de Campos: "A
influência da técnica de composição sino-japonesa em Brecht é evidente, seja no
seu teatro, que pode buscar uma linhagem na estrutura das peças nô, seja na sua
poesia, especialmente na da última fase, de extremo despojamento e de
arquitetura elíptica, à maneira do haicai da tradição nipônica" (CAMPOS, 1997:
140).
A estrutura das peças de Brecht,
ao romper com a linearidade de tempo e de espaço e adotar uma ordem analógica,
produz um efeito anti-ilusionista. Conforme Walter Jens, no posfácio aos Poemas
Escolhidos do
autor alemão, citado por Campos, "este efeito se encontra especialmente em poemas escritos no
exílio (...), no fim da década de 1930. Nessas composições lacônicas (Hollywood é
um exemplo paradigmal), o poeta, trabalha preferencialmente com reduções, com
rarefações e abreviaturas estilísticas, de uma tal audácia que o contexto
omitido compensa a dimensão escrita do texto" (idem).
HOLLYWOOD
Toda manhã, para ganhar meu pão
Vou ao mercado, onde se compram mentiras.
Cheio de esperança
alinho-me entre os vendedores.
Tradução: Haroldo de Campos
O método poético adotado por
Brecht nestas composições, continua Jens, consistiria em “enfileirar frases
justapostas, entre as quais o leitor, para compreender o texto, deve inserir
articulações” (idem). Anatol Rosenfeld, analisando esse procedimento à luz do Verfremdungseffekt (“efeito
de alienação”), típico do teatro brechtiano, acrescenta: “O choque alienador é
suscitado pela omissão sarcástica de toda uma série de elos lógicos, fato que
leva à confrontação de situações aparentemente desconexas e mesmo absurdas. Ao
leitor assim provocado cabe a tarefa de restabelecer o nexo” (idem,
140-141). Um bom exemplo desta técnica é o poema O
primeiro olhar pela janela de manhã, traduzido por Haroldo de Campos:
O PRIMEIRO OLHAR PELA JANELA DE
MANHÃ
O primeiro olhar pela janela de
manhã.
O velho livro redescoberto.
Rostos entusiasmados.
Neve, o câmbio das estações.
O jornal.
O cão.
A dialética.
Duchas, nadar.
Música antiga.
Sapatos cômodos.
Compreender.
Música nova.
Escrever, plantar.
Viajar, cantar.
Ser cordial.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
REFLEXÕES BRECHTIANAS (I)
Bertolt
Brecht, poeta e dramaturgo alemão, nasceu na cidade de Augsburg, na Baviera, em 1898, numa família de
classe média -- seu pai era diretor de uma fábrica de papel. Em 1917, matricula-se na Universidade de Munique, para estudar
Medicina, mas no ano seguinte é convocado pelo exército e atua como enfermeiro
numa clínica militar em sua cidade natal. A Europa vive então a I Guerra
Mundial, conflito entre as principais potências imperialistas, que resulta em
20 milhões de mortos. Em 1918,
a Alemanha é vencida, e
as forças aliadas impõem, no Tratado de Versalhes, uma série de compensações
econômicas e territoriais ao país derrotado, que mergulha em profunda crise.
Brecht, que
vivencia esses trágicos acontecimentos, logo se entusiasma pela Revolução Russa
e torna-se marxista, ao mesmo tempo que se interessa pelo teatro, participando
do cabaré político do comediante Karl Valentin, em
Munique. Durante o curto período
democrático da República de Weimar, na década de 1920, que antecedeu a ascensão
do nazismo, Brecht realiza os seus primeiros trabalhos dramáticos, como as
peças Baal (1918) e Tambores
da noite (1922).
Nesse
período surge uma nova geração de poetas, cineastas, músicos, arquitetos, fotógrafos
e artistas visuais, interessados na renovação estética e na denúncia da
realidade social, como Fritz Lang, diretor do filme Metrópolis,
o poeta August Stramm, os pintores do grupo Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul)
e músicos como Paul Hindemith e Kurt Weill (este último, futuro parceiro de
Brecht em canções de conteúdo político e social). Os artistas da vanguarda
alemã afastavam-se dos modelos clássicos, românticos e realistas e criavam
novas formas estéticas que retratassem a miséria social, a crise de valores
espirituais, a incerteza quanto ao futuro e a fragmentação da sociedade, cada
vez mais sacudida por conflitos entre a classe operária e a burguesia alemã --
cujo ponto máximo foi a tentativa de revolução socialista liderada por Rosa
Luxemburgo e Karl Liebknecht, em 1918.
EPITÁFIO, 1919
A Rosa Vermelha desapareceu
Para onde ela foi, é um mistério
Porque ao lado dos pobres combateu
Os ricos a expulsaram de seu império
Bertolt Brecht
Tradução: Paulo César de Souza
EPITÁFIO, 1919
A Rosa Vermelha desapareceu
Para onde ela foi, é um mistério
Porque ao lado dos pobres combateu
Os ricos a expulsaram de seu império
Bertolt Brecht
Tradução: Paulo César de Souza
O estilo
artístico que sobressai nessa época, especialmente no cinema, na poesia e no
teatro é o expressionismo, que incorpora a paisagem urbana, o mundo das
máquinas e da indústria, a caricatura grotesca de tipos sociais e o humor
negro, mesclados à herança das lendas medievais e do romantismo alemão, à
temática sobrenatural, exótica ou perversa. O expressionismo não é um espelho
do real, mas uma deformação voluntária das formas (por exemplo, a geometria irregular
dos cenários do filme O gabinete do dr. Caligari, de
Robert Wiener), expressão subjetiva do artista, que observa o mundo com
angústia e revolta. Frank Wedekind e Georg Buchner foram dois autores teatrais
expressionistas que influenciaram a concepção artística de Brecht, assim como
as peças populares da era vitoriana, o teatro chinês e os musicais de cabaré.
Frederic Jameson aponta ainda ressonâncias de James Joyce, Eisenstein e do
cubo-futurismo russo na obra dramática do autor alemão, que desenvolveu uma
nova forma de teatro, que integrava cenografia, montagem, poesia, narração,
dança, música e a interpretação dos atores para envolver os sentidos e a
inteligência do público (JAMESON, 1999: 110).
Comentando a
peça Santa
Joana dos Matadouros, Roberto Schwartz observa que “o ritmo da dicção
é submetido ao andamento argumentativo, que tem musicalidade específica, a qual
vai primar também sobre a musicalidade da palavra” (in BRECHT: 2009,12). Anatol
Rosenfeld, no posfácio que escreveu para a edição brasileira de Cruzada
das crianças, observa: “O que Brecht exige é a transformação produtiva das
formas, baseada no desenvolvimento do conteúdo social. Mas este desenvolvimento
material, por sua vez, exige a transformação dos processos formais” (in CAMPOS,
1997: 139). Conforme o estudioso brasileiro, “isto explica a pesquisa
incansável de Brecht, no terreno da palavra, do estilo, do verso, do ritmo, da
cena, do desempenho do ator, da estrutura de sua arte”. A estratégia criativa
de Brecht aproxima-se da concepção do poeta russo Vladimir Maiakovski, para
quem “não existe arte revolucionária sem forma revolucionária”. Para os dois
autores, comprometidos com a transformação estética e com a transformação do
mundo, “a consciência social e a consciência estética se lhe afiguram
inseparáveis” (idem).
EU, QUE NADA MAIS AMO
Eu, que nada mais amo
Do que a insatisfação com o que se pode mudar
Nada mais detesto
Do que a profunda insatisfação com o que não pode ser mudado.
Tradução: Paulo César de Souza
EU, QUE NADA MAIS AMO
Eu, que nada mais amo
Do que a insatisfação com o que se pode mudar
Nada mais detesto
Do que a profunda insatisfação com o que não pode ser mudado.
Tradução: Paulo César de Souza
Brecht não
quer causar impacto emocional na platéia, mas levá-la a
uma reflexão política, incentivando o seu espectador a tomar o partido dos
oprimidos contra os opressores. É um teatro épico, revolucionário. Anatol
Rosenfeld afirma: “Foi desde 1926 que Brecht começou a falar de ‘teatro épico’,
depois de pôr de lado o termo ‘drama épico’, visto que o cunho narrativo da sua
obra somente se completa no palco" (ROSENLD, 1985, p. 146). O
primeiro texto teórico de Brecht sobre o teatro épico aparece no prefácio à
montagem de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, sátira
política com texto de Brecht e música de Kurt Weill, encenada pela primeira vez
em Leipzig, em 1930, e depois em Berlim, em 1931. Ao contrário do teatro
dramático, fundamentado na Poética de Aristóteles, o teatro épico rompe com as
noções lineares de tempo e espaço e deixa de lado a catarse, o envolvimento
emocional do público, e a mimese, ou imitação fiel da realidade, que na opinião
de Brecht deixariam o homem passivo em relação ao mundo. O drama épico, que
deixa explícita a diferença entre a peça representada e o mundo, quer provocar
uma reação intelectual no espectador, motivá-lo a questionar os valores e
estruturas vigentes no mundo, que podem e devem ser transformadas.