sexta-feira, 31 de agosto de 2012

IMAGENS DO JAPÃO NA POESIA MODERNISTA BRASILEIRA



Caros, confiram meu artigo Imagens do Japão na Poesia Modernista Brasileira na nova edição da revista Eutomia, na página http://www.revistaeutomia.com.br/v2/wp-content/uploads/2012/08/Imagens-do-Jap%C3%A3o-na-poesia-modernista-brasileira_p.59-73.pdf

EM MEMÓRIA DE RACHEL CORRIE: ESTADO DA PALESTINA JÁ


O Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz  –  Cebrapaz –  vem a público repudiar mais uma injustiça perpetrata pelo Estado sionista de Israel.

No último dia 28 de agosto, o Tribunal israelense de Haifa, julgou como inocente o Estado de Israel sobre a morte da ativista Rachel Corrie, morta em 2003, aos 23 anos, quando se colocou diante de uma escavadeira do exercito israelense, tentando impedir o derrubamento de casas palestinas em Gaza.

Para justificar o fato de que o piloto da escavadeira tenha passado três vezes por cima do corpo da ativista, o juiz de Haifa argumentou que o incidente foi ocasionado em um contexto que denominou de uma "situação em tempo de guerra." Buscando cinicamente culpar à própria ativista por sua morte.

Na morte da ativista Rachel Corrie, não é um caso isolado. Situações como a sua se repetem ao cotidiano nos territórios ocupados por Israel. Trata-se de mais um crime dos que lutam em defesa da legitima causa palestina.

O gesto heróico da jovem Rachel Corrie chama a atenção da situação em que vivem os palestinos e dos inúmeros crimes dos quais são vitimas. Expressamos nossa solidariedade a seus familiares e afirmamos que a melhor forma de lembrar sua existência é fortalecendo a luta pelo fim das ocupações e pela constituição do Estado da Palestina Já.

Neste sentido reafirmamos nosso compromisso de construir o Fórum Social Mundial Palestina Livre, momento histórico da solidariedade à causa palestina, que será realizado entre os dias 28 a 30 de novembro da cidade de Porto Alegre, Brasil.

Em memória a Rachel Corrie, seguiremos em luta.

Em defesa do Estado da Palestina Já.

Socorro Gomes

terça-feira, 28 de agosto de 2012

UM DIA INFAME



O tribunal israelense de Haifa determinou hoje que a morte da ativista norte-americana Rachel Corrie em 2003 foi "acidental". Corrie, de 23 anos, morreu atropelada por uma escavadeira do exército de Israel enquanto tentava impedir a destruição de casas de civis palestinos no campo de Rafah, na Faixa de Gaza. A escavadeira passou três vezes em cima de seu corpo. No veredito, o juiz do caso afirmou que a morte de Corrie foi um “acidente lamentável”, e eximiu o Estado de Israel de qualquer culpa no episódio. Os pais da americana, Craig e Cindy, abriram um processo criminal acusando o Estado de Israel de matar Corrie intencionalmente e, depois, de ter falhado em conduzir uma investigação confiável. Em 2003, um relatório do exército israelense também concluiu que a morte da ativista havia sido acidental. Este é mais um crime do regime sionista. Um dia, haverá outro tribunal em Nuremberg, para julgar os novos discípulos de Hitler.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

UM PROJETO DE INCENTIVO À LEITURA E À CRIAÇÃO LITERÁRIA



Jamil Murad, vereador do Partido Comunista do Brasil (PC do B), protocolou neste ano na Câmara Municipal de São Paulo um importante projeto de lei: o Programa Permanente de Incentivo à Leitura. Ao justificar seu projeto, o parlamentar comunista, que considera a literatura essencial para a formação da cultura de um país, defendeu que “ela colabora para o desenvolvimento das capacidades de imaginação, percepção, reflexão e criatividade; mantém vivos o idioma pátrio e os processos comunicativos e promove a formação crítica e histórica do cidadão”. Segundo o vereador, “a literatura de um país é patrimônio valioso de todos os cidadãos. Facilitar o acesso à produção literária é fortalecer um direito da comunidade e contribuir para o desenvolvimento da sociedade”. Num país como o Brasil, onde os índices de alfabetização e de leitura ainda são preocupantes, “é vital que os estados e municípios invistam em políticas públicas para a formação de leitores, incluindo todos os segmentos da cadeia produtiva da literatura e do livro – a saber, autores, editoras, livrarias, bibliotecas, escolas e outras instituições de educação e cultura”, enfatiza (o projeto pode ser lido na íntegra na página http://www.jamilmurad.com.br/site/component/content/article/1-noticias/621-projeto-incentivo-leitura.html). Em apoio à iniciativa do vereador, poetas e escritores se reuniram com o parlamentar em seu gabinete e divulgaram uma petição on line que já soma 125 assinaturas (http://www.peticaopublica.com.br/?pi=PCDOB12). Um dos signatários, Júlio Leocadio Tavares das Chagas, que é diretor de cultura da prefeitura municipal de Diadema, registrou o seguinte comentário: "Estamos desenvolvendo junto com o Sindicato dos Metalúrgicos e o Ministério da Cultura o programa Leitura nas Fábricas, já implantado em mais de 20 fábricas em Diadema, São Bernardo, Ribeirão Pires e Salvador (Bahia). Estamos totalmente de acordo com a proposta apresentada pelo vereador". No Facebook, foi criado um grupo aberto de apoio ao projeto, chamado Movimento Literatura para Todos, com 305 membros, e está sendo organizada uma caravana de escritores para acompanhar a votação do projeto, prevista para acontecer até o final do ano.

sábado, 25 de agosto de 2012

MENSAGEM DO ARMANDO


"Excêntrico. Vicinal. Ímpar. Singular. Ao acabar de ler Cores para cegos, essas quatro palavras vieram instantâneas. Excêntrico porque como todo poeta de verdade você criou a sua língua, desentranhada da linguagem de todo dia. Vicinal porque ao fazer isso inventou um caminho alternativo de grande rendimento, o chamado "caminho das pedras", que faz com que alcance o pretendido mais depressa. Ímpar porque ao se articular assim ganha forte marca autoral. Singular porque com a identidade formada não teme perder-se no caminho novo em folha."

(Mensagem que recebi ontem do poeta Armando Freitas Filho, sobre meu livro Cores para cegos, publicado há pouco pela Lumme Editor.)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

PROGRAMAÇÃO DE SETEMBRO DA CURADORIA DE LITERATURA E POESIA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO




Praça Mário Chamie (Bibliotecas) – Menu de Poesia
Sexta-feira, dia 14/09/12, das 20h30 às 22h 
Recital dedicado à obra do poeta brasileiro Haroldo de Campos, um dos iniciadores do movimento da Poesia Concreta, com organização de Maria Alice Vasconcelos e a participação dos poetas Frederico Barbosa (palestrante), Claudio Daniel, Susanna Busato, Beatriz Helena Ramos Amaral, Lelia Maria Romero, Neuza Pommer, Márcia Etelli Coelho, Ethel Naomi, Charles Gentil e dos músicos: Katia Rua, Francisco Benedetti e Joel Costa Mar.

Sala de Debates – Clube de Leitura de Poesia
Quarta-feira, dia 19/09/12, das 19h30 às 21h 
O poeta e dramaturgo Contador Borges conversará com o público sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer perguntas ao poeta, num bate-papo informal.

Praça Mário Chamie (Bibliotecas) – Poemas à Flor da Pele
Sexta-feira, dia 21/09/12, das 20h30 às 22h 
Sarau poético realizado pelo grupo Poemas à Flor da Pele, com a participação de músicos e atores. Haverá também o lançamento de livros de poesia de novos autores.

Paradas em Movimento: Videopoéticas
Mostra de poesia visual, digital e videopoesia, com a curadoria de Elson Fróes, que tem como proposta apresentar trabalhos de poetas brasileiros contemporâneos que exploram as novas linguagens eletrônicas, que permitem a integração entre som, imagem, palavra e movimento. A mostra reúne trabalhos de Arnaldo Antunes, Lenora de Barros, André Vallias, Eduardo Kac, Marcelo Sahea, Gabriela Marcondes, Márcio-André, entre outros poetas.A exposição acontece em telas de plasma distribuídas no espaço das bibliotecas e salas expositivas do CCSP.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

I SEMINÁRIO DE AÇÃO POÉTICA




 O I Seminário de Ação Poética, realizado entre os dias 14 e 17 de agosto, organizado pelo Centro Cultural São Paulo e pela Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, recebeu um público total de 1.350 pessoas, que assistiram aos debates, recitais, shows e performances do evento, transmitido pela TV Web do CCSP em tempo real. Todas as atividades foram gratuitas. Participaram do seminário 50 poetas, professores, jornalistas e críticos literários de vários estados do país, como a carioca Claudia Roquette-Pinto, o mineiro Ricardo Aleixo, os pernambucanos Pedro Américo e Micheliny Verunschk, os paranaenses Ricardo Corona e Rodrigo Garcia Lopes, o gaúcho (radicado na Paraíba) Lau Siqueira e o paulista Claudio Willer. Durante o Seminário, aconteceu uma feira de livros de poesia na Casa das Rosas, com lançamentos de livros e revistas (Coyote e Mallarmargens) e da plaquete Desvio ao vermelho: treze poetas brasileiros contemporâneos, organizada por Marceli Andresa Becker, publicada pela coleção Poesia Viva, editada pelo Centro Cultural São Paulo. O evento contou ainda com shows musicais de Péricles Cavalcante e Rodrigo Garcia Lopes e com uma mostra de videopoesia, com curadoria de Elson Fróes, chamada Videopoéticas, ainda aberta à visitação no CCSP, que inclui trabalhos de poesia eletrônica criados por Arnaldo Antunes, André Vallias, Marcelo Sahea, Lenora de Barros, Márcio-André, entre outros autores. Os debates que aconteceram durante o seminário abordaram as relações entre a poesia e as instituições culturais, as editoras, a universidade e a mídia, além de debates abertos com poetas de diferentes gerações e estilos, como subsídios para a elaboração de um documento em defesa da poesia.

COLEÇÃO POESIA VIVA


Poesia Viva é uma coleção de plaquetes de poesia brasileira contemporânea organizada pela Curadoria de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo, com o objetivo de divulgar autores de qualidade e representativos de nossa literatura contemporânea, de diversas gerações, tendências e estilos, novos ou consagrados. O conselho editorial da coleção é formado por autores respeitados em nossa crítica literária: Heloísa Buarque de Hollanda, Luiz Costa Lima, Leda Tenório da Mota, Maria Esther Maciel e Antônio Vicente Seraphim Pietroforte. Cada título da coleção Poesia Viva tem tiragem de mil exemplares e a distribuição é gratuita. As plaquetes podem ser retiradas pelo público na recepção da biblioteca, na central de informações e também na Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura. 

As plaquetes da coleção Poesia Viva também estão disponíveis no site do Centro Cultural São Paulo, na página http://www.centrocultural.sp.gov.br/literatura_colecao_poesia_viva.asp

Títulos já publicados:

Quatro poemas brasileiros, de Horácio Costa

25 Poemas escolhidos pelo autor, Armando Freitas Filho

Matinê, de Marcelo Montenegro

Tempo instável na tarde dos anjos desolados, de Ademir Assunção

Quase duelo de quase amor, de Alice Ruiz e Estrela Leminski

O cinephilo ecletico, de Glauco Mattoso

Alta noite, de Donizete Galvão

Poemas escolhidos, de Rodrigo Garcia Lopes

Desvio para o vermelho, de Marceli Andresa Becker

 
Próximo título:

Lontra corola libido, de Adriana Zapparoli

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

UM POEMA DE ADRIANA ZAPPAROLI



batesiano e seus reflexos lentos...
seus hábitos, suas manias,
seus disfarces, suas agonias,
seus alicerces, seu hálito de pinho:  - virulento!


[- não! você nem existia ...é um fruto da poesia ... ]

foi criado entre o mimetismo do rubro e do lírico.
da monotonia. de um comportamento mímico.
sua evolução convergente, seu dente-rústico, seu dedilhar anímico.
um mímico-acústico de autômato em sinais defensivos.
seus ais de mato cromado em estômatos,
em seus gestos agressivos e o estômago
cromado foram, de repente, iludidos ...no reflexo do recuo da presa.
sua vampiresa de aranha mimetizando formiga,
suas pernas longas e finas, suas quelíceras semelhantes as mandíbulas;
era o olho e o f errão pela cutícula... agora, ambiguamente, a libido.

e nisso, enquanto esmagava-lhe a língua,
o crânio, a indisciplina e toda essa lírica,
ainda,
a lontra sorria comigo.

UM POEMA DE MARCELI ANDRESA BECKER


MEMENTO MORI - III


PRÓLOGO


pesar continuamente.

*

ipsis litteris,

o altíssimo corpo, que gira em torno de si mesmo,
que descobre o seu covil

de sombras.

*

teria visto as mãos do suicida iluminarem-se.
teria visto o eixo do motor.

*

o ponteiro marca nunca mais
no velocímetro.

*

há quem acredite que deus anotou o resultado do cálculo em rpm
nos grandes lábios da mulher.

gozar é uma forma secreta de dizê-lo.


CENA 1


uma boca soprava o seu vestido branco.

era uma boca, um cano
de escapamento?

não sei —

abriu-se no poema subterrâneo, no chão,
entre as pernas de marilyn.


CENA 2


eu no banco de trás,
papai no volante,

(saímos cedo de casa
naquela manhã).

*

na esquina uma puta sonhava em se casar de branco.
"por que não?" —

*

a ideia girou durante anos

em torno de si mesma, deste misterioso deus
que escorre do velocímetro,

que suja o ponteiro com seus
trinta e seis mililitros

de esperma.


CENA 3


marilyn morreu aos trinta e seis anos.

sei que dormia e que minutos antes
um poema abriu-se

no seu sonho.


talvez ninguém seja o bastante
para amar:
para dizer o nome dos eixos
que giram
por dentro do amor,
entre as pernas.
não, talvez nunca encontres a boca
que revelaria
o resultado do cálculo em
"eu te amo".
CENA 4

porque nada conta na hora
de negociar.
*
não pagaria mais pelo programa, infelizmente.
não concederia a imortalidade,
não entregaria as chaves

(do carro)
*
a esta mulher que sonha com a boca de um homem
dentro do seu nome,

dizendo-o,


                              "eu te amo",

enquanto sopra o esmalte
das unhas.


EPÍLOGO

há quem acredite que deus não anotou
o resultado do cálculo.

*
a altíssima ereção,
*
o ponteiro, o silêncio brutal que cresce na cueca
do suicida.

enfiar as mãos, tocá-lo.

*

as luminosas mãos de marilyn, da puta,
de marceli andresa becker.

*

marcar nunca mais.

domingo, 19 de agosto de 2012

CORES PARA CEGOS


Cores para cegos é um livro que reúne minha produção mais recente (os poemas longos Letra Negra, Flor Occipital, Dodecaedro, a prosa poética Gavita, Gavita e um poema breve, que dá título ao volume). Os interessados em adquirir o livro podem encomendá-lo junto à editora pelo e-mail vendas@lummeeditor.com

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

CALÚNIA


Quiseste ofuscar minha fama
E até jogar-me na lama
Só porque eu vivo a brilhar
Sim, mostraste ser invejoso
Viraste até mentiroso
Só para caluniar.

Deixa a calúnia de lado
Se de fato és poeta
Deixa a calúnia de lado
Que ela a mim não afeta

Se me ofendes,tu serás o ofendido
Pois quem com o ferro fere
Com ferro será ferido.


(Canção de Wilson Batista, gravada por Caetano Veloso no CD Totalmente Demais)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

POESIA: QUESTÃO DE FUTURO



Eduardo Milán

A poesia latino-americana de hoje se debate numa clara divisão: regressar de forma acrítica a um passado canônico ou continuar a busca de novos meios de expressão. Em termos gerais, o retorno a um passado canônico (ou seja, aos séculos dourados pela tradição: o XVI e o XVII) implica a fuga de um presente caótico e a tentativa de buscar refúgio naqueles momentos históricos, especialmente em sua aura, que auguravam uma tranquilidade espiritual dependente de um certo estado do mundo. A esse estado do mundo corresponderiam formas poéticas claramente tipificadas: o romance, a lira, o soneto etc., cuja emergência em um tempo preciso supunha o surgimento de uma nova maneira de poetar. Essa novidade, claro, supunha também uma carga crítica em relação ao repertório formal da época.

Bem: a novidade destas formas e sua carga crítica implícita estão agora perdidos para sempre. E como o grau de novidade está perdido, o que tais formas comportam é a possibilidade de retornar transparentes e veicular motivos e temas já altamente codificados na poesia ibero-americana: o amor, a morte, o tempo, temas que supõem uma caligrafia maiúscula. Na verdade, o retorno às formas canônicas do passado, dada a sua perda de atualidade, supõe uma a-formalidade. Uma a-formalidade que só é possível pelo estado atual do mundo: perda da fé na história como motor de mudanças, derrocada das utopias tanto estéticas como históricas, o cessar do devir temporal, motivos caros a uma ideologia dominante que tem seu fundamento no chamado “pensamento débil”, que por sua vez joga na oposição os chamados discursos legitimadores e totalizantes. A a-formalidade, produto por sua vez da intemporalidade que subscreve a presentificação de todos os tempos interagindo agora, último golpe da negação da História, está em conflito direto com a idéia de evolução das formas em arte, idéia muito cara à modernidade, que sustentou o pensamento estético das vanguardas históricas.

Se todas as formas em sua máxima abertura são possíveis é porque cessou o conceito de evolução formal, de não repetição, de mudança. De um ponto de vista teórico, o perigo que alimenta o diálogo atual entre estética e realidade é o retorno à idéia luckacsiana da arte como reflexo da realidade, que tem seu apoio original no conceito aristotélico de mímesis ou norma mediadora, norma que, no diálogo arte — mundo, sustenta uma clara subordinação do primeiro ao segundo. As variantes à norma ficariam assim abolidas e condenadas como degeneração da idéia de “o que está no ar” ou da idéia do “espírito da época”, rumos igualmente totalitários.

Por sua vez, a busca de novos meios de expressão tem, a meu modo de ver, duas possibilidades: o entroncamento com uma tradição libertária, que na lírica hispano-americana foi fundada por Darío e se cristaliza com as vanguardas (Huidobro, Vallejo, o primeiro Neruda, Girondo), ou então o resgate das margens deixadas pela vanguarda em sua tentativa de lançar as bases de um koiné, ou língua única: o detalhe, o matiz, a diferença, a variante dentro da variante, tudo o que, em último caso, não nega uma tradição libertária, senão que, pelo contrário, tende à sua correção, e, ao corrigi-la, amplificá-la. A primeira possibilidade conta com o apoio do repertório formal da vanguarda (fragmento, simultaneidade, colagem etc.). a segunda inclui um elemento muito em voga neste momento e relativamente novo na poesia do século: a narração. À primeira vista, a narração ocupa na poesia o lugar de flanco, da margem, frente ao repertório canônico da vanguarda, daí que a incursão no elemento narrativo na poesia latino-americana atual possa supor, em si mesma, uma alternativa. Porém, vejamos como o elemento narrativo pode ser ideologicamente usado no marco do cânone estético da assim chamada pós-modernidade, termo tentador para nomear os tempos que correm. A narração está ligada diretamente à idéia ou à necessidade de um vínculo com a tradição. E aqui começa o problema, o titubeio, a contradição. Com efeito, ligar-se a quê, a qual passado temos direito, de que tradição se trata?

Se bem que, creio eu, foi a perda da fé nos motivos fundadores da vanguarda que praticamente obrigou muitos poetas latino-americanos atuais a uma incursão narrativa, também é certo que a estética do fragmento, pedra-de-toque do repertório formal vanguardista, cessou de imperar estilisticamente não por falta de coincidência ou de isomorfismo com uma idéia de um mundo estilhaçado (o mundo contemporâneo), senão por um relativo esgotamento preceitual. Porém, este preceito ou cânone segue correspondendo formalmente a um estado do mundo, o qual, é preciso dizer, não mudou muito, além do campo ideológico. Isto parece corroborar a suspeita de que a derrocada das utopias alcançou também o território da arte com força inusitada.

O fragmento ou sua estética parecem haver correspondido a um grau zero cultural, a um pé no limite, depois do qual toda possibilidade de continuação suporia o abismo ou, em termos poéticos, o silêncio. Chegando a esse ponto, algo parece estar claro; o que existe atualmente como problema na poesia é o deslocamento entre uma forma idônea para oferecer o mundo, a fragmentária, e o deslizamento do recheio desta forma, o presente, rumo a outro tempo mais distante, mais seguro e mais canônico: o passado. E o que produziu esse deslocamento, a meu modo de ver, é a evaporação do correlato histórico da forma fragmentária, ou seja, as possibilidades de mudança social. Agora, claro, esse retorno, essa retirada ou esse desejo de unir-se com uma tradição, tudo o que implica voltar ao passado, supõe alguns perigos. Implica um começar de novo ou, ao menos, uma reescritura. Em A imagem histórica da Ilíada, Rudolf Borchardt adverte:

“Não há diferença entre o espírito de uma tradição destruída e o de uma conservada. Toda tradição está destruída. Os motivos decisivos estão sempre perdidos, inclusive quando aparentemente foram transmitidos.”

Esta afirmação de Borchardt povoa de cruzes nosso olhar ao passado e nos coloca, aparentemente, no descampado, na desolação. Como tentar uma dura tarefa de resgate se não se sabem nem sequer o que se vai resgatar? 
A política estética da pós-modernidade absorve essa consciência do passado. Partindo da base que os laços com o passado estão rompidos definitivamente, vai buscar ali os cumes eufóricos desse tempo, os momentos de maior prestígio — não os de maior temperatura estética — e, em um efeito de mímesis atemporal, “recupera” para o presente os momentos de opulência de um tempo que já nada tem a ver com o passado, nem com o presente que derive dele. Deste modo, se des-historiciza o passado e, em conseqüência, também o presente. Se instala assim um novo cânone que dá brilho ao passado em virtude da perda da aura do presente e de uma cega perda da fé no futuro, por considerar este tempo já perfeitamente conhecido em seus distintos graus de erro. O futuro, para esta posição tão precisamente ideológica, corresponde à já provada impossibilidade de uma verdadeira mudança no campo social e, ao mesmo tempo, ao silêncio da escritura. Porém, o que supõe em verdade esta recorrência ao passado prestigioso e seguro é uma abolição temporal e, por isso mesmo, uma estética da simultaneidade (todos os tempos e todas as formas estão aqui etc.). Ocorre algo mais grave ainda: se apaga assim, de um só golpe, o próprio conceito de tradição. A tradição deixa de ser um produto, um devir, um tecido, e a história perde seu efeito narrativo ao transformar-se em “estágios de tempo”, em cristalizações que já não se ligam entre si. Desta maneira o fragmento, desprendido de seu contexto estético, passa a ser a forma da história. Finalmente, aqui aparece a função da narração: ela se torna o recurso para encadear um tempo que não cessa de voltar para si mesmo. o relato, a arte de narrar, passa a adquirir o sentido da história que, por sua vez, se esvazia de significado. A narração poética corre, por último, o risco de ser a forma legitimadora de um discurso histórico vazio.       

Ante esse panorama entrópico que resulta da emergência de todas as formas por considerá-las possíveis neste momento histórico e a utilização ideológica da narração como substituto simulado da história, cabe fazer, pelo menos, uma pergunta: sob que ótica ou sob que padrão crítico pode julgar-se, hoje em dia, um poema? A emergência de todas as formas interagindo, aliada a uma negação do tempo e da história, supõe, à primeira vista, uma forma de inocência que, por sua vez, comporta um tipo de olhar inédito em relação à origem. Porém, uma das características do poeta moderno, isto já se disse mil vezes, é sua situação paradoxal frente à modernidade: ao mesmo tempo que é um agudo crítico da modernidade, recupera para si seu legado mais válido, que é, justamente, a crítica, tanto de sua linguagem como do mundo. É isto que, em última instância, está em jogo agora: o esquecimento ou a permanência da função crítica do poeta. A meu modo de ver, frente ao impasse atual por que atravessa a poesia latino-americana, o poeta deve ser mais lúcido do que nunca. A batalha contra o novo — como gostava de dizer Leminski — é uma guerra perdida. E o novo passa hoje por uma revalorização do passado. Revalorização, não retorno. E revalorização implica uma re-historicização, um dar ao César do passado o que é do César do presente. Quero dizer: a única possibilidade de re-historicizar o passado é vê-lo com os olhos de hoje, posição muito contrária à simulação pós-moderna, que pretende, a pretexto da intemporalidade, ver o passado com os olhos do passado, o que, em última instância, implica o fim da tradição. Esta última posição, no que diz respeito à poesia, tem a ver com a utilização das formas do passado. A utilização de uma forma como o soneto, por exemplo, tal qual era usado por Quevedo ou por Lope de Vega, pode constituir, em algum lugar, uma maneira de homenagear uma forma em seu momento de esplendor. Porém, certamente constitui, sem dúvida, para mim, mais uma maneira de homenagear uma fachada do que uma forma integral. Só posso argumentar em relação ao que foi dito antes com uma pergunta: se a vida é imprevisível, incerta e aleatória, por que deve a poesia representar uma forma de máxima estabilidade?  

Por que a poesia deve tender à cristalização do movimento? Diz Buckminster Fuller: “Eu não trato de imitar a natureza, mas de seguir os mecanismos que a regem”. O que importa aqui é a palavra mecanismo. O que as formas fixas tendem a deter é justamente o mecanismo da vida, que é fluxo e devir. Pretender negar o fluir da vida é mais uma concessão à visão pura sobre a vida, uma negação da consciência e o relegamento do poeta à categoria de ser inocente, concessão ao pior espírito romântico. Por último, o recurso à forma fixa resulta ser, por mais paradoxal que pareça, um privilégio do conteúdo sobre a forma, pela crença de que o conteúdo pode, por si mesmo, modificar a forma. A melhor poesia ocidental indica o contrário.

Tudo o que foi dito anteriormente implica um parti pris. Em suas reflexões sobre o Tractatus, em 1929, Wittgenstein dizia que o ético consistia em “arremeter contra os limites da linguagem”. Arremeter, profanar, transformar. Em termos poéticos isso implica ir além das formas fixas e contra toda pureza tentar a criação de uma mestiçagem formal que só pode nos levar a um conceito da forma como transitória. Nessa transitoriedade estaria situado o entroncamento com a tradição libertária de nossa poesia, a tradição crítica, sem temor ao pretenso esgotamento do repertório formal da vanguarda. Sem temor a esse outro fantasma que percorre a poesia atual: o silêncio. De qualquer maneira, como diz Jabès, “se escreve sempre sobre o fio do nada”. Do contrário, os ventos da intemporalidade que sopram diariamente em nossa poesia podem acabar com ela. Poesia: questão de futuro.

Tradução: Claudio Daniel



terça-feira, 14 de agosto de 2012

NO VERSO DO REVERSO: AS IMAGENS DA FERA BIFRONTE


Susanna Busato

Poesia como mistério. Código a ser decifrado. Um reverso. Uma fera. Bifronte.

Enigmática, a esfinge pergunta ao poeta: “quem és tu?”. A investida do poeta dá-se com outra pergunta devastadora: “Quem me escreve?”. Rasgar a tal pergunta em outras tantas, construir atalhos e vias de acesso no terreno arenoso e labiríntico de que é feita a poesia, desconfiar de si e fingir perder-se para, na vã tentativa, ser resgatado pela própria dicção, eis a presença atônita do poeta, caminhando como um ser amaldiçoado, pelas veredas dos versos que cava no ritmo das imagens que projeta como prismas de si mesmo.

É assim que a poesia de Cláudio Daniel, em seu livro Fera Bifronte, vai dando corpo a esse ser de corpo incerto que assombra o sujeito: a poesia como “fera”, como “animal metafísico”, que “desliza aspereza até abolição de vocábulos”. Que no branco que anuncia (ameaça de sua presença), “sua mandíbula, / aberta como fenda sexual / interrogante”, insulta o poeta e o leitor antes de devorá-los: “Insulta-nos, a insaciada, / antes de castrar nossos olhos”.

Poesia como um corpo que se metaforiza em fera, que espreita o poeta “na sombra / de uma esquina / com sua capa cerimonial, / sua guadanha, / ávida por envolver-me / em lascívia”, e da qual o poeta se esquiva como um “nômade africano”, que também a ameaça: “Se ela vier buscar-me / neste poema, / não encontrará / a carne tensa, palatável, / apenas a efígie / de um perpétuo / fugitivo”.

Ser um fugitivo faz do sujeito, na poesia de Cláudio Daniel, ser a imagem poética da busca, e, consequentemente, sua poesia torna-se o lugar dessa busca e a protagonizadora de si mesma. Ao encenar a fuga, o sujeito tece a poesia como desejo do encontro com essa fera, para enfrentá-la naquilo que o poeta acredita ser sua existência: presença maldita, atávica, visceral, que habita o homem e que o degenera por instá-lo no mistério, “uma erótica de lâminas”. Eis aqui a imagem da sedução presente nesse corpo-a-corpo com a poesia, da qual o poeta não se aparta, muito embora dela procure refugiar-se em vão, pois dele ainda resta a “efígie / de um perpétuo / fugitivo”, como vem a dizer ao final do livro, como epílogo momentâneo a esse movimento labiríntico de procuras e fugas, que constrói a saga de Fera Bifronte.

Seria essa uma loucura erótica envolvendo a trajetória desse sujeito alucinado? Pode ser. Não consigo perceber uma separação radical entre loucura erótica e loucura poética. E em se tratando dos labirintos que os versos tecem, eu diria que a erótica está na natureza de uma semântica de vísceras e animais de pequenos que podem inspirar asco, ou de compleição mais severa, como baratas, formigas, lagartos, mexilhões, peixes, mariposas, borboletas, corvos, touros, grous, escaravelhos, cadelas; elementos atávicos como fósseis, ossos, e membros do corpo como cabeças, omoplatas, caralhos, testículos, falanges, mandíbula, cutículas, tetas. Elementos esses que instauram a presença do corpo no poema, um corpo que procura uma dicção poética para fazer perpetuar a palavra que se busca no âmbito dessa linguagem que lhe dá presença formal. Uma semântica que se desenvolve por via do paradigma do grotesco das angulações da carne do sujeito que habita o universo metafísico do poema.

Ao ler Fera Bifronte, a força semântica das palavras me leva a perseguir uma trajetória de fuga da própria semântica. O que é paradoxal, pois, ao construí-la, vai o sujeito dessa trajetória no poema percebendo-a como a trajetória de uma “anti-realidade”, ou seja, da própria poesia, que o impele a defrontar-se com ela, expressando seu horror pela descrição do modo como a concebe na realidade surreal das imagens que constrói nesse caminho. Essa realidade como “anti-”, como oposta à realidade que acreditamos como segura, revela-se numa aparição que beira o grotesco na descrição eminentemente visual que predomina na dicção deste sujeito ameaçado. A visualidade das imagens está ligada a uma construção poética que prima por levar para o plano do sintagma um paradigma que dribla o leitor pelas figuras que tece ao longo dos versos. Figuras que, justapostas, vão construindo uma metáfora infinita em cromatismos e formas geométricas de percepções particulares, sensações do sujeito que adentra um território estranho.
       

O sujeito vai buscar, nos referentes do mundo, o material para resgatar o sentido outro das coisas. O sentido dos referentes é obnubilado, pois tais referentes entram num jogo metafórico de presença e ausência, ou seja, estão lá mas não são eles mesmos, pois fazem parte de uma enumeração de sensações que emanam do sujeito e que procuram por todas as formas fazer representar a tensão ou o caos em que o sujeito se revela descentrado. Percebe-se o trabalho minucioso com a linguagem de modo a entretecer as figuras que brotam desta realidade num jogo labiríntico, a fim de, por um processo caótico de sobreposição, eclodir a procura do sujeito pela poesia e por si próprio. Seu encontro (mais feito de desencontros e incertezas) se dá no labirinto dos versos, “no extravio das hipóteses, / expansão de territórios / fermentando fêmures / (ruínas de um vocabulário; / escura caligrafia / rasurando crânios). // desfoliante na curva do vento, / onde o leão do labirinto / recifra-se em ecos.//”, como asseveram os versos de “Escrito em osso”.
      

Interessante como a poesia de Cláudio Daniel vai nos fornecendo os caminhos, íngremes evidentemente, para a sua fera se expor aos poucos. O procedimento metalingüístico avança, a cada passo de sua dicção, ao encontro dessa fera, que também se aproxima e invade o cenário, este cada vez mais hermético e retorcido por uma semântica nada fácil. Há ecos de um preciosismo retórico nesta poesia, aliado a uma busca metafísica por dizer o mundo, o que é relido aqui diante de uma linguagem que performatiza o seu próprio caos. Essa obscuridade semântica aproxima-se de um barroco intrincado, que tem na figura do labirinto a rede necessária para propor ao leitor as coordenadas de um enigma. Postar-se barrocamente nesse labirinto é encenar uma retórica de um discurso poético que se deseja oposto a uma poesia fácil, comunicante de circunstâncias, de sentimentos e certezas. O jogo labiríntico das imagens procura resgatar do cotidiano das palavras uma dicção regeneradora dos conteúdos (ou desconstrutora dos mesmos). A saída encontrada por essa semântica intrincada tem como eixo o princípio da dialética barroca, relida pela poesia contemporânea como um traço que resgata não somente o barroco em si, mas também os desdobramentos que a poesia dos simbolistas franceses, por exemplo, construíram para a modernidade: fragmentação do discurso, correspondência de opostos, comparações inusitadas, reflexão sobre a composição poética, exotismo como forma de atingir metafisicamente uma outra realidade, presença do grotesco e do erótico como elementos que metaforizam o revés das coisas, no intuito de instaurar o caos necessário para uma nova percepção do presente. Por mais que o preciosismo vocabular predomine na linguagem poética de Fera Bifronte, não há como não perceber uma consciência perceptiva para o agora do sujeito, um agora agonizante, porque obcecado pelo olhar irônico que rasura a paisagem dos referentes do mundo, oferecendo no lugar a rusticidade da expressão poética que recusa, paradoxalmente, a semântica.
      

Eis o que declaram os versos do poema “Escrito em osso”: “Fósseis argumentos / Esqueléticas grafias / Autofágica página / Inescrita, devoluta. //. Este poema propõe ao leitor um jogo gráfico, em que, num processo intercalado, as estrofes são escritas em itálico e também em tipo redondo. Como compreender essa alternância? Se nos atentarmos à sintaxe dos versos, perceberemos o uso de sintagmas nominais na sua maioria, o que traz para o poema uma dicção mais apartada, mais objetiva, de natureza descritiva que apela para a construção imagético-visual dos elementos que enumera, cuja concretude é de difícil percepção. Eis a razão da excessiva descrição imagética desse “algo” inefável, que só se corporifica no rol das imagens. De forma geral, na poesia de Fera Bifronte, o caráter da imagem é uma faca de dois gumes: encena o objeto, dando-lhe corpo; e oblitera nosso contato direto com ele, que se desloca o tempo todo, pois sua natureza líquida, “leprosa”, como “falange deslabiada contradição / entre memória e mundo”, movimenta-o para a coreografia tecida pelo sintagma irresoluto muitas vezes. O hermetismo da poesia aqui é alcançado e é inevitável.
       

A alternância de fontes gráficas no poema “Escrito em osso” pode sugerir um jogo de vozes. Um processo conhecido já na poesia barroca como labiríntico e permutatório na sua estrutura, aparece aqui numa configuração semelhante na qual as estrofes podem ser lidas linearmente, como aparecem na sequência do poema, ou ainda alternadamente, numa leitura em que as estrofes em tipo itálico podem ser lidas em conjunto, separadamente das estrofes em tipo redondo, em qualquer ordem. Essa possibilidade é dada também pela notação breve de cada estrofe, que prima pelo uso de sintagmas nominais. A “ação”, ou “sequência”, que daria o movimento à leitura das estrofes, encadeando-as numa progressão até o fim, e que é fruto da própria intervenção do leitor nessa ordem que a página impressa dá ao poema, é interrompido. Ao ler o poema, o leitor busca o referente, numa operação inevitável, fruto de um automatismo da língua, do olhar e de um dizer com fins pragmáticos. Ao se deparar com os versos que remetem para si próprios (“autofágica página / inescrita, devoluta.//”), o sentido da leitura já é dado, o início do poema é deslocado: o gesto autoreflexivo da escrita, que se questiona desde o início e que se percebe vazio: “Extinção de estrela ou / mudez do mar.//”. E que percebe na própria escrita o dado humano que a contradiz como verdade e automação: “Pois toda história humana / É um volume fechado / De cíclica desleitura.//”.
       

O que o poema deseja, então? Trazer à tona o sujeito ciente do caos de toda escrita? Leiam-se as “palavras desventradas / da cadela, sons fecais / em hinos de desmemória.//” propostas como uma dicção estranha, enraizada num desejo de releitura da escrita poética, alegorizada aqui como um ser monstruoso, mítico, que atordoa o poeta. Eu diria que, ciente do caos, o sujeito propõe o seu jogo numa semântica que se compraz: “no extravio das hipóteses, / expansão de territórios / fermentando fêmures // (ruínas de um vocabulário;/ escura caligrafia / rasurando crânios). // desfoliante na curva do vento, / onde o leão do labirinto / recifra-se em ecos.// (...)”.
       

A mesma configuração labiríntica se percebe no procedimento de permutação e experimentação dos sentidos, que ocorre nos poemas de “Estudos de anti-realidade”, de “Linhas” e do par “Orum” e “Muro”, poemas escritos em espelho, sendo a configuração do primeiro a imagem refletida do segundo, que tem a sua estrutura original numa ordem mais desmembrada, em estrofes numeradas.
       

A pergunta que faço agora é: como o sujeito se posiciona diante dessa escrita que procura “(destrinchar o mapa celeste / com cálculos e equações / até o nada absoluto.)” ? O sujeito adentra essa atmosfera subterrânea e obscura das imagens e se autodeclara: “sou espectro de mim.”; “sou alimária de mim”; “ sou descosturado de mim”. Este sujeito aproxima-se da linguagem obcecado pelo exotismo e pela abstração das imagens, recuperando um universo poético necessário para a tessitura de seu embate com a poesia. Eis a saga a que nos referíamos; uma saga que se resolve em Fera Bifronte pelo viés da imagem de uma ossatura lingüística e de uma semântica rochosa, hermética e autofágica.
       

O desenho poético que se instaura na obra, portanto, elege um discurso que se pauta por uma erótica da dicção, cujos meandros, ou labirintos das imagens por rotas prescritas pela sintaxe fraturada, organizam a persona deste ser que persegue e é perseguido pelo objeto de sua obsessão amorosa, o qual contempla na sua forma os traços. É pela dicção do poema que a poesia performatiza essa erótica da forma que se busca como amante. A imagem da fera de duas caras, como bem relembra o poeta E. M. de Melo e Castro, no posfácio ao livro, traz na sua natureza o mito de Janus, o deus romano que simboliza a dialética das idéias. Esse ser bifrontal anima a poesia (se não for ela mesma) que entorna no poeta a dialética do ser poeta, o que lhe confere o status de amaldiçoado, pois vive o plano da busca por deslindar a escrita como representação da rarefação dos sentidos. Rarefação da semântica das palavras, eu diria.
       

Isso em parte contempla a desmesurada dimensão das imagens que vão construindo uma semântica rara na obra, que parte de um preciosismo vocabular cujo hermetismo envolve de mistério essa busca que se transforma em fuga manifesta ao final do livro. São as dimensões de espaço e tempo que se aninham na dicção do poeta, no poema “Muro”, por exemplo: “Aqui começa / o lento processo / da supuração. // Até consumir todo o olhar, / e desfazer a pele / obsoleta. // Até a desaparição do mar,/ apenas um eco / guardado / no relógio.// Esse “lento processo” de supurar, de consumir e ceifar, que vai aparecendo no poema, envolve um tempo responsável pelo fazer desse olhar do poeta, cuja dimensão espacial vai se constituindo aos poucos por via de elementos inusitados: “figuras retorcidas, no muro, / sombras de árvores- / anãs.// Um espaço que tem no grotesco de sua expressão imagética o tom de um universo em caos, miríade de “antigas amputações”. Um espaço feito de resíduos, de tempos, de fragmentos de corpos que amputam o sentido: “Porque nada mais faz sentido, / disse com a língua, / os mamilos, / os genitais.// Os primeiros versos do poema Muro trazem para nós a estranheza desse universo: “Uma voz cega, trevos roxos e essa aspereza ceifando,/ ceifando.” É desse “muro” construído pelo poeta, ponte que obstrui e oblitera seu caminho, que surge uma: “Folha / amarela / de um álbum vegetal - / dali a fera salta, / está saltando; / dali a fera canta, / está cantando.” Seu cantar não transfere mais sentido, mas, dialeticamente, irrompe para uma outra ação que promete mudança de rota: “Então, alguma coisa / mudou isso / - folha de relva / cai no asfalto, / um cão late / para sua sombra -.” O leitor atento a esse acontecimento/promessa de mudança de rota encontra-se com a série “Enigmas”.

O poema “Enigma (I)” traz o silêncio figurativizado por um labirinto imagético onde sol, minério ou casulo, imagens que remetem à vida são negadas pela presença do silêncio, espaço que metafisicamente constrói no poema uma abertura em espelho para uma propagação de imagens possíveis que nascem do “occipital do neblí” (osso que aloja o órgão da visão do falcão), imagem que se sobrepõe ao que seria óbvio, “a metáfora / de uma estrela.”, desinventando-a. Esse processo especular propaga uma outra metáfora: desinventar metáforas é criar outras, pois ao negar a invenção da metáfora “de uma estrela”, cria-se uma janela para o objeto expandir-se em outras.
       

Na série “Enigma”, o poema/poeta se busca na escrita, questionando a voz que escreve nele a “desmesurada escrita de ninguém” (Enigma III). A transformação na fome é o mote, aliás, de todo o livro, cuja poesia se busca nas imagens oníricas, singulares, enigmáticas, que se manifestam em estruturas sintagmáticas que, “abolindo delicadezas” (Enigma II), reinventa um tempo multiplicando o mistério da realidade pelas forças de um prisma, que é o próprio poema concebido como uma dessimetria óssea ou como uma “paisagem de linhas / retorcidas” que é absorvida pela “autofágica garganta” do poema.
       

Assim são os versos da série “Prisma”. Cinco prismas-poemas expandem os versos num processo de permutação de palavras, criando imagens outras, relativizando um dizer as coisas, assumindo literalmente que: “tudo é um jogo / de ossos / como saltar / à corda, / piscar / os olhos, / remoer / a canção. / tudo é cinema / mental.” (“Prisma II”). Em “Prisma I”, a série dos versos dizem que “toda palavra / é um labirinto / (retrocita / corvo lunar), / (subreptício réptil / foge / entre folhas).” Em “Prisma III”, retoma-se a sequência num deslocamento sintagmático: “tudo / é cinema / mental, / praias / e palavras, / pilhas de ossos / odres. / alguma porta / ou nenhuma, / esta / ou aquela, esse caminho, / qual caminho?”. Pergunta que ecoa em “Prisma IV”, como “este caminho, / nenhum caminho / (tudo) / (é labirinto), / entre piçarras / e rudimentos / de papoulas, /”; e que termina em “Prisma V” num ritmo que acentua na aceleração dos versos curtos e na alternância tônica das vogais fechadas em /e/ e /a/ e em /u/ e /i/, formando rimas que soam a contundência do discurso, que afirma que “tudo / o que escrevo / tudo / o que escavo / tudo / o que escuto / tudo / o que escarro / tudo o que esqueço / me deslinda, / desatina, / desafina, / desarvora, / desenflora, / entre amarelos / e lanugens, / entre larvais / e mentais, / entre o que / pensa / e o que / sente, / entre o que / mente / e o que / muda, / entre o que / canta / e o que / encanta, / entre / mundo / e nada.”
       

A série “Prisma” elabora aquilo a que faz menção no corpo dos poemas: projeta prismaticamente as palavras em combinações outras, como num jogo de dados, cujas relações vão construindo o próprio sentido da relativização dos sentidos. O processo permutatório e combinatório, de extração barroca, fazem emergir no plano da sintaxe dos poemas sua natureza lúdica, cuja única certeza no espaço movediço em que “retrocita / labirintos”; em que o estar “entre” (“entre fetos / e rudimentos / de búfalo, / entre cristais / e um agudo senso / de coágulo”) é condição para que a imagem surja obnubilada, pois o processo em que se encontra é o de representar o processo caótico em que o sujeito se insere: o de estar submerso e submetido às razões da própria poesia, essa “fera” que habita o próprio poeta e a linguagem.
       

Fera Bifronte traça, enfim, um roteiro que perfaz o percurso imagético de uma linguagem que se faz poesia na medida em que o sujeito, frente à imagem da fera que inaugura o livro, traz, logo em seguida, em “Escrito em osso” uma dicção que metalinguisticamente alude a duas dimensões: a de uma memória de escrita, espécie de fóssil presente; e a de um sujeito que se submete a perscrutar na sua língua interna os espectros de si mesmo. Espectros que se transformam em imagem agônica, de um mundo em caos.

       
Nos poemas, o plano do sintagma constrói um roteiro da relação do poeta com a poesia. Do poema que abre o livro, “Fera”, o sujeito descreve a essência por meio de imagens visuais e cromáticas, cuja geometria assimétrica nos sugere uma grotesca figura, estranha, que já anuncia para o leitor a linguagem de “asperezas”, de figuras “assimétricas”, de “enigmas” de que é feita: “Animal metafísico desliza aspereza até abolição de vocábulos. / Uivos óticos; / patas enviesadas; / fileiras assimétricas de vértebras, / códices de enigmas ósseos.”

       
A “dessimetria óssea” a que nos referimos não é apenas uma imagem, mas um procedimento sintático-semântico que gera os filamentos do verso, cujo ritmo dá forma à visualidade da trajetória e dos objetos que se insurgem para o sujeito como elementos simbólicos da própria poesia: a serpente e a flor, por exemplo.
       

À maneira de uma escrita em labirinto, a poesia de “Linhas”, por sua vez, vai construindo um movimento “dificultoso” que expõe a dinâmica da escritura. Não há como não perceber a reflexão crítica sobre a linguagem poética, feita do tecer constante do discurso que se autodevora em projeções de linhas/versos, que se realocam buscando seu sentido num processo de permuta que vai promovendo semioses.
       

O sentido das linhas está no próprio procedimento: “no espaço expandido [do verso]”, “em sequência infinita”, a partitura do poema reinventa o tempo, “multiplicando mistérios / e sentidos” nas “linhas [que] atravessam cores em planos precisos”. Interessante o jogo de montagem a que está submetida a escritura, retomando um procedimento de natureza barroca que tem como função repensar o próprio código. A metalinguagem ressoa e avança no entrelaçamento com a função poética da linguagem que reagrupa os versos na “máquina lírica” da poesia de Fera Bifronte.
       

Como a linguagem consegue tecer uma semântica labiríntica, envolvendo o leitor numa trilha de surpresas, de realidades surreais, vertiginosas e violentas na sua ácida e árida paisagem de animais e imagens voláteis de facas afiadas? Uma anti-realidade é tecida por uma ironia ao já conhecido para oferecer a contraparte de um sujeito que expõe sua percepção bifrontal do mundo, seu faro/falo de fera. E o que viria a ser essa forma bifrontal de perceber e ser percebido pelo leitor? Há na poesia de Fera Bifronte a construção de imagens inusitadas que singularizam a percepção e que constroem um espaço espacializante de formas pouco nítidas e rarefeitas. Alguns exemplos temos em: “só o silêncio duplicado em orquídea” (de “Enigma I”); “minha fome vertebrada” (em “Rapto”); “a contradição de um crustáceo” (em “Caranguejo”); “Em branco aniquilar” (em “Fera” 1); “faz do breu uma erótica de lâminas” (em “Fera” 2).
       

As construções dos núcleos sintático-semânticos vão criando esferas fechadas e cuneiformes, para me valer da imagem da cunha, instrumento de dilaceração do material do artista para sulcar nele um espaço, uma forma, assim como o escultor usa o seu cinzel, dobrando e redobrando a superfície da pedra; assim como o poeta, por via sintática e sonora, vai redesenhando o material lingüístico que retira do mundo e lhe devolve com todas as arestas das quais o próprio mundo é feito. Ou seja, a realidade é submetida a um estudo que entrevê nela uma anti-realidade. Ou ainda, uma realidade que pensamos conhecer, mas que se apresenta estranha pela focalização fotocinematográfica de seus elementos mais evidentes. A série “Gabinetes de curiosidades” revela um “horror show” irônico no elemento semântico “shop” que acompanha a artificialidade (implícita no valor de compra dos objetos inseridos nesses espaços) das imagens do sexo (onde surge “um singelo par de algemas com a palavra love escrita em runas ancestrais”), do animal como “pet” (onde “Pandas traficados de Pequim jogam dados com lagartixas da Ucrânia”) e da presença humana ironicamente descrita por um recorte metonímico e uma construção metafórica que estranham a obviedade no espaço de um “coffee shop” (onde “Cabeças de executivos são caixas registradoras com um estoque limitado de palavras”) .
       

Em “Fera Bifronte”, o jogo poético é armado logo no início e convida o leitor a participar de seus percalços imagéticos, de seu tom surreal e simbólico das figuras que encenam uma gestualidade quase mítica, inaugurando uma “anti-realidade”, um universo que se oferece como resposta quase que violenta a uma realidade mais circunstancial. Talvez pudéssemos dizer que a fera que nasce logo no início do livro performatiza a crise de uma realidade da qual o poeta procura escapar para retornar a ela por seus interstícios, deflagrando nela sua violenta presença para o sujeito que no poema a nomeia como um “cinema insano / que alguns chamam / realidade”.
       

O adensamento do enigma para o sujeito revela-se em silêncio, em um não-dito ainda; revela-se também como o desejo por descobrir algo que permanece sob a “capa” da realidade, do referente imediato do mundo. Talvez por isso as imagens desse enigma se presentifiquem no poema por figuras que aludem a um universo subterrâneo, surreal, de onde surgem “incisões, talvez sombras, / tão híbridas que vociferam; / lupinas alinhadas abolindo / delicadeza; guturais, / obcecando / lúpulo”. Esse universo desconhecido é percebido grotescamente na sua violenta aparição para o sujeito e para o leitor: uma “desmesurada escrita de ninguém”, uma “fome obscura” em que o próprio poema se transfigura. Eis o verso em seu reverso de fera.

(Resenha publicada no site Cronópios)

OS UNIVERSOS CULTURAIS E A PELE DAS PALAVRAS (fragmento)


Boris Schnaiderman

“A coletânea de poemas de Claudio Daniel, publicada recentemente pela Perspectiva, Figuras Metálicas, inicia-se com uma apresentação de nosso inesquecível João Alexandre Barbosa, onde se diz que o leitor é convidado, nesse livro, ‘a se deixar envolver por tudo o que é reverberação de som e imagem, abdicando da discursividade e mergulhando no tumulto das sensações gravadas na pele das palavras’. Com esfeito, este âmago da linguagem, esta pele e este cerne são o que se percebe com intensidade em todo o livro.

Ao mesmo tempo, há nele um diálogo forte com diferentes universos culturais: a realidade poética brasileira (e com que intensidade!), a partir de 1950; a poesia dos nossos vizinhos hispano-americanos; as tradições orientais etc.

Sem dúvida, Claudio Daniel é, essencialmente, um poeta do diálogo entre culturas.

Como que reafirmando esta minha impressão, surge agora a coletânea Íbis amarelo sobre fundo negro, do poeta cubano José Kozer, publicado pela Travessa dos Editores, de Curitiba, com organização, seleção e notas de Claudio Daniel e traduções do mesmo e de Luiz Roberto Guedes e Virna Teixeira, com texto bilíngue.

O livro contém igualmente uma entrevista que Claudio Daniel realizou com ele e que expressa bem o essencial de sua obra. Neste sentido, veja-se o preâmbulo de uma indagação do entrevistador: ‘Ao contrário de outros poetas contemporâneos que privilegiam a síntese, a concisão, os seus poemas são longos, pletóricos, recordando por vezes Góngora. Porém, o seu discurso não é linear, convencional: você cria uma sintaxe própria, em que a elipse e o uso do parêntesis quebram a lógica rotineira. Você faz pequenas colagens verbais, associando ideias conhecidas para criar o desconhecido, o sugestivo, o mutável.’ Como definição da maneira de poetar de Kozer, parece impecável.”

(Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 13/05/2007, pp D10-D11)

POESIA PURA

Armando Freitas Filho

Pura porque suja, porque ela é extraída do maciço da linguagem só com a lapidação "de serviço", ou melhor: o esmero é esmerilhado. A impressão que se tem é que existe um constante esforço, que não desanima, do caos relativo do pensamento para o cosmo possível e impossível da escrita. 

Outra coisa que chama a atenção é o universo vocabular que esse esforço agencia: estranho, exigente, mirabolante, disposto e aberto a toda ousadia. Por isso mesmo, os poemas não se entregam na primeira leitura. Entre o autor e o leitor, para um bom entendimento do que lhe é oferecido, é imprescindível que se crie um pacto, que não é pacífico, uma espécie de luta ou de jogo que não almeja a vitória; seu resultado melhor é o empate, a empatia, o compromisso assumido, cara a cara.  

Também é digno de nota que, coisa rara, nos livros de Claudio Daniel – um por todos e todos por um – como em Yumê, que se reedita agora, não há desníveis, há progresso paulatino. Não são somente poemas, um punhado deles, mas uma poética que vai se formando, e que os vai reunindo - todos - num mesmo cabo de força, sem deixar que nenhum escape, caia. Não é, apenas, vocação, é um dom que não deixa a mão afrouxar.

Mais: instinto e razão, reflexo e reflexão são como motores concomitantes; um não precede o outro, um é o outro se alimentando, simultaneamente. Claro que podemos preferir ou escolher para este momento de leitura, alguns dos poemas; mas essa escolha não é definitiva, e quando os relemos pode haver uma troca de elenco e não seremos levianos ao agir assim, pois a luz mudou, o momento é diverso. As indecisões relatadas acompanham o leitor atento às nuanças, de capa a capa: como não ser injusto? Como ser justo? Compreende-se, depois, que a boa poesia não pede justiça.  O que essa poesia pede é necessidade, ela se faz necessária assim: in totum, já que nela não há desperdício, nem volubilidade. Ela prefere abrir a fome e não saciá-la. Talvez por isso, cala fundo. É isto: ela cala fundo.

(Texto de "orelha" da segunda edição de Yumê, que saiu em 2007 pela Annablumme / Dix Editorial.)




sábado, 11 de agosto de 2012

YUMÊ


 Meu segundo livro de poemas, Yumê, foi publicado em 1999, pela editora Ciência do Acidente (uma segunda edição saiu em 2007, pela Annablume). Leiam abaixo o prefácio do livro, escrito pelo poeta cubano José Kozer.

"Um conhecido dístico, aliás poema (In a station of the metro) de Pound (“The apparition of these faces in the crowd: Petals on a wet, black bough.”) reflete de modo especular o belo poema O um igual a zero, de Claudio Daniel. Arnaut Daniel, o trovador provençal, o trobar clus amado por Pound, amado por Claudio Daniel.

Um resultado é este formoso livro (Yumê), onde Oriente e Ocidente, de modo especular, se sonham, mariposa dentro de mariposa do sonho dentro do famoso sonho deste famoso desconhecido que foi Chuang-Tzu.

Chuang-Tzu, Claudio Daniel, Ezra Pound: nosso poeta brasileiro encerrado como por parêntesis entre duas nobres vozes, dois nobres feitos, que, mais do que clausura, servem de feitura (simbólica) (real) a esta obra. Oriente em Claudio Daniel; Ocidente em Claudio Daniel; o Concretismo, o Neobarroco, a pós-modernidade, a fulgurante jóia límpida de seus poemas sem ornatos; a singeleza da linguagem, que é a complexidade maior da linguagem, e o neobarroquismo expressando desde sua estrita abundância a ulterior singeleza do Oriente, do Ocidente: harmonizados, sintetizados, em obra aparentemente casta e no entanto sensual, luxuriosa; obra aparentemente límpida mas cheia de nuvens, nebulosas, constelações ao ignorado, do (desde o) ignorado; espelhos do caos, esse grande espelhismo.

Um palimpsesto, sem dúvida um palimpsesto: raspamos com o buril do amanuense e debaixo de cada placa, de cada lâmina encontramos outra versão, outra visão do mesmo assédio (especular) que implica uma mesma busca de beleza, que leva (todavia, é válida na boa poesia) ao ulterior: debaixo de todas as capas superpostas de todos os textos de Yumê está a reverberante abundância da vida, suas cores, claridades, sua poeira que como um ponto ressumbra e resume a presença viva, bíblica, da mulher de Lot (Epitáfio para a mulher de Lot). Água que escorre, Cathay ou Cipango que são Brasilis, braços abarcando um orbe (o de Claudio Daniel) que são todos os orbes do Orbe.

Yumê é um camafeu enganoso, que engana o leitor preguiçoso. Este acreditará de pés juntos ter lido um livro despojado, ínfimo, magro. O camafeu é um contorno, uma jóia mínima por certo; porém, no caso de Claudio Daniel, este encerra uma ordenada desordem, uma fragrância inodora, uma multitudinária voz de vozes que, tigre ao final, se prepara para o grande salto que desbaratará, por sua força, por sua vital abundância, os contornos do camafeu: migalhas, invisíveis ao leitor, que se reconformam e fazem de seus fragmentos um novo camafeu, um camafeu chamado Yumê: objeto vivo sem suturas visíveis, contorno dentro do qual o Nada se apresta uma vez mais para o salto (assalto), pela via poética, da Totalidade."


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A SOMBRA DO LEOPARDO




Caros, publiquei em 2001 meu terceiro livro de poemas, A sombra do leopardo (1a. edição: Rio de Janeiro: Azougue Editorial; 2a. edição: Rio de Janeiro, Multifoco, 2010), que ganhou o prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, oferecido pela revista CULT (o júri era composto por Nelson Ascher, Waly Salomão e Claudio Willer). Segue abaixo o prefácio do livro, escrito pelo poeta e crítico literário uruguaio Eduardo Milán.

“Claudio Daniel pertence a uma linha criativa da poesia brasileira que parte, aproximadamente, de João Cabral de Melo Neto, atravessa a vanguarda (a poesia concreta, especialmente algumas buscas de Haroldo de Campos em sua fase poética mais condensada), e toca experiências de poetas que derivam, numa primeira fase, da experiência concreta paulista. Estas não são, no caso de Daniel, relações de dependência, mas um sistema mínimo de referências poéticas que constituem a linhagem necessária para que se possa falar de um poeta e situá-lo em sua tradição.

Constante uso da elipse, definição das imagens com alta precisão, tendência à objetivização do verso como condição de sua existência. O verso é breve, cortado segundo uma conveniência rítmica, mais do que semântica, porém, devolve todo o espectro do sentido, de acordo com uma lógica de surpresa, dada pelo mesmo corte no aparecer do verso seguinte, abaixo. Alguns motivos que se repetem: a palavra, naturalmente, o silêncio, a cultura in extensu.

O mundo dado por partes (metonímia, ainda que, também, e surpreendentemente, metáfora, metáfora crítica surgida às vezes das relações latentes que emergem na cadeia significante como conseqüência da organização verbal). Ou, às vezes, a metáfora como dispositivo gerador do poema, do qual descenderão outras possíveis relações verbais. Um acréscimo de Claudio Daniel à poesia urbana e pós-concreta brasileira: o apelo a um universo mítico, dado não por paródia de discurso fundador, senão por referências — o mito como possibilidade poética que se oferece, de forma parcelada, no mundo.

Os poemas intentam alinhavar uma narração, na medida do possível poético contar uma história por imagens, alinhavar por imagens um tecido que se cria por impressões da existência. Também está presente a figura totêmica da poesia pós-mallarmeana, a página, colocada aí como um suporte quase mítico. A brancura da página está (porém, nem sempre se deixa ver) como referência atualizante, como homenagem —, para fazer constar que Claudio Daniel também esteve aí. Diria que em Claudio Daniel o motivo poético central, em sua relação com a poesia brasileira, é reconstituir a estrutura verbal, encarnar o osso verbal que, em seu polimento maior, havia feito aparecer a vertente Cabral/poesia concreta. Porém, não se trata de um retorno, senão de uma contribuição a um ordenamento da mesma ação.

Biografias de culturas, biografias de certos personagens culturais (Dante, Nagarjuna etc.) são recortes, impressões de leituras, intuições líricas: a cultura como documento interior. São projeções do falante, fragmentos civilizatórios. Nenhuma cultura cabe em uma voz (a prova de Pound dos Cantares). São impressões, imagens. Mas isto parece um reconhecimento, por parte de Claudio Daniel, de que não há possibilidade de poesia na atualidade que não tenha uma relação dinâmica com a cultura, dinâmica e evidente. Claudio Daniel é um lírico cultural.

Ao fim de A sombra do leopardo, os poemas caem na tematização do poema — o poema como tema — e na tematização dos arredores do poema, seu âmbito, que, aqui, é existência. Aparece, então, a miséria do poema, sem a qual, pareceria, nenhuma aventura poética autêntica pode ser considerada na atualidade.”

Coyoacán, 2000