DIÁRIO DE UM EX-FUMANTE

Eu fui fumante durante trinta anos. Comecei na época do colégio, aos 16 anos de idade, época em que sonhava ser o novo vocalista dos Rolling Stones, e parei aos 46 anos, já convencido de que a minha capacidade vocal não é a mesma de Mick Jagger (embora eu seja muito mais sexy do que ele).

Como parei de fumar? Fiquei uma semana hospedado na fazenda Nova Gokula, onde podia tomar banho de cachoeira, seguir trilhas na mata, comer pratos vegetarianos, cantar mantras e fazer exercícios de Tai Chi Chuan. Consegui ocupar minha mente com outras coisas, mais saudáveis, o que ajudou a combater o desejo de fumar.

Ao voltar a São Paulo, ocupei-me várias horas por dia a praticar exercícios físicos, Tai Chi e Aikidô, e a ler mais; sempre que sentia vontade de fumar, “mudava de assunto”, bebia um copo de água, pensava em outra coisa, e logo a vontade passava. Aprendi, então, que essa vontade surgiria várias vezes (até em sonhos), mas que era temporária; se eu aguentasse alguns minutos, logo ficaria livre dela.

Passei a comer doces, doces e mais doces, para compensar a abstinência; tomei mais refrigerantes e evitei álcool, café e carnes temperadas (depois, pude voltar a consumir essas coisas, sem problemas). Engordei 13 quilos (o que para mim não é problema, pois sempre fui magro: passei de 55 para 68 quilos). E notei que adquiri mais fôlego, força, vitalidade; a sensação de bem-estar físico compensa, e muito, o prazer limitado e sempre insatisfatório das baforadas.

Notei que o efeito do tabaco de acalmar a mente é impermanente, e que gera mais ansiedade e dependência; em vez de tranquilizar, agita mais a mente. Sem essa muleta psicológica, passei a usar outros métodos para me acalmar: ouvir música, praticar esgrima, passear num parque, recitar um mantra, brincar com meu filho.

Após oito meses de abstinência, posso dizer, sem demagogia, que hoje me sinto muito melhor, e que existe vida, e ótima vida, após o cigarro. Isto não significa que eu concorde com as políticas antitabagistas do sr. José Serra, a meu ver ações de marketing eleitoral, e não de saúde pública. Afinal, consideremos:

1) carros, ônibus e caminhões despejam uma quantidade incalculável de gás carbônico e outras substâncias tóxicas, diariamente, nas ruas de São Paulo. O que o governo do PSDB fez em relação a isso? Nada. Absolutamente nada.

2) Assim como o tabaco, o álcool também provoca doenças, mortes, acidentes de trânsito, problemas familiares e nos locais de trabalho. O que o governo do PSDB fez em relação a isso? Nada. Absolutamente nada.

3) É possível argumentar que, para evitar o controle do Estado sobre os direitos individuais do cidadão, alguns espaços dedicados apenas a fumantes poderiam funcionar legalmente (claro que os não-fumantes, sabendo disso, não frequentariam tais antros). O que o governo do PSDB fez em relação a isso? Nada. Absolutamente nada. (Como não fez nada para combater o trabalho ilegal de crianças e tirar os menores das ruas; é mais fácil proibir out-doors, como fez outro demagogo, o sr. Kassab.)

Temos governos que não se preocupam com a saúde, a educação, a cultura ou os direitos dos cidadãos, mas apenas com ações de marketing, que tenham visibilidade na mídia e possam ser usadas em campanhas eleitorais (como a populista Virada Cultural, que consome milhões de reais que poderiam ser utilizados em ações sólidas e duradouras de apoio à produção e difusão da cultura).

Sou ex-fumante, apóio ações educativas para a prevenção e combate ao tabagismo, que é uma doença grave, mas acho preocupante o Estado ditar normas em relação aos direitos dos cidadãos. Sinceramente, espero que, nas próximas eleições, o PSDB e seus aliados e amigos virem fumaça.

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (XIV)


TABI

o vento
açoita
bambus:

dançam
sombras.

no caule
da vagem,
o orvalho

resvala
na lua.

o gato
imita
o tigre:

rumor
de aves.

brancas
geleiras
lácteas:

o colo
do cisne.

o fuji
apunhala
a névoa:

fiapos
de branco.

no sonho,
o monge
em viagem:

tudo
é miragem.

(Poema de Claudio Daniel, do livro Yumê. São Paulo: DIX Editorial, segunda edição, 2009)

ANA HATHERLY NO CIBERESPAÇO

Caros, publiquei dois ensaios sobre a poeta portuguesa Ana Hatherly em revistas eletrônicas: O labirinto contraria o linear saiu na Revista Psicanálise & Barroco, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e O escritor: uma “máquina de produzir desordem” foi publicado na Eutomia, Revista on line de Literatura e Linguística, da Universidade Federal de Pernambuco. Os endereços dessas publicações estão na lista de links ao lado.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (XIII)


MEIO-DIA

beira de viaduto,
mendigo
descalço

televisão nos braços

súbito, arremessada
avenida abaixo

cacos
carros — veloz
disputa
dos pedaços, asfalto

enquanto

esfregar de mãos
os passos
sem pressa.


* * *

ruas noturnas
sábado

pés cansados

táxi nenhum
espera

lugar no ônibus
duplo
repleto de
caras bêbados

idiomas

minha cabeça
caindo

seu ombro

onde
adormeço

(Poemas de Virna Teixeira, do livro Visita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (XII)

PARDA, PRETA, PINTADA

“mecê pensa que ela é muitas,
ela tá virando outras” (Guimarães Rosa)

fala do nada com isso:
o coisa nenhuma
ronco no oco do
bicho choque que
se transmite se
a mão (em sonho ou viso
de intenção) caminha
do fio-veloso-das-costas
ao mastro do rabo
em riste
fala que fala consigo
à roda
iauaretê, meu tio? não-nunca
que delírio se instrui no
lume do corisco
pintada ei palavra vis
lumbre na greda
e o rastro: areia
que desaba
ao peso, sempre,
das patas

(Poema de Claudia Roquette-Pinto, do livro Saxífraga. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993.)

ZUNÁI, REVISTA DE POESIA E DEBATES

XVIIIa. edição, ano V, agosto de 2009

A crítica literária reflete a criação poética contemporânea? Debate com Leda Tenório da Mota, Aurora Bernardini, Claudio Willer, Carlos Felipe Moisés, Dirceu Villa e Victor da Rosa

Três poemas inéditos de Arnaldo Antunes

Ler é coisa de leitor, ensaio de E. M. de Melo e Castro

Poemas de Marianne Moore traduzidos por Augusto de Campos

O feitiço da palavra: uma conversa com Wilson Bueno

Uma viagem a infernos possíveis, ensaio de Claudio Daniel

Cinco sentidos: a nova prosa brasileira, por Nelson de Oliveira

Homenagem a Rodrigo de Souza Leão (1965-2009)

Festival literário Artimanhas Poéticas 2009

Cinco poetas da Venezuela, por Gladys Mendia

Exposição virtual do artista plástico angolano Masongi Afonso


Zunái, Revista de Poesia e Debates.

Onde encontrar: no ciberespaço (www.revistazunai.com)

Preço: inefável, inconcebível.

Blog da Zunái: canal de notícias sobre o mundo literário (http://www.revistazunai.com/blog/

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (XI)

(UM NOTÁVEL EM RETIRO)

trinta anos de vida rústica saciaram tua sede.
montanha acima, contemplas o mundo sem saudade.
abaixo o impetuoso, o sempre jovem Yang-tsé.
recordas uma espada: com ela deste morte
a seis soldados tártaros. Virtudes juvenis; servias
ao Imperador e a sua família: te nomeio mandarim.
com roupa de cetim hospedava-te na corte, sereno,
recordas, hoje que nada te ofende. sorris.
à lua e ao dragão e aos pássaros.

* * *

(AUGÚRIOS ADVERSOS PARA O IMPERADOR)

ramagens indóceis penetram a alcova imperial;.
treme no leito a favorita de Li Wang.

solícitos eunucos fecham persianas e cortinas.
Pensa em seu senhor; lá fora, cavalos batem cascos.


* * *

(NA MONTANHA, A LUA)

redonda, alada, impura:
— as árvores, os altíssimos pinheiros
a penetram — as nuvens
aconselhando-lhe pudores que
ela não reclama.

um verde frio repete sua luz; distante,
o vale generoso.

* * *

(PEDRA)

coberta, descoberta pelo mar.
a ave não a possui (pousa,
repousa nela).
preciosa: singular
como essa mão que a elege (a
erige em seu olhar);
concebida, cede: cifra
do mundo — pedra —
que demuda.

(Poemas de Victor Sosa, traduzidos por Claudio Daniel no livro Sunyata. Bauru: Lumme Editor, 2006)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (X)


ARANHA NO SEU SER

Ragno nel suo essere, uma moldura dourada encoberta por, cornucópias, rocailles, tensões submersas em, pequenos orifícios braquinhos, grandes brasões afundados em, douraduras esvaídas que por sua vez encobrem a madeira talhada, a mesma madeira, a seiva e o sol de estações que secam, as mãos dos entalhadores, tudo coberto pela aranha no seu ser, no ser-aranha que fabrica teias, armadilhas, casulos, e tudo encobrindo o quadro, a grande pintura de referência, o cânone: aranha que trabalha sem pincelada de graça, sem pigmento de velha extração animal ou mineral, sem verniz de laca ou cera ou baba de outro material, aranha no seu-próprio sobre a obra-prima abandonada, ali no canto sob o estupor da canícula, quem já viu um julho como estes, quem já viveu tais estações sangrentas, acumulam-se os fios tênues sobre a superfície pictórica, o descobrimento de Moisés é já casulo, o olhar que o pede, puro engano, estratégias da aranha: o opacar, o impedir, não haverá quem revele o tema, o motivo da composição, nenhum limpador da rede de verdade sobre a representação: retórica,. Lugar da aranha ou de Moisés? Rubicundo, Vêmo-lo dissentir desta nova e maior deriva, deste chamamento à natureza e suas razões. Tema: és bebê dentro do molde, imagem que não perdura. E tu, aranha, dadora de males, provedora de escândalos turísticos, és a confortadora dos bons: como a leitura, dissipas sobre o ar os teus sentidos, a tua baba. Moisés flutua em outra dimensão, detrás da renda. Foste concebido em A. C. e pintado, com qual exatidão, por um revisor do acervo, alguém não exatamente, e à tua diferença, alegórico. Eis que a alegoria final se deu no tempo, neste que vivemos, e através da bem-vinda, necessária aranha.

(Poema de Horácio Costa, publicado na revista Et Cetera n. 0, em 2003.)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (IX)


TRÓIA

Toda saudade
repousa nas palavras,
tem cheiro de pinho
e ossos muito brancos.
Toda saudade:
velas arriadas
dos mastros dos batéis,
última visão da chama apagando,
canção de helenas nuas
perdida nos lábios de Ílion.
Em tudo,
o teu nome de pedra,
Saudade,
cadela morta.


ARRECIFE

Desse ponto
partem distâncias imaginárias
que contam
das reais distâncias entre nós.
Um homem posto
à frente de uma janela
é o fantasma de si mesmo
suspenso por linhas
e cores improváveis.
Somos ele
e ele é todos nós
como se não fôssemos
(ainda)
a cidade
em seu entorno.
Somos ele
e seus ombros caídos.
Somos ele
e seu rosto roído pelos peixes.
Somos ele
e as ruas estreitas
que o cortam
e que nele se empalam
como postes
travas
e outras saudades sem sentido
(como qualquer outra saudade).
Uma estátua
observa
a constelação das águas.
Sua roupa cinza
se agita
e veste por um instante
a pele nua do rio.
O homem se agita
e com ele
a cidade costurada
em nossas carnes.
Tudo cabe num selo
ou num trago de cigarro.
Tudo cabe no verde
mais próximo do branco.
Tudo brada:
relógio ensadecido.
Somos o real
e nada somos.
E isso é tudo.

(Poemas de Micheliny Verunschk, do livro inédito Cartografia da Noite.)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (VIII)

lua quase cheia
por trás das nuvens
nos olhos do cão

assombrada por você
minha sombra
se esconde de mim

todos os verdes
em um só vaso
família de cactos

no escuro das águas
uma voz clara
nada nunca pára

vento nas folhas
chuva nas árvores
rio correndo

a gaveta da alegria
já está cheia
de ficar vazia

(Haicais de Alice Ruiz, dos livros Desorientais, Iluminuras, 1996, e Yuuka, Ameopoema, 2004)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (VII)


EXILIARES (fragmento)

Rodeado de lianas de insistência,
viajar acende a manhã. É
ruído o corpo, o corpo é
ruído enquanto cala.

Luzes se desfazem, se perguntam.
A rua em branco é papel e muda.
Olhar impõe uma corrente.
Ninguém acompanha o grilo na úmida

labial que agora apaga e ri. Cheira
a morcegos a casa das borboletas.
Na gruta vários músicos idênticos
afastam um cacho vizinho de risos.

A pirâmide solar está grávida
pelo espelhismo roto da pupila, que sabe
às vezes o reflexo que olvidou a fonte.
Queimam-se perguntas por fragmentos

de cada menino antigo que não voltou.
Porém volta, em outra forma, outra vez,
areiazinha que se dá por um punhado.
Recupero na fragância

de algum modo o outro harmônico
que a sua espessura cinge e ao ossário
traga pela borboleta,
sempre irrepetível pois retorna.

Não é alarde senão pluma na corrente
que desterra, errar até a polpa ou medula.
Recontos rotos concordam,
anéis grises somam o salto de um só

grilo nesta ausência.
Porém, o que se perde ou consuma?
Quando o dia cessa, se ainda estala,
pedraria?

(Poema de Reynaldo Jiménez traduzido por Claudio Daniel no livro Shakti. Bauru: Lumme Editor, 2006.)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (VI)

RIZOMA

Você deixou os instrumentos sob o sol rachando o som que penetrava rochas de cores escritas com o tato, você delirava considerando asteriscos num céu de areia hostil.

Os halos seguiram com os corpos, quebras de esquinas com o vazio do tempo nas narinas mornas do nômade, rimas taliban se dublam e enroscam como ramos, e se multiplicam em rajadas acordes que pastam solitária lucidez.

Durou o espaço de uma brecha o dia com pressa de partir e sede no cérebro luz árida exílio areia hostil.

Inóspita. A palavra habita um lugar que lhe é impossível. Não representa nada a não ser um estalo no . Devora as margens com a precisão dos grandes rios, mas vomita seu nada e seu devir, vácuo visível.

A razão negra desabrocha numa agulha. O próprio movimento interroga o espaço que cria atrás de si, sim.

Avança. Mais diz quanto mais se distancia.

Foi então que começaram as desaparições.

* * *

ORGANICISMO

Lótus obtusa, broto do Uno, idéia de duna às 3 da tarde, água ensurdece para que a blusa da brisa respire: nada mais claro, muralhas de açúcar se dissolvem na língua que sua pelo corpo (visto de cima): nenhum corpo nem palavra é sua, seu, epos se repete até que os ecos, sólidos como socos, impeçam seu trajeto de fronteira. Floresta significa estar fora disto, forasteiro, mas nenhuma rocha comenta seu mal-estar, fragmentos de conversas humanas, mal estando. Da semente um anagrama, a forma cava sua cova rasa, frestas tectônicas deslizam. Galhos (afrescos) recolhem tudo no caminho, como se, enquanto vicejam no vácuo destes estames pensamentos.

(Poemas de Rodrigo Garcia Lopes, do livro Nômada. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (IV)

TONEL DE UMA DANAIDE

A Gabriel Jaime Caro

Ocorre nessa arena brutal do sentimento: falaram-me de um anfíbio e achei este indício tônico, este assistir o fumo com três falanges mansas e linhas de balé quando assume um cigarro. Calado em seu tonel (cujo esquema é meu frontal) propende sem estrias à multiplicação, assim pese ao frontal correcionário de tudo quanto habite no pretérito. Por ele não é insólito que abruptamente invada, todo um cúmulo fluido que retifico diáfano ao prever sua dispersão.


BIANCA JAGGER DEPILANDO-SE ANTE WARHOL

O sorriso é um diagrama de excelente carnadura; se estabelece em claro-escuros de fotografia vulgar. Uma axila ao meridiano, um vazio sem mangues que se reproduziram depois de serem cortados. Com uma metade negra e na outra grude-gris a realidade quadrada para ti é desequilíbrio: desemboca em desembarques deprimidos de seu decote e o cabelo de sarçais mais a ascese da toalete. E nem o olho nem a lente calarão sua massa em crise confinando-a a sua insólita imobilidade.


PROSA DO QUE ESTÁ NA ESFERA

Um espelho é o artífice daquela ubiqüidade. E não é que é ganancioso reproduzir as algas e o movimento mudo: com um giro sustentado se delega escuramente e (entre as correntes frias) o translúcido e sua disseminação. Corrosivas as paredes, o que embalsa os montículos, reproduzindo em transe um testamento em amálgama. A cada salto sucessivo, em toda fuga da margem, rigores ambiciosos que fecundam em minhas chagas.


(Poemas de León Félix Batista traduzidos por Claudio Daniel no livro Prosa do que está na esfera. São Paulo: Olavobrás, 2003.)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (III)

OS GUAPÉS

O que comove nos guapés é o tamanho: microcães menores do que um camundongo doméstico, são em tudo idênticos aos jaguaras que povoam as malocas de pulga e uivo.

Intensos, mínimos, replicantes, latem muito, principalmente quando em fuga, um latido agudo e aflitivo feito agulhas a crivarem vosso tímpano.

Quem nos dá ciência dos guapés são os índios kaxuianas, do Alto Amazonas, descrevendo-os como pequenos monstros traiçoeiros capazes de penetrar a vagina das mulheres grávidas, se dormem desprevenidas, e aí então motivando um desastre de consequências imprevisíveis — sobretudo com a furiosa devoração do feto baixo esganiçadas mordidas.

Segundo alguns sertanistas, não há, contudo, espetáculo mais desconcertante do que flagrar, no oco de velhas árvores ou em buracos cavados próximo à barranca dos rios, uma ninhada de guapés jovens — os microscópicos filhotes agitando os rabinhos, enroscando-se e mordendo-se uns aos outros ou disputando, das cadelas, as tetículas inverossímeis.

Ao pressentirem movimentação estranha, ganem e uivam, em fuga, desaparecendo sob o mato rasteiro, como se nunca, em tempo algum, houvessem existido.

(Conto de Wilson Bueno, do livro Jardim Zoológico. São Paulo: Iluminuras, 1999.)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (II)


OS POROS FLÓRIDOS (fragmentos)

Nenhum lugar. Lugar algum perdura.
Um ventre a sombra alisa, um plano
o sol levanta, cumes que o vento
plissa. Sol branco, sol negro, o vento
apaga os rastros na areia, apaga
os passos da língua. E o sol
a pino assola, o frio da lua cresta
a pele que se solta,
o suor do corpo em febre
que se solta, e as peles são silêncios,
poemas que se deixam,
e o lugar é aqui, e lá, e ontem,
e as letras voam, revoam,
espreitam como cobras sob a areia
(camaleões se escondendo em si mesmos),
espiam as peles que se espalham, página
ou pálea, corpo que se desveste, desmente,
dedsvaira: tudo é miragem.

Um som de antigas águas apagadas.

É miragem a rima, a fábula do nada,
as falhas dessa fala em desgeografia,
a fala hermafrodita, imantação de astilhas,
a voz na transparência, edifícios de areia.

Mas teu olhar o mesmo, em íris-diafragma,
fotogramas a menos na edição do livro,
e o enredo sonho e sol, delírios insulares,
teu olhar transparente, a imagem
margem d’água, e as fábulas da fala,
as falhas desse nada – superfície de alvura

ou árida escritura.

(Poemas de Josely Vianna Baptista, do livro Sol sobre nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2007.)

ANTOLOGIA ALEATÓRIA (I)


TRANSUBSTANCIAÇÃO

A semente amplia o território de sua pupila a toda a carne da pêra.

Uma lâmpada negra é Buda.

Sustenta as constelações momentos antes do fulgor.

Negra raiz do esplendor é Buda.

Se disfarça de moribundo, mocho, lótus, rubi entre os enxames.

Apesar de a Morte não ter remédio (saibam) apesar de.

Esplendor de Buda a fome, a inenarrável configuração da pêra.

Abro a boca a seus pés (calvo) me estendo: noite de constelações, ingiro.

Orfeu guia as manadas à saída dos jardins do Rei, se aproximam, nenhum animal de sua
condição se retrata.

Ordem do fulgor a pereira florida, e ordem do esplendor a boca saciando-se (saciando-se) da
pêra (Buda) indene.

Estendido entre os pés do Amado em Amada transformado escuto (debaixo) a segregação
do escaravelho, escuto o nascimento do mel
no abdome da abelha: aí, a flor; e aí os
aí os onagros sujeitos à sua insaciável condição.

Escuto (eu mesmo flor semovente) fúria do lodo (debaixo) Buda (ou eu) ao seu destino
(flora, semovente) do lodo.


(Poema de José Kozer traduzido por Claudio Daniel. Do livro Íbis amarelo sobre fundo negro. Curitiba: Travessa dos Editores, 2006.)

PALAVRAS CRIAM REALIDADES

Paul Valéry, em conhecido ensaio publicado em 1939, estabelece uma distinção entre a prosa e a poesia, afirmando que a primeira assemelha-se ao andar, e a segunda ao dançar. Estas imagens remetem ao caráter mais utilitário da prosa, onde importam a clareza e o sentido, enquanto na poesia contam mais o andamento rítmico, a construção de paisagens, a estranheza vocabular e sintática, o trabalho com a metáfora e outros recursos lingüísticos, que atribuem ao texto seu valor artístico. Na prosa, está em primeiro plano a função comunicativa, conforme o conceito de Roman Jakobson: o que vale é a informação, e podemos pensar aqui num manual de medicina, num código jurídico, num tratado de filosofia ou em livros de sociologia ou contabilidade. Já na poesia, onde o artesanato semântico é ele mesmo a informação a ser transmitida, temos a função poética, o sentido construído pela forma. Sem dúvida, essa distinção entre prosa e poesia admite exceções: obras como o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, as Galáxias, de Haroldo de Campos e o Catatau, de Paulo Leminski, são textos em prosa permeados de poeticidade, numa voluntária superação de dicotomias, sinalizando também a dissolução das fronteiras entre os gêneros (tendência cujos precursores foram o Fausto de Goethe e os Pequenos poemas em prosa de Baudelaire). Por sua capacidade de fluidez, simbiose e mutação, a poesia relaciona-se com outras formas de escrita perturbando-as, criando uma instabilidade textual, distante de qualquer idéia de imobilidade ou permanência.

Sendo um pouco mais audaciosos, podemos pensar na poesia além da própria literatura, manifestada na canção, no balé, na pintura, no drama cênico, enfim, em todas as criações onde a linguagem está enamorada pela linguagem. Tudo é a arte da poética, de certa forma, quando o dançarino, a dança e o dançar são um único e inquietante movimento. Como afirma Antonio Risério, em seu Oriki Orixá, a poesia não se restringe ao código escrito, inclusive por ser anterior a ele: os primeiros poemas de que temos notícia pertenciam à tradição oral (como os mitos fundadores indígenas, africanos ou escandinavos) e eram transmitidos na forma de canto, com a colaboração da música, coreografia, vestuário, mito e símbolo: arte mágica, onde cada palavra não era apenas a representação de uma coisa, e sim a própria coisa, na forma de som. Não se tratava de imitar, mas de criar realidades, numa síntese entre estética e teurgia. Disso resulta o caráter sagrado, de invocação, dos mantras indianos e dos orikis nagô-iorubás: ao pronunciarem o nome de seu deus, este era corporificado como vibração sonora (o que hoje chamaríamos de isomorfismo, o conteúdo igual à forma). O caráter mágico ou encantatório da poesia, sem dúvida, estava relacionado a formas de pensamento analógico e ritualístico, mas podemos ver suas irradiações em toda a evolução da escritura poética, que nunca renunciou à vocação taumatúrgica de construir universos “com sua própria fauna e flora”, no dizer do poeta chileno Vicente Huidobro, protagonista do criacionismo.

Coube às vanguardas históricas, aliás, a recuperação da visualidade, do gesto e do movimento na poesia, aliando a pesquisa fônica a toda sorte de recursos expressivos. Podemos recordar as experiências dadaístas de Kurt Schwitters, dissolvendo as fronteiras entre poesia e pintura em sua arte MERZ; os textos mais radicais de Antonin Artaud, onde todo o sentido está na sonoridade abstrata (“Katanam anankreta karaban kreta”); as performances de Raul Zurita, que faz da mutilação pública do próprio corpo um recurso poético; e a recente incorporação da tecnologia digital nas criações de Augusto de Campos e Arnaldo Antunes, que criam poemas visuais com efeitos de sonoridade e movimento, ampliando a capacidade de geração e multiplicação de mensagens e rotas de leitura. De certo modo, a vanguarda retoma e atualiza a vitalidade (e a virtualidade) das poéticas ancestrais, emancipando-se do espaço bidimensional da página impressa para projetar-se em outras dimensões, inclusive holográficas, exigindo do leitor ou espectador uma sensibilidade e compreensão diferentes daquelas requeridas para a leitura de textos usuais. Essa ampliação das formas de representação estética tem como corolário uma outra visão da realidade: mutável, não estática; descontínua, não linear; espiralada, não retilínea.

Toda mudança de paradigma provoca, em medidas diversas, o entusiasmo e o desconforto, a apologia e a negação furiosa, nem sempre por motivos estritamente literários, mas também ideológicos (no sentido original dado por Marx aos pressupostos de Feuerbach). Quando se censura a vanguarda por seu suposto hermetismo ou obscuridade, os anátemas são aplicados à sua “extravagância” formal, mas também a sua “ausência de conteúdo” ou “alienação” (para recuperarmos uma acusação de heresia habitual nos anos 60 e 70). Os poetas experimentais estariam distantes da “realidade” e do “mundo”, isolados em modernas torres de marfim. Caberia perguntar, aqui, quais são os conceitos de “realidade” e de “mundo” defendidos por esses críticos, e que estão na essência de textos literários de imediata compreensão, mas escasso valor artístico. Para os acadêmicos de formação sociológica, discípulos do modelo desenvolvido por Luckács, a realidade é um fato imediato e objetivo sujeito a investigação científica, enfatizando aspectos econômicos ou sociais, dentro de uma linha histórica evolutiva. Essa concepção, que dominou o cenário europeu nas primeiras décadas do século passado, está eivada de certo determinismo (diríamos até fatalismo) que considera todas as criações intelectuais ou estéticas como subprodutos da cadeia produtiva. A partir dessa visão, de indiscutível miopia, surgiram propostas como a do realismo socialista, que intentou ser o “espelho do real”, refletindo as injustiças do capitalismo e projetando, ao mesmo tempo, o futuro socialista (considerado inevitável, dentro de uma perspectiva retilínea e darwiniana da história). Política e estética estavam ligadas, de modo umbilical, a essa hipótese de “realidade”, hoje insustentável, em seu viés stalinista, não apenas pelas mudanças no campo internacional, mas também pelas atualizações conceituais e de paradigma no campo da ciência (em especial com o advento da física quântica).

O pensamento científico é hoje menos dogmático e mais propenso a aceitar a realidade como uma caixa de Pandora, que possui em seu interior uma imensa variedade de eventos e transformações possíveis. Em sintonia com esse espírito teórico renovado, podemos afirmar que a poesia experimental não está distante da “realidade” e do “mundo”, mas sim de concepções lineares e limitadas de realidade e mundo, que o tempo se encarregou de enterrar. Ao afirmar a impermanência, o paradoxo, a ambigüidade e a mutação no campo semântico, o poeta não está apenas recusando certa previsível normalidade da escrita e visões estáticas e anacrônicas de mundo, mas também indicando, em sua materialidade significante, uma compreensão do real como um ciclo incessante de deslocamentos, aproximações e metamorfoses. Temos aqui outro tipo de mímese: não a imitação ingênua de objetos e situações, com seus significados e desdobramentos definidos a priori, mas um ícone do real como ser em travessia. Na literatura brasileira contemporânea, essa expansão do sentido pela construção inusitada ou excêntrica é visível em autores como Horácio Costa, Wilson Bueno e Josely Vianna Baptista, precedidos pelo Haroldo de Campos de Galáxias e dos estudos sobre o barroco. Em seu livro A Arte no Horizonte do Provável, o poeta paulista fez uma interessante distinção entre a abordagem diacrônica da literatura, baseada num fio evolutivo histórico, e a sincrônica, que busca relações de proximidade entre autores de diferentes períodos epocais. Esse é o método que utilizou em seu estudo Uma arquitextura do barroco (em A Operação do Texto), que aponta afinidades entre autores tão diversos como o cubano Lezama Lima, o grego Lícofron, o brasileiro Sousândrade e o chinês Li Shang Yin, distanciados na geografia e no tempo regular, mas muito próximos em seu ostinato rigore e capacidade imaginativa. Essa aproximação, que a princípio pode parecer arbitrária e impulsiva, é fundadora de uma concepção literária e filosófica que animou os autores mais inventivos da América Latina, a partir dos anos 70, dentro dessa vertente que se convencionou chamar de Neobarroco.

Num poema como O Napoleão de Ingres, de Roberto Echavarren, por exemplo, temos uma collage de signos de diversos territórios e culturas, apontando a mestiçagem, a impureza, o paradoxal e o ambíguo como elementos constituintes de nossa realidade: “A cor da seda, sua textura / são quase metálicos: um zepelim no céu / azul-da-prússia, um dragão chinês / voando em seu troar de metais”. Essa mescla de elementos díspares remete à própria formação social e cultural latino-americana, que cozinhou no mesmo caldeirão signos e referenciais europeus, asiáticos, indígenas e africanos, numa antropofagia que perdura até os dias de hoje. Além da diversidade, a desigualdade da convivência entre tecnologia e subnutrição, crescimento industrial e miserabilidade, erotismo e religião, entre outras manifestações contraditórias do nosso continente, colaboram com o conceito do Neobarroco e sua visão de um mundo plural, irregular, multifacetado, sublime e trágico.

domingo, 9 de agosto de 2009

A VOZ DO ENCANTATÓRIO


Uma noite sensível cor de martelos
— Herberto Helder

Reynaldo Jiménez (Lima, 1959) é o poeta do sensorial, cultor de estranhas partituras que evocam a pele do musgo, a sombra do marsupial ou a noturna irrupção de amarelos. Ninguém se iluda com esses poemas escavados na rocha (ou ainda, no espaço movediço do barro): existe a alucinação, o espraiar-se de simulada demência, mas também o daimon da composição, que ordena as figuras com rigorosos compassos e esquadros. Ele é o herdeiro hispânico das cabalas de Rimbaud e Mallarmé (lembremos o adágio sobre "o poder encantatório das palavras"), das bizarrias plásticas de Lautréamont; porém, essa excêntrica imagética é articulada numa sintaxe voluntariamente artificial ou hermética, construída segundo uma lógica musical que converte as palavras em células melódicas e rítmicas (de uma aspereza lírica que se choca com o próprio conceito de lirismo). As referências imediatas dessa sintaxe analógica são, é claro, Góngora, Quevedo e el brujo Lezama; é habitual inserirmos o autor na seara barroquista, e com certa razão.

O que diferencia Jiménez de seus confrades, talvez, seja a maneira como ele recria o espanhol, como se intentasse a criação de outra língua, mestiça e porosa. Em versos arquitetados no espaço entre som e sentido, o poeta alinhava arcaísmos, encontrados em obras clássicas da literatura espanhola; termos estrangeiros - do árabe e do sânscrito, por exemplo; neologismos criados pelo autor; e termos de um deliberado feísmo, em dissonância com a possível "aura" do sublime (o que nos remete à poesia crítica de Laforgue e Corbière, este último o autor de Le Crapaud). Como ilustração ao que foi dito, podemos citar um fragmento do poema Shakti, que narra uma epopéia íntima, alegórica, cujo personagem central é a divindade feminina indiana, consorte de Shiva, representada na iconografia tântrica com um colar de crânios e cinturão de mãos decepadas: "porque adorna uma deusa, o peregrino da espécie deserta. / soletra, como a lepra do pária, uma espera intraluzente, muda / a marca de ofícios e penares em ondas aturdindo, turba ao acudir / interior de um mercado zahorí. palustre o espírito sob os tules, / morada iguana; confim do contemplar, a / ponto de arrostar seu néctar, os devas a corrente afinam / com o limo. com estoque de antiga penetração, o estro / enquanto taumaturgo sacode o sistro da mente, címbalo."

Temos aqui uma narrativa sinuosa, labiríntica, onde episódios e personagens movimentam-se fora de qualquer previsível linearidade; o mito é recriado (celebrado) na fusão de planos históricos e geográficos, tendo como fio condutor o desdobramento de imagens e sentenças. Esta é uma poética que mescla referências culturais díspares, formando o desenho de uma particular mandala, onde encontramos desde o mercado zahorí (oculto, em árabe) até o sistro (instrumento musical egípcio), passando pelo relato de antigas histórias védicas, contadas nos Puranas. O espaço do poema é todos os espaços, seu tempo é todos os tempos; como se o drama ocorresse em todos os lugares e em lugar nenhum. Nessa dimensão epifânica a que pertencem os mitos, ruge a fera cantada por Blake, que salta a nossos olhos como metáfora viva, poema movente com seu alfabeto de ocelos. Em Como chamar um tigre? o poeta reúne imagens e símbolos tradicionais da literatura, da mitologia, do psiquismo, sem pretender definir uma figura nítida, identificável; trata-se, antes, de grafar o enigma, o indeterminado, o cambiante, num canto paralelo, talvez, a nossa própria perplexidade. Inútil decifrar, nesse monólogo, a fera e seus caninos, que pertencem ao incessante "rumor da metamorfose".

Jiménez investe na alquimia verbal, na mutação das palavras e no arranjo inusitado entre elas, formando hipnóticas estatuarias; a esse respeito, podemos recordar o trouver une langue de Rimbaud, gênio tutelar que rege essa escritura simbiótica. Em Exiliares, por exemplo, o autor diz: "A pirâmide solar está grávida / pelo espelhismo roto da pupila, que sabe / às vezes o reflexo que olvidou a fonte. / Queimam-se perguntas por fragmentos / de cada menino antigo que não voltou. / Porém volta, em outra forma, outra vez, / areiazinha que se dá por um punhado. / Recupero na fragância / de algum modo o outro harmônico / que a sua espessura cinge e ao ossário / traga pela borboleta, / sempre irrepetível pois retorna. / Não é alarde senão pluma na corrente / que desterra, errar até a polpa ou medula. / Recontos rotos concordam, / anéis grises somam o salto de um só / grilo nesta ausência". Este poema faz parte de um ciclo de seis composições, chamado A Indefensabilidade. É um verdadeiro museu da estranheza; nada parece conhecido aqui, como se fosse o atlas de uma estrela distante, ou o registro de uma civilização desaparecida. Verbos não descrevem ações claramente reconhecíveis ("errar até a polpa ou medula"), substantivos se associam de maneira analógica ("Dia virgem lagarto. / Rodopiante água / do peregrinar"), termos botânicos ou geológicos são invocados em definições de objetos ou cenas impossíveis, de maneira taumatúrgica.

Seria necessário escrever uma análise de amplo escopo para avaliar, de maneira satisfatória, a riqueza de léxico e as construções inusitadas dessa escrita visceral, situada no meio fio entre o exercício da alucinação e a matemática; infelizmente, tal abordagem iria além dos limites de uma breve apresentação. Não podemos encerrar este prólogo, porém, sem traçar um mínimo paralelo entre a hibrys barroca de Jiménez e a nova poesia brasileira, onde autores como Horácio Costa, Wilson Bueno e Josely Vianna Baptista navegam em direção similar, instigados pela geometria dos cristais e pela arte da falcoaria. O poeta que mais se aproxima desse "artesanato furioso", no entanto, é o português Herberto Helder, autor de versos insólitos, como estes: "A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua / alumia-se. O mel escurece dentro da veia / jugular talhando / a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se / a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas / obscuras, a lua / tece as ramas de um sangue mais salgado / e profundo. E o marfim amadurece na terra / como uma constelação". O barroco, essa grafia do excessivo, desconcertante ou visionário, avança pelas margens de nossa tradição lírica, apontando-nos, como um grifo no espelho, sendas de negrume que iluminam outras possibilidades para a palavra poética.

(Ensaio publicado na antologia Shakti, com poemas de Reynaldo Jiménez que traduzi para o português. O livro foi publicado pela Lumme Editor em 2007.)

APONTAMENTOS DE LEITURA: HELDER E CELAN

A composição poética do português Herberto Helder baseia-se numa lógica da metamorfose 1: as imagens poéticas são alinhadas não como simples metáforas ou como descrições objetivas das coisas, mas como sucessão instável de figuras, que perturbam a normalidade da representação e da leitura. A realidade aparece aqui não como um fato a ser descrito ou narrado, mas como matéria plástica, construída por analogias, signos que se movimentam em constante mutação.

Essa filosofia compositiva utiliza o discurso para perturbar o discurso, valendo-se inclusive de recursos como a elipse e o fragmento, seguindo a estratégia de criar uma realidade própria na escritura: o poema não representa uma coisa, ele é esta coisa. As linhas funcionam como notações musicais, definidas pela intenção melódica e rítmica que organiza as palavras na página-partitura. Assim, por exemplo, no poema Joelhos, salsa, lábios, mapa (que evidencia, já no título, o recurso de aproximação das palavras sem um nexo lógico ou sintático aparente): “Abrindo no escuro, durante toda a neve, / os copos, os vestidos, os mapas. / E dentro de mim, rompendo peixes, / uma noite sensível cor de martelos. / Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse / martelo louco / nas borboletas. Então o meu cabelo / respirava — cabelo quente, telha / molhada. / Neve, borboleta, vírgula, estátua”. Esta organização semântica, em aparente desordem, sem dúvida nos faz lembrar a escrita automática dos surrealistas, em seu fascínio pelo imprevisto e pelo inverossímil; remete também a Dadá, a Lautréamont e aos simbolistas franceses, inclusive o último Mallarmé, que no prefácio do Lance de Dados reivindica uma estrutura poética similar à da música ouvida em concerto. Helder pertence à confraria dos autores excêntricos; assim como seus irmãos espirituais, ele se insurgiu contra o verso clássico, a retórica, a hegemonia da clareza e da objetividade, optando por uma imprecisão (ou abstração) voluntária.

A preferência pelo obscuro, hermético ou paradoxal aproxima o poeta português do romeno de língua alemã Paul Celan, autor de versos como estes: “Verde-bolor é a casa do esquecimento. / Diante de cada portão flutuante azuleia o teu músico decapitado. / Bate o tambor feito de musgo e amargo pêlo púbico; / Com o dedo do pé ulcerado desenha a tua sobrancelha na areia. / Desenha-a, maior do que era, e o vermelho dos teus lábios. / Tu enches aqui as urnas e alimentas o teu coração.” (Tradução: João Barrento.)

A princípio, uma leitura comparada dos dois poetas pode causar espécie: enquanto o romeno é dramático, por vezes trágico, orientado por um demiurgo tanático, o português é epifânico, celebratório, animado pelo princípio de Eros (embora um Eros travesso, que não exclui a deformação e a crueldade). Celan está embebido de história, geografia e da saga do povo judeu; Helder movimenta-se fora de planos reconhecíveis de espaço e tempo, erguendo fronteiras imaginárias (fazendo lembrar o Rimbaud de Uma Estação no Inferno: “Jamais pertenci a este povo; jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício”, na tradução de Ledo Ivo). Se há uma religiosidade ou mitologia em Helder, ela está mais próxima do orfismo, da jornada simbólica ao Hades em busca de Eurídice (“Beberei sua boca, para depois cantar a morte / e a alegria da morte”).

No campo semântico, porém, é possível traçarmos um paralelo entre os dois poetas, começando pela similaridade de temas ou palavras-chave, extraídas da tradição romântica: noite, cegueira, loucura, sangue, morte 2. O uso da analogia e das imagens poéticas (compreendidas aqui conforme o conceito de Réverdy 3) também é nítido, especialmente, na primeira fase de ambos (Papoula e Memória, de Celan, e O Amor em Visita, de Helder). Objetos retirados do cotidiano, elementos da natureza, instrumentos musicais, estados de espírito, partes do corpo humano ou substâncias orgânicas são combinados de maneira inusitada com outros materiais, concretos ou abstratos, em versos de deliberada alquimia: “crê no escaravelho dentro do feto”; “amamo-nos como papoila e memória” (Celan, em tradução de João Barrento); “a morte sobe pelos dedos, navega o sangue”; “a paisagem regressa ao ventre, o tempo / se desfibra” (Helder).

Apesar dessa convergência, é preciso traçar uma distinção fundamental entre as duas poéticas: em Celan, a imagem é um dos elementos constitutivos do discurso, que tem uma respiração meditativa, um andamento quase litúrgico (ecoando, não raro, o hino bíblico); em Helder, ela é a base estrutural; todo o poema se desencasula a partir de entrecruzamentos de símbolos. A evolução posterior de ambos irá evidenciar outras diferenças essenciais: enquanto no português há um crescente desregramento, um fluxo incessante de figuras e percepções, no romeno revela-se maior equilíbrio, síntese e concentração; essa disciplina severa é responsável por linhas lacunares, de teor quase oracular, pela concisão e obscuridade 4.

A experiência imagética 5 é mais evidente na lírica erótico-amorosa destes poetas, onde a mulher assume dimensão sobrenatural, ela é a origem da Criação, o Universo e cada uma de suas manifestações: “As coisas nascem de ti / como as luas nascem dos campos fecundos, / os instantes começam da tua oferenda / como as guitarras tiram seu início da música nocturna” (Helder); “Projecta a sua luz ao longe sobre o mar, / desperta as luas no estreito e ergue-as sobre mesas de espuma” (Celan, traduzido por João Barrento). Sem dúvida, essa hipérbole permite diferentes interpretações, de cunho teológico, metafísico ou psicanalítico; ficando apenas no campo poético, podemos dizer que essa idealização do feminino motiva o romeno e o português a uma visualidade radical, a uma estética do excessivo, da saturação simbólica, de um Eros que fecunda e multiplica os vocábulos, até a abstração (assim como ocorre nas passagens mais densas do Paraíso de Dante).

Na seara tanática, outra obsessão de ambos, há um corte radical: em Helder, a morte é um acontecimento simbólico; em Celan, um espectro que ronda sua carne, que ameaça seu povo de extinção (um registro exemplar é o conhecido poema Fuga da Morte: “... a morte é um mestre que veio da Alemanha / arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus”, na versão de Barrento). Para evocar o genocídio, promovido pela mãe de seu idioma, Celan assume um tom mais sombrio, incorporando à sua voz outras vozes, de poetas que também passaram pelo flagelo da guerra, como Georg Trakl. Não por acaso, há nesse poema um diálogo intertextual com o poeta austríaco, vítima de consumo excessivo de entorpecentes, após presenciar os horrores de Grodek: “Na casa vive um homem que brinca com serpentes” (Celan); “Na sua cova o mago branco brinca com suas cobras” (Trakl, no poema Salmo, aqui traduzido por Paulo Quintela). Nesta peça, Madame La Mort é uma visitante da história, que traz consigo a cultura que produziu Goethe e Auschwitz.

Celan, embora estrangeiro (sendo romeno, judeu e exilado em Paris), é um herdeiro desse território simbólico e cultural, não apenas pelo idioma como pelo diálogo com a tradição da literatura alemã. Helder, que também é um estrangeiro em seu isolamento voluntário, cria para si uma tradição, escolhe a sua origem, incorporando à língua materna referências de outros âmbitos culturais. Sob essa mirada, Helder encontra-se mais próximo de Sá-Carneiro (outro étranger espiritual) do que de Fernando Pessoa, que em Mensagem intentou uma fabulação mítico-poética de Portugal, com a utopia visionária de um Quinto Império, que sucederia os anteriores (“Grécia, Roma, Europa, Cristandade...”). Em Celan, há o desespero da história; em Helder, a refundação da história, por meio da escritura 6.

NOTAS
1. O conceito de lógica da metamorfose foi aplicado por Claudio Willer em seu estudo introdutório às Obras Completas de Lautréamont (ed. Iluminuras, 2a. edição, 2005).

2. É possível rastrear um repertório comum que nutriu os dois poetas, que incluiria Baudeleire, Rimbaud e Michaux, por exemplo (e convém recordar o fato de Celan ter traduzido os dois últimos, além de dedicar um poema a Éluard).

3. Reverdy entendia a imagem poética como a aproximação de realidades diferentes, ecoando o conhecido adágio de Lautréamont sobre o “encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”.

4. Assim, por exemplo, no poema Flor (do volume Grelha de Linguagem): “Flor — uma palavra de cegos. / Os teus olhos e os meus olhos: / vão em busca / de água. / (...) Uma palavra ainda, como esta, e os martelos / rodopiam ao ar livre” (tradução: João Barrento). Esse nível de concentração é menos usual no autor português, embora haja paralelos possíveis, por exemplo, neste fragmento de Poemacto: “Um movimento. / Cadeira congeminando-se na bacia, / feita o sentar-se. / Ou flores bebendo a jarra. / O silêncio estrutural das flores. / E a mesa por baixo. / A sonhar.”

5. É interessante observar o progressivo abandono da figuração nos poemas finais de Celan, onde a imagem poética, antes sua pedra-de-toque, é colocada em segundo plano, enquanto a síntese verbal e a estética do fragmento avultam como elementos básicos do fazer poético (enquanto Helder, ao contrário, avança em poemas de amplo fôlego, beirando a prosa e certo barroquismo).

6. Esse tema foi abordado no ensaio Herberto Helder, a razão da loucura, de Contador Borges, publicado na revista eletrônica Zunái. // -->

BIBLIOGRAFIA :
CELAN, Paul. Sete Rosas Mais Tarde (trad. João Barrento). Lisboa: Ed. Cotovia, 1993.
CELAN, Paul. A Morte é uma Flor (trad. João Barrento). Lisboa: Ed. Cotovia, 1997.
HELDER, Herberto. O Corpo O Luxo A Obra. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000.
LAUTRÉAMONT. Obras Completas (trad. Claudio Willer). São Paulo: Ed. Iluminuras, 2ª. ed., 2005.
RIMBAUD, Arthur. Uma Temporada no Inferno e Iluminações (trad. Ledo Ivo). Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1982.
TRAKL, Georg. Poemas (trad. Paulo Quintela). Porto: Ed. O Oiro do Dia, 1981.

O VENTO FEDE DE LUZ

O poeta angolano Abreu Paxe é um dos autores contemporâneos que leio com mais interesse, ao lado do argentino Reynaldo Jiménez, do uruguaio Victor Sosa, do cubano José Kozer, do português Herberto Helder e do francês Jean-Paul Michel, para citar poucos nomes. São poetas que me surpreendem pela estranheza, pela capacidade de transformar as palavras em partituras, em pinturas vivas, que não reproduzem o mundo (ou um determinado conceito do que é o mundo), mas que criam novas realidades pelo fato estético. Paxe, que esteve duas vezes no Brasil e participou de um evento organizado por mim, chamado Kantoluanda, publicou dois livros de poesia: A chave no repouso da porta e O vento fede de luz. São livros diferentes de qualquer outro que já li. Ele parece criar outro idioma, que é semelhante ao português, mas que tem outra lógica de organização e de criação de significados. Sobre a poesia de Paxe, há um ensaio bem interessante de Francisco Soares, intitulado Abreu Paxe: calígrafo, que pode ser lido no link de Ensaios da Zunái. Em certo ponto do texto, Soares escreve:

“Este segundo livro, segundo a nota do autor no final, reúne muitos poemas anteriores ao primeiro. Há de facto uma diferença entre eles: é a de que os processos e as estruturas referidos estão mais acentuados em A chave no repouso da porta do que em O vento fede de luz. Mas em ambos persistem metáforas de longa distância, de recuperação tensa e difícil, de sabor denso e demorado. Sintaxes surpreendentes, que se destinam a desconcertar o leitor para o levar a novas percepções da própria língua e da própria linguagem. Imagens poderosas que nos religam à nossa mais funda consciência, fragmentariamente como em todos os poemas líricos. Há esse desafio constante ao leitor sustentando a beleza acima das cegueiras, das velhas sombras de espasmos. Vindo assim de uma linhagem de vanguarda e experimental, no entanto estas práticas aglutinaram-se com as tradicionais, reavivaram a virtualidade de jogos e estruturas tradicionais ou da oralidade angolana. Como também não deixam de respirar um ambiente em vários aspectos irrespirável que traz ao poema tantas vezes a sugestão de sufoco e vazio que denuncia activamente o pior dos nossos dias”. Leiam agora alguns poemas de Paxe:

asuen aryan, a valsa

tatuada: esferas semânticas apenas
lentos idiomas,
trocados espaços o tempo das coisas
o mundo todo nesta cidade
assim na poltrona a sentinela outro texto
impaciente molda a função
vertical o espelho, colchões na estrutura
pétalas, gaivotas, mútua tipóia
ninho molhada alvorada

neste deserto

fúnebres sóis animados esteios o canto
numa pátria meu corpo
imortal zona a penugem negra
maravilha-se madura neste deserto de travessia antiga

concreta cegueira
escorrem os túneis e fica sob sua sombra e em seda
o oeste dos ventos nestes três dias
os frutos já magoavam a porta amadurecida no fundo
de nós concretiza-se enfim esta cegueira velha sombra de espasmos

qual seria canção

nas tardes da alma
vão caindo equinócios
talvez fria sinfonia penetre na brasa
descalçando metáforas na foz
inclinadas à noite
qual seria canção

(Do livro O vento fede de luz. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007)

A ARTE NÃO É UM ESPELHO QUE REFLETE A REALIDADE

Wilmar Silva publicou uma reunião de seus livros de poesia pela editora portuguesa Cosmorama. O volume, intitulado Yguarani, é um dos mais originais que li nos últimos tempos, de autores novos. Jorge Melícias escreveu a respeito um interessante ensaio, onde afirma: “toda a poética de Wilmar Silva é, na verdadeira acepção da palavra, uma experiência de limite. O carácter extremamente inovador desta proposta (e aqui convocamos todos os movimentos desconstrutivistas de vanguarda que preencheram a história da literatura do último século e, em particular, essa aventura que foi a estética zaúm, avançada por Alexéi Jruchenvj) pode, em última instância, conduzir à incompreensão e ao solipsismo. Mas esse é o derradeiro risco que todo o poeta corre. Um risco assente numa verdadeira e feroz dialéctica, onde a ideia wittgensteiniana de a língua e a realidade serem como dois espelhos pendurados em paredes opostas num quarto vazio foi, sabiamente, treslida. (...) Em última analise voltamos sempre ao inicio: se a língua cria a realidade e a poesia cria a língua, quem cria a poesia? Como Charles Bernstein defende: ‘À igualdade quando a diferença nos descrimina prefiro sempre a diferença quando a igualdade nos anula’. A poesia de Wilmar Silva leva essa utopia às últimas consequências. Soube ler, talvez com a coragem de poucos, essa máxima de Maiakovski, ‘a arte não é um espelho que reflecte a realidade, mas um martelo que a forja’, lutando, na feliz expressão de Graça Capinha, ‘contra o corpo da linguagem por uma linguagem que há-de, por força, ser outro corpo’”.


Leiam abaixo alguns poemas de Yguarani:


letra n

ninfas excapão da luanuvi
duendis orfeu, o tocador-
canta e rebati longinquo
arabescos q mi bordália
nasc dríade, av magma:

letra o

em pêlunu bosq dansol
ao redor dos carvalios
cabeleras q rubru ao ar-
ispaduas achas i coros d
folias, madona q corôo

letra q

luzmio brenha i perfaru
tua receia vinhu eclipsi
chov mardrugado a-fora
dócio re-sona luminarpéia
v a lua i colorew auroras

(Poemas do livro Yguarani. Maia: Cosmorama Edições, 2009)


DIABOLUS IN POESIA

Augusto de Campos, no livro À margem da margem (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), publicou um interessante ensaio sobre o poeta italiano Giuseppe Gioachino Belli (1791-1863), com o título de Belli, diabolus in poesia. Esse poeta incomum, escreve Augusto, deixou “2279 sonetos que afrontavam todas as convenções do seu tempo. Escritas entre 1828 e 1849, em linguagem dialetal – o romanesco – essas composições haviam sido repudiadas pelo autor, ao estipular em cláusula testamentária que fossem queimadas. Felizmente, tal determinação não foi cumprida pelo único descendente do poeta. (...) Utilizando as corruptelas, os ‘lapsus linguae’ e a gíria viva do populacho do Trastevere, o poeta delineia um grande painel, uma ‘commedia’ escatológica de Roma, que vai da ironia à sátira, da crítica de costumes à mais cruel vivissecção do ser humano”. O ensaio todo, acompanhado de duas traduções, é bem interessante e vale a pena ler. Em seu livro mais recente, Malcriados recriados — Sonetário sanitário (São Paulo: Demônio Negro, 2009), Glauco Mattoso reúne, ao lado de suas composições mais recentes, nada menos que 42 traduções de sonetos de Belli, acompanhadas pelos textos originais. Como não podia deixar de ser, Glauco escolheu as peças mais picantes do autor italiano, como esta, abaixo:

SONETO PARA O TRATO DUM TRATANTE

A filha do alfaiate faz favor
ao padre: ir passar roupa lhe promete.
Cumprido o trato, ao menos um boquete
o padre pede à moça, sem pudor.

Moedas lhe oferece se ela for
gentil: um monte delas! E repete:
“São suas, todas!” Ela aceita: mete
na boca a pica e prova-lhe o sabor.

Após gozar, e tendo a jovem puta
cuspido a porra, o padre um níquel só
não mão lhe deposita. Ela reluta:

“Não eram todas minhas? Tenha dó!”
Responde ele: “Serão, sim! Não discuta!
Serão, uma por vez, é claro! Tó!”

Tradução: Glauco Mattoso

EM BUSCA DOS SERES IMAGINÁRIOS & OUTROS LANCES

O poeta Eduardo Jorge cursa o mestrado em Teoria Literária na Universidade Federal de Minas Gerais. Sua dissertação será sobre bestiários (um tema que me fascina desde que li o Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges). Em artigo escrito a quatro mãos com Maria Elisa Rodrigues Moreira, ele fala sobre a presença do bestiário na obra de poetas brasileiros contemporâneos, entre eles Wilson Bueno, Ronald Polito, Nuno Ramos e eu próprio. Em um trecho do ensaio, ele escreve o seguinte a respeito de meus pequenos animais de estimação poéticos:

"No caso do poeta paulistano Claudio Daniel, partimos de um zoológico em miniatura intitulado Figuras metálicas em expansão, contido no livro Figuras metálicas, de 2005, antologia que reuniu a obra do autor até a data da publicação. Dentre essas figuras que se expandem está aquele mundo animal que normalmente incomoda, que se destina ao extermínio, que o homem costuma desejar invisível: formigas, traças, pulgas, baratas, piolhos. Um bestiário do mínimo, do que há de menos fantástico e mais indesejável no mundo animal.

Esse mínimo bestiário de parasitas que sobrevivem ao homem vive às suas custas: bebe de seu sangue, constitui-se de sua poética. Não é possível ler a expansão dessas figuras metálicas e dessa miuçalha em verbetes sem articulá-las aos verbetes imaginários de Borges e aos vertiginosos fragmentos animais que se infiltram no bestiário do cotidiano de Cortázar, que por sua vez remetem ao simbolismo animal dos bestiários medievais e ao rigor taxonômico da ciência. Essa articulação, entretanto, faz-se pela via da invenção, da subversão e da inversão de valores, de caminhos, de propostas de leitura... Em lugar de finalidades moralizantes e educativas, a pura descrição insólita, a criação de imagens fantásticas, a ironia de uma Formiga ou de uma Traça:
Pequeno dragão/doméstico.//Cabeça grávida/de hibisco.//Rústico abdome-/cogumelo.//Escava o incerto/dos dias,//para a trilha/vertical//de farelo, fúria/e folhas.//Carrega seus mortos/nas costas,//com precisa/ geometria// de fábrica/fúnebre. (DANIEL, 2005, p. 47)

(Entre fólios de ciência antiga e espectros de monjas nuas desencarnadas.)// (Olhos opiados afundam em partituras da Outra Margem.)//(Ruge um leão hipnótico.)//(Letras sangradas na pele de carneiro. Figuras metálicas em expansão.)//(Palavras criam realidades.)//(Traças cavam sendas no papel.)//(Toda leitura é uma cicatriz.). (DANIEL, 2005, p. 49)

(Do ensaio Alguns bestiários na literatura brasileira contemporânea, de Eduardo Jorge de Oliveira e Maria Elisa Rodrigues Moreira.)

Outros lances:

Confiram o ensaio A palavra em espiral de Virna Teixeira, que publiquei no site Cronópios. O texto é uma pequena análise do livro Trânsitos, publicado neste ano pela Lumme Editor, na coleção Caixa Preta (juntamente com Fronteiras da pele, de Ana Maria Ramiro, e Práticas do azul, de Jorge Lúcio de Campos).

E para quem se interessa por poesia brasileira contemporânea, saiu uma pequena mostra organizada por mim e traduzida ao espanhol por Leo Lobos na revista eletrônica mexicana Círculo de Poesia, que pode ser acessada na página http://circulodepoesia.com/nueva/2009/08/todo-comienzo-es-involuntarioocho-poetas-jovenes-brasilenos/

Besos,

CD

UM POEMA DE IZABELA LEAL

ESPETÁCULO

de cima a baixo um bisturi de aço uma perna um braço e o vestígio de um traço incisão alcalina na corrente sanguínea e a escansão de uma rima na pele da cobra um olho de vidro bicos e garras o verso sem dobra reverso da obra que recusa a cesura e a abertura de palha como um talho ao sol escultura da morte no corpo sem corte troféu espúrio que o artista conserva em mercúrio ou formol por trás da vitrine ornada em nanquim uma parte obscena sem arte ou poema porém manequim lá dentro a vida espessa e exposta tão longe da vista no gabinete do taxidermista.
(Poema extraído da antologia Poetas de Hoje em dia(nte). Florianópolis: Letras contemporâneas – Oficina Editorial Ltda., 2009).

DOIS POEMAS DE VICTOR DA ROSA

3, ESCRITURAS

I —

linhas de luz
escritos no ar.

II —

palavras de arame
o peso de um poema
pendurado
no papel.


III —

a última carta
esta página úmida
seu nome
em branco.


12,

máscara líquida,
o mar é máquina
de retratos

(Poemas extraídos da antologia Poetas de Hoje em dia(nte). Florianópolis: Letras contemporâneas – Oficina Editorial Ltda., 2009.)

DOIS POEMAS DE NICOLE CRISTÓFALO

E aquece quando escorre
pelo lado
verde esquerdo
o pequeno aborto do tronco
que alguns pais cultivaram
visto secar a mancha-
da seiva
de vermelho
como uma placenta
ri e espelha pelo sol

* * *

logo, suspenso.
três
e
quatro
linhas
oscilam contidas
na pele,
tocadas pelo papel.
nuas, descobertas
no folheito acidificado
na sobra de tempo,
deslizam à visão
apreensiva.

página, vacila,
vulto de traços avessos
à face que sustenta,
dedilhar a frase,
linhas de tensões.

últimos traços semibreves.
ou envolto não-virar
de página.

rasgando pálpebra,
cílios, no esforço à cercar
do curto corpo branco,
colhendo posse da

última folha.

suspensa.

da capo.

(Leiam mais poemas da Nicole da Zunái de agosto, que estará on line dentro de alguns dias.)