sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

RETRATO DO ARTISTA DE JANEIRO NA MUSA RARA



 





Estimad@s amig@s, a coluna RETRATO DO ARTISTA, dedicada à poesia brasileira contemporânea comprometida com a qualidade e a inovação, a partir de agora não será mais publicada na revista CULT, mas terá continuidade, com a mesma periodicidade mensal, na revista eletrônica MUSA RARA, editada pelo Edson Cruz. Vocês podem acessar a matéria de janeiro, dedicada à poesia de Nelson Ascher, na página http://www.musarara.com.br/o-sonho-do-arquiteto
Há braços,
Claudio Daniel

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

POEMAS DE RUY PROENÇA

 












TERATOLOGIA

um rato
entrou
em mim

por isso
me digo
monstro

como imaginavam
os seiscentistas
(Ambroise Pare
sobretudo)
foi pela porta
de entrada
ou saída
de uma mulher
que me tornei
um

vão

por onde
pudesse
entrar o rato



INCENDIÁRIO I

a inconseqüência
mata
o medo

ateei o fogo
onde ele
não poderia estar

depois
o lancei
por cima do muro
do que sou

lancei o fogo
para além
do meu nome

a vizinhança
o mundo
incendiei

fogos de artifício
bombas
varreram o céu

e eu
de tão tolo
extasisado
esqueci de sair
do meu quintal



HOSPITAL

deitado na cama
na penumbra
de um quarto tranqüilo

ao pé da janela
persianas fechadas
faço ultrassom

do lado de lá
da parede

quem o coitado
na sala de cirurgia?

um ruído estridente
quase insuportável
de serra elétrica

e o baque seco
repetido
de uma marreta



RISCO

palavras
são lagostas entocadas
perigosas

cortou-me uma
ontem

não rogo praga
não desisto

ao contrário –
insisto

tento agarrá-las
pela parte de trás



PASSAPORTE

amor é menos
ou mais
que esse inesperado
presente passagem
em forma de orquídea
para outro mundo
além da matéria viva
intertravada?


(Poemas do livro Caçambas. São Paulo: ed. 34, 2015)

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS



 
















Quando eu iniciei a carreira literária, no início da década de 1980, costumava visitar alguns poetas, críticos literários, artistas e intelectuais que eu respeitava, para conversar. Queria apresentar o meu trabalho, trocar experiências, saber mais sobre as pesquisas que eles realizavam na poesia e em outras artes e ramos do conhecimento. Eu era jovem e ainda imaturo. Fui bem recebido por Mário Schenberg, José Celso Martinez Corrêa, Jorge Schwartz, para citar poucos nomes, e troquei cartas (na época não havia e-mail) com Augusto de Campos e José Paulo Paes. Com alguma frequência, ouvi a pergunta: "Você é filho de quem?". Confesso que na época fiquei surpreso com a questão, não entendi a sua relevância, mas respondia: "Meu pai se chama Orlando, e minha mãe, Lázara". Eles ouviam a resposta com curiosíssimas expressões faciais. Muitos anos depois, ao folhear uma revista literária -- cujos editores eram, todos eles, filhos de ministros da área econômica e grandes empresários -- entendi, finalmente, a pergunta. Poetas iniciantes "deveriam" ser filhos de importantes artistas plásticos, homens de negócios, atores renomados, professores da USP, críticos importantes, enfim, "gente de bem". Eu era a ovelha negra -- aliás, vermelha -- no rebanho. Hoje, sempre que posso, digo com orgulho: sou filho de Orlando, um técnico eletrônico com segundo grau incompleto, que trabalhou a vida toda em fábricas de caldeiras e de equipamentos eletrônicos, e de Lázara, uma secretária das Indústrias Reunidas F. Matarazzo. Foi com eles que adquiri o gosto pela leitura. Tudo o que consegui na vida literária, em mais de 30 anos de carreira, conquistei por mim mesmo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

MAIS PATRAQUIM




















MATERIAIS

está na oficina e burila o sangue
-- que flores se desenham no ar?
Porém os lógicos dirão o impossível 


A VOZ E O VENTO

com palavras faço a voz
e o vento
de que viajam e são

insistente desejo a lucilar
sobre a pele morna
de girassóis filtrando
teu rosto
seios
paisagem nua de ventre
com palavras a voz do que faço

estes dias infensos
a pendor de gume


* * *

afasto as cortinas da tarde
porque te desejo inteira
no poema

e passas de capulana
teu corpo como as dunas
plantadas de casuarinas
rumorejando perto

a fúria das ondas
caindo brandas
no meu gesto


* * *

ó minha palavra nua
idioma do teu corpo

aqui fundo a raiz
e o espaço
neste ciciado cio
teu monte azeviche
aberto às manhãs
cacimbadas a nervo!


(Do livro Monção, 1980)


ACONTECIMENTO

sobre as espigas trémulas
os pássaros migram
para os meridianos virgens
do teu rosto no vento
a densidade da boca

(Do livro A inadiável viagem, 1985)


* * *

Quero a táctil nervura do teu corpo
e o ritmo das vozes penetrando-se
a galope sobre o verde.

Trago a pacaça nos dentes e soletro
a montanha agachada no asfalto.

As casas verdes são húmidas e verdes.
Verdes os remos com livros no mar.

Verde uivo corre Junho e exaustas
tropeçam as patas do poema
A menina é dos olhos o baço espelho.

Close-up a golfadas de mênstruo
ainda com putas e açaimos,
quero o verde, os cavalos e os sapos,
verdes as vogais salgadas e verdes.

Verde tu, cósmica explosão aberta
no meu peito fulgurando as coisas.
Verdes.


* * *


Sentam-se sob as acácias no asfalto roto
os mutilados com cigarros de embalar.
Nenhum som os recorta
e todos os sentidos foram amputados.
Nem para a tarde crescem frustrados.
Esperam. Que inconclusa forma
os limita em fórmula de serração?
Que ameaça os delira? Nenhuma flor
explode, poeta, no coração?
Os mutilados sonharão? Suas pernas?
O desejo, fruto pobre adubando. Outra mão?
Que triste palavra os baba
no cigarro morto! Vendem.
Nenhum incesto os estanca.
À revelia do sol, os mutilados
montam banca.


MUHÍPITI

É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.


* * *

lha, corpo, mulher. Ilha, encantamento. Primeiro tema para cantar. Primeira aproximação para ver-te, na carne cansada da fortaleza ida, na rugosidade hirta do casario decrépito, a pensar memórias, escravos, coral e açafrão. Minha ilha/vulva de fogo e pedra no Índico esquecida. Circum-navego-te, dos crespos cabelos da rocha ao ventre arfante e esculturo-te de azul e sol. Tu, solto colmo a oriente, para sempre de ti exilada.



Foste uma vez a sumptuosidade mercantil, cortesão impossível roçagando-se nas paredes altas dos palácios. Sobre a flor árabe a excisão esboçada com nomes de longe. São Paulo. Fadário quinhentista de «armas e varões assinalados». São Paulo e o rastilho do envangelho nas bombardas dos galeões. São Paulo rosa, ébano, sangue, tinir de cristais, gibões e espadas, arfar de vozes nas alcovas efémeras. Nas ranhuras deste empedrado com torre a escandir lamentos dormirão os fantasmas?Almas minhas de panos e missangas gentis,quem vos partiu o parto em tijolo ficado e envelhecido? Ilha, capulana estampada de soldados e morte. Ilha elegíaca nos monumentos. Porta-aviões de agoirentos corvos na encruzilhada das monções. De oriente a oriente flagelaste o interior da terra. De Calicut e Lisboa a lança que o vento lascivo trilou em nocturnos, espasmódicos duelos e a dúvida retraduzindo-se agora entre campanário e minarete. Muezzin alcandorado, inconquistável. Porque ao princípio era o mar e a Ilha. Sindbad e Ulisses. Xerazzade e Penélope. Nomes sobre nomes. Língua de línguas em Macua matriciadas.


INDICA MISSANGA SOBRE O TEU CORPO


Agora percorro-te pelas artérias de poeira e branco encardido. Pedra obsessiva, vazia, petrificando o tempo. Pedra de mulher mítica, olhando-me. Mulher onde eram as ondas e os pássaros e os barcos
elementares.

E agora fotografo-te em ritmo de coda, em variações batidas pelas veias abertas do teu segredo violado. Usurpado. Acrescentado. Agora, sobre os dias de tédio martelados a luz, de partos povoando-se, da epiderme em grito contra a pedra. Naufrágio de colmo guerrilhando-te os afectos, os amantes em
rotação de geografias, o íman das coifas e das desembainhadas, tesas baionetas.

Agora possuo-te. Perco-te. A minha boca em Macua perguntando-te como se diz «bom dia», neste articulado silêncio de arquitecturas
que em quotidiano caminhar cruzo, tu cruzas, entre levas de intestino e fome. Como um distúrbio da grandeza maior que te cobre.

Agora eu, moçambicana concha, madeirame de açoitada nau escorando-me os músculos, indica missanga perdida, sobre o teu corpo, minha mulher, minha irmã, minha mãe, percorro-te. Sou.


(Do livro Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora, 1991)


CHAGALL

a Lagosta alando-se
ao flanco mais lúcido das estrelas,
mestre, esta é a casa
ou só silêncio em percussão de formas,

Rumor de virgens
sagrando de mênstruo as raízes


(Do livro Mariscando luas, 1992)


ELEGIA DO NILO

Azul e branco e o deus crocodilo na margem
Diante das ruínas de Karnak,
como sobes, visto daqui, das águas obscuras
Onde Ogum verteu suas lágrimas e cantou
O sulco vindouro, persistente e duro caminhante
De sul para norte sobre as areias, rasgando a volúvel pele
Dos deuses.
Reis e templos, em tuas margens ordenaram o mundo
Entre cada ciclo solar, suspensos do fim;
E louvo a cidade dos que partiram, o fluxo da pedra
que ainda sustém a geometria do eterno
emergindo da tua indiferença;Tu, que escondes os gatos
imóveis e os sabes para sempre espíritos soltos, eriçados; e te deleitas,
vendo-os na ronda dos desenhos enigmáticos, anichando-se junto aos
Sarcófagos que extrapolam de Ti, como se o teu leito derramado
Tivesse soerguido, da solidão granular, o perfil oblongo
Da cabeça de Nefertiti e Te espojasses na beleza efémera
Dos esponsais da Carne;
Ó matéria perecível que as ânforas guardam, aguardam,
Nós que perdemos o divino selo das libações inaugurais e salmodiamos,
No medo litúrgico da palavra esquecida, o simulacro do Livro
E a salvação dos mortos;
O que subia deles, extirpadas as vísceras, iluminados pelo ouro e a água
De que eras a substância!
Desceram as noites e o desmundo bebeu nas tuas margens
Enquanto Tu cantavas e era de ti o canto
Moldando a forma, lacerando as cidades e erguendo-as,
Com nossos pés descalços sobre a erva, acocorados
E breves, uma inscrição de sangue diluindo-se
Até ao mar.

(Do livro O osso côncavo e outros poemas, 2004)


Luís Carlos Patraquim nasceu em Lourenço Marques (atual Maputo), em 1953. Refugiou-se na Suécia, em 1973, por motivos políticos. Regressou ao país em 1975, ingressando no jornal A Tribuna. Membro do núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique) e do Instituto Nacional de Cinema (INC), atuou, de 1977 a 1986, como roteirista / argumentista e redator do jornal cinematográfico Kuxa Kanema. Foi o criador e coordenador da Gazeta de Artes e Letras (1984/86) da revista Tempo. Desde 1986 reside em Portugal. Publicou, entre outros títulos, Monção (1980), A Inadiável Viagem (1985), Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1992),  Lidemburgo Blues (1997) e O Osso Côncavo (2005). Recebeu o Prêmio Nacional de Poesia de Moçambique, em 1995.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

UM POEMA DE LUÍS CARLOS PATRAQUIM



 












 O OSSO CÔNCAVO

sábado, 2 de janeiro de 2016

FÓSFORO BRANCO













Para Emir Mourad

Fósforo branco ácido ilumina escombro escárnio nos céus do Líbano.
Talhos retalhos de torsos retorcidos
ossos negrume carcaças.
Corpos enfileirados peles requeimadas
de carne sucata
nos campos de refugiados
em Sabra e Chatila.
Esta é a hora do morticínio.
Farpas fiapos nacos de membros desmembrados
e o aroma escuro escuro da hora lenta lenta de um dia que nunca termina.
Nenhum Kaddish para os filhos da escrava Agar
nenhuma lágrima para Ismael.
Apenas o silêncio de talhos retalhos peles farpas fiapos
e o escuro escuro.
Esta é uma história
exilada da história,
que eu e você não devemos saber:
por isso cala o escombro cala o negrume cala a sucata do morticínio.
É preciso calar
a matraca dos jornais;
sim, é preciso fechar os livros, fechar para sempre os livros
e condenar os mortos à perene desmemória
(em algum sítio
mefistofáustico
de Tel Aviv,
que moveu a macabra máquina da morte,
a estrela de David
se converte
em nova suástica).
Porém, eu e você não nos calamos,
eu e você não iremos esquecer,
eu e você somos o cedro do Líbano, a oliveira da Palestina,
o pão fresco nas mesas da Síria.
Houve aqui uma página infame da história,
mas eu e você recusamos o silêncio,
recusamos o esquecimento,
recusamos o perdão.

2013

(Poema que será publicado no terceiro volume de meu livro Cadernos bestiais)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

FELIZ 2016. NÃO VAI TER GOLPE!

Os últimos meses de 2015 -- novembro e dezembro -- foram essenciais para a defesa da democracia e do mandato legítimo de Dilma Rousseff contra as tentativas de golpe de estado no Brasil: os estudantes secundaristas ocuparam mais de 200 escolas, enfrentaram a Polícia Militar e impuseram a primeira derrota política que os tucanos sofreram no estado de São Paulo, em vinte anos de desgoverno do P$DB; os movimentos sociais levaram mais de 100 mil pessoas às ruas em São Paulo contra o golpe (os fascistas, poucos dias antes, reuniram de 40 mil a 55 mil); a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB) consegue derrubar a manobra golpista de Cunha no STF; Dilma quita a dívida do governo federal com os bancos públicos (as chamadas "pedaladas"), derrubando a tese do impeachment, demite Levy e reajusta o salário mínimo para R$ 880 reais, o que irrita a mídia, a oposição, a burguesia e os zumbis de classe média, mas é bem recebido pela classe trabalhadora, enfraquecendo o apoio popular ao golpe. Faço votos que em 2016 a esquerda continue jogando assim para derrotarmos de vez os fascistas!