quinta-feira, 28 de novembro de 2013

PROGRAMAÇÃO DE DEZEMBRO DA CURADORIA DE LITERATURA DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO




Poesia dos 4 Cantos: Noite Brasileira

Poesia dos Quatro Cantos é uma atividade mensal dedicada à divulgação da poesia internacional, num formato que inclui a leitura com danças e músicas típicas de cada país, nos intervalos das leituras. Em dezembro, será feita a apresentação de uma Noite Brasileira com os poetas Claudio Daniel Lelia Maria Romero, que lerão poemas de autores brasileiros clássicos e contemporâneos, com a participação do bloco afro Ilú Oba de Min.

Terça-feira, dia 03/12/13, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa


CRIONÇAS CRIONÇOS

Show do compositor Cid Campos, que apresentará poemas musicados voltados ao público infanto-juvenil.

Sexta-feira, dia 06/12/13, das 19h às 21h 

Sala Adoniran Barbosa


Clube de Leitura de Poesia

A poeta Mariana Ianelli conversará com o público sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer perguntas ao poeta, para um bate-papo informal.

Terça-feira, dia 10/12/2013, das 20h30 às 22h 

 Sala de Debates


Menu de Poesia

Recital dedicado à poesia de Décio Pignatari, organizado por Maria Alice Vasconcelos.

Haverá tradução de libras.

Quarta-feira, dia 04/12/2013, das 20h30 às 22h 

Sala Adoniran Barbosa

terça-feira, 19 de novembro de 2013

MÍDIA















corvo monossilábico rumina vermes
na lepra da língua:
infecta o ar com sua voz,
insulta o sol.
ave monocromática,
repete a lepra, repete a lepra da língua,
em textículos venais:
multiplica calúnias, entorpece letras,
mumifica o mar.
tudo é falso, tudo que diz é falso,
vermes caindo de seu bico
recurvado, como quem diz:
“nunca mais!”
ave canalha, ave venérea, ave vendida:
a palavra vermelha te desafia.

Claudio Daniel, 2013

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

GAROTO DE RECADOS


O famoso crítico literário -- inventado pela FALHA -- diz que a Companhia das Letras é "a melhor editora do Brasil" porque VENDE mais livros e tem mais presença na mídia (que presta serviços de assessoria de imprensa às grandes empresas editoriais, usando pessoas como ele). Ou seja, para o prestigiado crítico, é o MERCADO, e não a QUALIDADE literária, que importa. Eu, que sou inimigo declarado do mercado capitalista e de sua mídia nojenta, fico com as pequenas editoras -- LUMME, PATUÁ, TRAVESSA DOS EDITORES, DEMÔNIO NEGRO -- que publicam textos de qualidade e não precisam fazer lobby na mídia.

POEMAS PARA A PALESTINA


O livro Poemas para a Palestina (Qasaed ila Falastin) será publicado no início de 2014, em versão bilíngue, português-árabe. Parte da tiragem será enviada a escolas e universidades palestinas, como um presente de solidariedade dos poetas brasileiros.

O livro inclui poemas sobre a Palestina escritos por poetas brasileiros -- Glauco Mattoso, Marcelo Ariel, Lígia Dabul, Nina Rizzi, Andréia Carvalho, Jonatas Onofre, Khaled Fayes Mahassen (que também traduziu os textos para o árabe), Nydia Bonetti, Celso Vegro, Célia Abila, Rosane Carneiro, Gabriel Resende Santos, Paula Freitas, Lara Amaral e eu próprio (poema Fósforo Branco). Parte desses poemas foi lida no recital realizado no Club Homs em memória das vítimas de Sabra e Chatila.

RETRATO DO ARTISTA




PALAVRAS SUJAS DE REALIDADE

Donizete Galvão desenvolve em sua poesia um catálogo de motes obsessivos em que se destacam o tempo, a memória, a cidade, insetos, animais, pequenos acontecimentos da jornada ordinária e a busca da epifania possível numa era de “homens inacabados”. Mircea Eliade, no Tratado de história das religiões, define epifania (do grego epi, sobre, phaino, brilhar) como a manifestação inesperada do divino ou o acesso súbito à sabedoria, tal como as revelações obtidas em sonhos, transes xamânicos ou experiências rituais com alucinógenos. O conceito de epifania passou a ser usado na modernidade por autores como James Joyce, num contexto laico e profano, para designar percepções estéticas que causam uma reação emocional intensa de horror ou deslumbramento. A escrita de Donizete Galvão apresenta diferentes momentos epifânicos, em geral relacionados à contemplação da natureza (“Caminho de vacas, / cascos / cavando / trilhas / na grama”), à escuta das canções de Nina Simone (“Voz de soda cáustica / roendo a carne / até cavar um fosso”), ao convívio com as obras de artistas plásticos como Paulo Pasta ou Renina Katz (“Paisagem irreal, / onde se respira / um ar rarefeito: / o mundo suspenso / por um fio / no limiar da dissolução”), mas especialmente à observação de cenas que são retiradas de sua condição imediata e reconfiguradas em alegorias, como acontece em O grito: “O porco guincha / e sob a pata dianteira / sai a golfada de sangue / que enche a bacia. // Horas depois, / pronto o chouriço, / comemos o sangue preto, / as tripas, o grito” (do livro Ruminações). Este poema, de fortes cores expressionistas, não é apenas a descrição minuciosa de um acontecimento que o autor pode ter presenciado (ou não) em sua cidade natal, Borda da Mata, situada no interior mineiro; é também a construção do pensamento por meio de imagens e impressões sensoriais que envolvem a imaginação do leitor, fazendo com que ele compartilhe a degustação das tripas misturadas ao grito, metáfora do desconforto da condição humana.

Consciência de linguagem

Em Azul navalha, livro de estreia de Donizete Galvão, publicado em 1988, o tema principal é a cidade – o espaço perdido da infância, agora transformado em cenário mental (“Ele fundou uma cidade na memória, / território de sonhos que a tudo acolhe. / Ruas que são matas / que são rios / que são abismos / em ilógica geografia”). Em As faces do rio, publicado em 1990, o autor amadurece a consciência de linguagem em peças de maior elaboração formal, como a notável composição Prisioneiro na pedra, de versos breves, enigmáticos e construção elíptica: “Na pedra, / ele espreita: / peixe, pássaro, lua. / Seu olho-flecha / nunca fere a presa. / Pois que tudo se move; / rio, céu, satélite / e até mesmo a pedra. / Não se move o homem, / cego à teia / que à sua volta cresce”. A pedra é um elemento que comparece em diversos poemas de Donizete Galvão (especialmente em seu terceiro livro publicado, Do silêncio da pedra, de 1996), geralmente associada à “esterilidade do deserto e, em última instância, a morte”, mas também a aspectos positivos, como “anteparo e abrigo”, segundo Paulo Vizioli. A pedra se contrapõe à água, outro símbolo frequente na poesia de Donizete Galvão: se a pedra é silêncio e imobilidade, a água é ruído, movimento, devir temporal, rio heraclítico em que entramos e não entramos, somos e não somos: “Tudo que nos é dado a maré leva / e devolve como restolho”. Em A carne e o tempo, livro publicado em 1997, com a reprodução de uma aquarela de Paul Klee, o tema central é o caráter efêmero dos viventes e do mundo (“Somos homens de frágil arquitetura / tessitura de finos fios de vidro, / renda tramada por aranhas”), embora o sagrado também compareça – não como promessa de redenção futura, mas como possibilidade de encantamento na vida presente com as pequenas coisas que nos iluminam, seja a lembrança de figos maduros, a contemplação da chuva de primavera, ouvir a música de Villa-Lobos, assistir à dança de Madhavi Mudgal ou observar as litografias de Renina Katz. Para Donizete Galvão, há “um deus de pedra / (...) deus que não pune / deus que não salva”.

Perguntas sem respostas

Ruminações, publicado em 1999, é o livro mais telúrico do autor, formado por pequenas narrativas que incorporam paisagens do interior mineiro, sem cair em fácil retórica nativista: o poeta transforma o regional em universal em composições como Reboco (“Para quem não tem muito, / tudo tem serventia: / a argila, a bosta da vaca, / o perfume da grama”), Escoiceados (“Levamos / bons coices. / Meu pai e eu. / Os dois / nunca subimos / na vida”) e Autorretrato como boi (“No curral da insônia / rumino palavras pastadas / na ribanceira dos dias”).  Um poema notável deste livro, pela técnica de construção da narrativa, é Sexta-feira da paixão: “A mulher que ganhou os peixes / não traz os olhos cabisbaixos / nem os ombros arqueados. / Treze peixes finos e prateados / deslizaram para dentro da sacola. / (...) Usará a frigideira preta / que fica no armário da pia? / Vai passar os peixes na farinha, / fritá-los e servi-los bem sequinhos”. O poema é arquitetado na forma de perguntas sem respostas, em que a descrição minuciosa do cenário se mistura a um engenho imaginativo que completa as lacunas com hipóteses ficcionais (“Quem dividirá os peixes com ela? / O marido aposentado? Os filhos?”). A aparente simplicidade do poema oculta o seu caráter alegórico, no sentido próprio da palavra: construção do pensamento por meio de metáforas ou imagens, recurso frequente na poesia e na pintura barrocas.  O lirismo de Donizete Galvão, centrado na carnadura das palavras e das coisas, chega a um grau de ebulição em Mundo mudo (2003) e sobretudo em O homem inacabado (2010), de onde extraímos essas linhas: “Num átimo, / a picada da serpente. / Abre-se a ferida / que nunca sara / Que não supura. / Coleção de escaras / que saem à unha / e renascem / novas crostas. (...) A dor: / veneno. / Ninguém quer / sua companhia”.


(Artigo publicado na edição de novembro da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (IV): FERREIRA GULLAR



Ferreira Gullar é considerado pela crítica especializada um dos melhores poetas brasileiros contemporâneos. Sua obra é marcada por diferentes fases de pesquisa estética, desde o lirismo e o experimentalismo até a poesia de cordel e a dicção coloquial de sua produção mais recente. No livro A luta corporal, de 1954, por exemplo, encontramos composições intimistas de forte musicalidade, na série Sete poemas portugueses, e ainda poemas em prosa, como a Carta ao inventor da roda, peças concisas e substantivas que se aproximam de João Cabral de Melo Neto, como Galo galo e ainda textos experimentais que antecipam a Poesia Concreta, pela espacialização das linhas na página, fragmentação da palavra e criação de neologismos. A respeito dessa obra, que se afasta da tendência neoclássica da Geração de 45 e se insere no campo das experiências de vanguarda da década seguinte, escreveu João Cabral de Melo Neto: “O livro A luta corporal, com que estréia o jovem poeta Ferreira Gullar, mostra uma justa compreensão do que é a arte da tipografia. Impresso em papel absolutamente pobre, sem nenhum desses adornos provincianos ainda tão usados entre nós (...), o livro é um dos trabalhos gráficos mais simpáticos publicados ultimamente”. O poeta pernambucano aponta as “pesquisas com a palavra e com o verso” e a visualidade da “disposição de pretos e brancos (que) desempenha papel essencial” como elementos de destaque na poética de Gullar, bem como a economia dos aspectos gráficos, que coloca em primeiro plano a força semântica do texto: “O livro, principalmente o livro de poesia, mesmo quando o autor não procure impor leis especiais à leitura do verso, tem de estar subordinado ao texto: deve, quando nada, não pesar sobre o texto, com todos os adornos e ilustrações que, em geral, vemos associados à idéia de edição de luxo[1]”. Um bom exemplo da arquitetura poética do livro A luta corporal é o poema O anjo: “O anjo, contido / em pedra / e silêncio, / me esperava. // Olho-o, identifico-o / tal se em profundo sigilo / de mim o procurasse desde o início. // Me ilumino! todo / o existido / fora apenas a preparação / deste encontro. // O anjo é grave / agora. / Começo a esperar a morte”[2]. Este poema revela várias características da poesia inicial de Gullar, como a síntese verbal, a geometria, a mescla de termos concretos e abstratos (como a pedra e o silêncio) e a expressão subjetiva. No último poema do volume, sem título, Gullar radicaliza a disposição espacial das linhas na página, buscando dar uma dimensão plástica ao texto, ao mesmo tempo em que pulveriza as palavras em sílabas e cria termos abstratos escritos em letras maiúsculas como “URR VERÕENS / ÔR / TUFUNS / LERR DESVÉSLEZ VÁRZENS”[3].

O vil metal, que reúne poemas escritos entre 1954 e 1960, parece prosseguir esse caminho de experimentação no poema que abre o volume, intitulado Fogos da flora, mas, nas páginas seguintes, verificamos uma profunda mudança na dicção do autor, que apresenta textos discursivos, bem-humorados e em linguagem coloquial, como Ocorrência: “Aí o homem sério entrou e disse: bom dia. / Aí o outro homem sério respondeu: bom dia / Aí a mulher séria respondeu: bom dia / Aí a menininha no chão respondeu: bom dia / Aí todos riram de uma vez”[4]. Esta peça, assim como outras incluídas no livro, afastam-se do concretismo, praticado pelo autor entre 1957 e 1958 (com resultados notáveis, como o Formigueiro e o Poema enterrado) e revelam a influência da linguagem conversacional e irônica do Modernismo, e em especial de Oswald de Andrade (a quem dedicou o poema Oswald morto) e Carlos Drummond de Andrade. A marca do experimentalismo, porém, ainda é visível na peça Definições, composta de palavras escritas em letras minúsculas, aglutinadas fora de uma ordem sequencial lógico-sintática, com o uso frequente de recursos aliterativos e sem sinais de pontuação: “fala fósseis sol / facho / farpa fogo / arco-sombra / faca jardim archote /folha ou boca / flama / gasto em vão”[5]. José Guilherme Merquior aponta, nesse livro, uma “poesia de conquista crítica do cotidiano[6]”. Podemos notar a abordagem referida por Merquior no léxico dos poemas (lavatório, gaveta, paletó, cadeira, sapatos), no olhar fotográfico, voltado às pequenas ações ordinárias, e certo tom caricatural, que não se reduz ao mero naturalismo, como no poema Um homem ri: “O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge”[7].  
Com as mudanças políticas ocorridas no Brasil a partir do golpe militar de 1964, que derrubou o governo democrático de João Goulart, o poeta escolhe um novo caminho para a sua criação, privilegiando os temas sociais, o conteúdo ideológico e o diálogo com a cultura popular, como a poesia de cordel, gênero que praticou entre 1962 e 1967 (Quem matou Aparecida, Peleja de Zé Molesta com Tio Sam, História de um valente, entre outros títulos). Segundo Fábio Lucas, nos Romances de Cordel, Gullar “passa ao ritmo mais fluente e popular da língua portuguesa, as estrofes narrativas em redondilhas, nos moldes dos cantadores de feiras. Falam alto no poeta a nordestinidade, a visão urbana e o compromisso social”[8]. A leitura desses poemas hoje, porém, fora do contexto histórico em que foram escritos, pode revelar certo anacronismo estético pelo proselitismo típico de uma arte que se confunde com as tarefas de agitação e propaganda, como ocorre em versos como esses: “o homem vem caminhando / para a plena liberdade; / tem que se livrar da fome / para atingir a igualdade; / o comunismo é o futuro / risonho da humanidade”[9]. O abandono das formas de experimentação estética em favor do compromisso político inspira ainda um ensaio de Gullar publicado em 1969, chamado Vanguarda e subdesenvimento. O engajamento político permanece no livro seguinte, Dentro da noite veloz (1975), onde encontramos poemas dedicados a Che Guevara e de denúncia da guerra do Vietnã, temas recorrentes no auge da Guerra Fria, que dividiu o mundo entre as esferas de influência americana e soviética. Este talvez seja o livro de menor impacto estético na obra de Gullar, pela ênfase na abordagem ideológica dos fatos históricos do período, mas ainda encontramos aqui peças líricas e bem-humoradas como Cantada: “Você é mais bonita que uma bola prateada / de papel de cigarro / Você é mais bonita que uma poça d’água / límpida / num lugar escondido / Você é mais bonita que uma zebra / que um filhote de onça / que um Boeing 707 em pleno ar / (...) Olha, / você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro / em maio / e quase tão bonita / quanto a Revolução Cubana”[10].  

O Poema sujo, talvez o livro mais conhecido e admirado de Ferreira Gullar, publicado em 1976, é bem recebido pela crítica, que reconhece nesse poema longo escrito no período de exílio do autor em Buenos Aires uma obra densa e consistente. Conforme José Guilherme Merquior, “Uma das originalidades do Poema sujo consiste precisamente na conjugação dessa fixação carnal com a insistência em cantar o corpo da cidade: da bela, pobre e úmida São Luís, berço de Gullar. O realismo caricatural de Gullar, seu apego à dolorosa finitude das pessoas e coisas, emprestam a vários momentos de seu poema um tom único de abrupta humanidade. Ferreira Gullar é um François Villon participante — um César Vallejo brasileiro — e sem dúvida é a pungência da sua rouca melodia, a sua surpreendente capacidade de liricizar, sem nunca ‘estetizar’ o chulo e o banal, que lhe permite evitar a erva daninha da literatura engajada — o clichê ideológico”[11]. É preciso ressaltar, além dos aspectos referenciais — como as lembranças da infância e a descrição de cenas do cotidiano da cidade —, a riqueza rítmica e melódica do poema de Gullar, que aglutina as palavras criando efeitos sonoros que se chocam por vezes com a própria sintaxe, como nas linhas iniciais: “turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro / menos menos / menos que escuro / menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo”[12]. Este é um dos livros mais importantes da poesia brasileira da segunda metade do século XX, na opinião quase unânime da crítica.

Na vertigem do dia (1980) retoma o intimismo da fase inicial da poesia de Ferreira Gullar, o mergulho em suas próprias incertezas e inquietações. No poema intitulado Traduzir-se, por exemplo, o poeta diz: ”Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo. // Uma parte de mim / é multidão: / outra parte estranheza / e solidão. / (...) Traduzir uma parte / na outra parte / — que é uma questão / de vida ou morte — / será arte?[13]” O poema Bananas podres, por sua vez, recupera os temas da passagem do tempo e da morte, alegorizados na imagem da fruta que apodrece (metáfora já presente na composição As peras, incluída no livro A luta corporal). O mergulho no mundo das memória e das emoções será aprofundado nos dois livros que o poeta publicou em seguida, Barulhos (1987) e Muitas vozes (1999). Em Barulhos, Ferreira Gullar apresenta poemas discursivos e confessionais em que se refere à cidade do Rio de Janeiro, a amigos mortos, como Glauber Rocha, Clarice Lispector e Mário Pedrosa, sem perder o foco no cenário social e no compromisso político, como no poema Meu povo, meu abismo: “Meu povo é meu abismo. / Nele me perco: / a sua tanta dor me deixa / surdo e cego. // Meu povo é meu castigo / meu flagelo: / seu desamparo, / meu erro. // Meu povo é meu destino / meu futuro: / se ele não vira em mim / veneno ou canto / — apenas morro”[14]. Apesar de alguns bons achados, este é talvez o livro mais irregular do autor e não revela nenhuma surpresa formal ou referencial. Muitas vozes, o livro de poesia publicado a seguir, também não apresenta novidades: ali estão as obsessões registradas nos livros anteriores, como a cidade natal, a infância, a família, o cenário urbano do Rio de Janeiro, a realidade social. Dois poemas que chamam a atenção nesse volume são Nasce o poeta e Evocação de silêncios, que retomam a concisão, a geometria e a literariedade de sua primeira fase criativa.    




[1] MELO NETO, João Cabral de, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 122-123.

[2] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 9-10.

[3] GULLAR, Ferreira. Idem, 64.

[4] GULLAR, Ferreira. Idem, 72.

[5] GULLAR, Ferreira. Idem, 74.

[6] MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998: 123.

[7] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 77.

[8] LUCAS, Fábio, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 125.

[9] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 151.

[10] Idem, 173.

[11] MERQUIOR, José Guilherme, in Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1998, 123.

[12] GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008: 233.

[13] Idem, 335.

[14] Idem, 377.

sábado, 2 de novembro de 2013

O QUE É ISSO, FERNANDA TORRES?



Fernanda Torres é uma boa atriz de teatro e cinema (adoro sua interpretação no filme "Terra Estrangeira"), mas, intelectualmente, deixa muito a desejar. Em artigo publicado em 01/11 na FALHA de S. Paulo, ela escreve a seguinte pérola: "A liberdade de expressão está sob ameaça em muitos países latino-americanos. No Brasil, a imprensa se mantém alerta para qualquer movimento que interfira em direitos conquistados". Para que puxar o saco da família Frias, Fernanda? Pergunte a qualquer jornalista da FALHA se ele tem liberdade de expressar o que realmente pensa no jornaleco que apoiou a ditadura militar. Mais adiante, a cabeça-de-vento escreve: "Sou a favor da liberação" (ou seja, contra a regulamentação da mídia). "O 'sem fins lucrativos' beneficia a internet e a versão chapa-branca da história; a informação duvidosa, sem fontes confiáveis". 1) a qual "liberdade" ela se refere? A "liberdade" de 4 ou 5 famílias monopolizarem a informação no país? 2) Por que tanto medo da internet? Porque nela não existe apenas o "pensamento único" neoliberal-tucano que rege toda a mídia brasileira? Essa é a ideia de democracia da mocinha? 3) "Sem fins lucrativos" deve se referir -- presumo -- aos blogues e sites independentes, que veiculam a outra versão dos fatos. Por acaso as fontes citadas no Portal Vermelho, por exemplo -- agências de notícias internacionais independentes do Império e veículos como a Telesur, Cubadebate, A voz da Rússia e a Prensa Latina -- seriam "menos confiáveis" que as agências norte-americanas que alimentam a FALHA? Por qual motivo? Porque não reproduzem a versão do Império? A regulamentação da mídia não significa restringir a liberdade de imprensa -- que já é mínima, sob o controle autoritário de 4 ou 5 famílias -- mas, ao contrário, visa combater a monopolização da informação e ampliar a liberdade, com mais rádios e tevês comunitárias, por exemplo. O Brasil, nesses dez anos de governos progressistas, avançou pouco ou nada nesse terreno, e cabe aos ativistas políticos, artistas e intelectuais não vendidos ao sistema cobrarem de Dilma a implementação de uma Lei de Mídia.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

POEMAS DE MERCÈ RODODERA





FLOR TRISTEZA

Com as folhas da cor de pele de rato, abre-se nas tardes de chuva quando as acácias são um mar de cheiro de mel. Aberta à luz mais morta, goteja prantos para todo lado. Se tivesse mãos lhe dirias: “Toma” e lhe darias o lenço. Se caminhas nas pontas dos pés cansado da comédia, ouvirás uns pequenos gemidos. Se caminhas a passos largos, ela se espanta e cala. Se lhe dizes “coitadinha”, estás perdido. Vale mais te fazeres de distraído e a olhares sem interesse, esperares que ela se canse e que vá montanha acima porque ela já não agüenta.


FLOR GULOSA

Te come vivo. Te agarra, te dobra, te engole e cospe os botões. Te assimila muito lentamente porque parece que tem a digestão difícil. É melhor assim.


FLOR DOIDA

É muito pegajosa e muito perigosa. Foi desleixada e Deus nos livre do que já está feito. Não é nem bonita nem feia: é uma flor. Tem forma de aranha e cor de cera. O sangue doce dos homens a atrai. Espera, na beira dos caminhos, que passem; mas têm de usar calças compridas. De um salto sobe-lhes pelo sapato e, com grande cautela, se esconde entre a perna da calça e a pele, segue para cima e pára perto do joelho. Abraça-se e dorme.


FLOR MÁ

É de uma cor de caramelo de menta, cheia de matizes. Tem uma pétala pendente, com falbalás, e duas horizontais que lhe saem para fora como duas conchas de mexilhão, fechadas por uma aldraba tuberosa. É Flor-mexilhão com crista e aldraba. Se paras para olhá-la, a crista se move zangada, a aldraba se levanta, a flor-mexilhão se abre e mostra uma lingueta escura como chocolate, brilhante de verniz. Furiosa de ver ao lado uma cabeça no alto de um homem, põe a língua de fora. 


FLOR VERGONHA

Enquanto as pétalas se separam do botão para fazer-se flor, ela as expulsa de si. Não quer ser flor. Não quer que a retratem.


Tradução: Ronald Polito

(Poemas extraídos da plaquete Flores autênticas. Fuchu-shi, Tokyo-to: Edições do Outro Mundo, 2004)