domingo, 31 de julho de 2011

CÂNONE E ANTICÂNONE: HERBERTO HELDER (IV)












Fernando Pessoa, nos Apontamentos para uma estética não-aristotélica, diz: “Toda arte parte da sensibilidade, e nela realmente se baseia” (PESSOA, 1976: 92). Porém, enquanto o artista aristotélico “subordina a sua sensibilidade à sua inteligência, para poder tornar essa sensibilidade humana e universal, ou seja, para a poder tornar sensível e agradável, e assim poder captar os outros”, o artista não-aristotélico (e podemos pensar aqui em Camilo Pessanha, no próprio Pessoa, em Sá-Carneiro e, claro, em Helder) “subordina tudo à sua sensibilidade”, tornando-a “abstrata como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade)” (idem). O texto, datado de 1907 e assinado por Álvaro de Campos, aponta ainda outra importante ruptura com a estética aristotélica: enquanto nesta há uma exigência de que “o indivíduo generalize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal”, na teoria proposta por Pessoa / Álvaro de Campos “o percurso indicado é inverso: é o geral que deve ser particularizado, o humano que se deve pessoalizar, o ‘exterior’ que se deve tornar ‘interior’ ” (idem, 90). A invenção dos heterônimos por Pessoa é uma leitura pessoal do mundo e da tradição literária, ao mesmo tempo que constitui uma intervenção crítica, mas o autor de Mensagem ainda se viu comprometido com a ideia aristotélica da verossimilhança, e assim cria, para as suas muitas vozes, nomes, biografias, datas e dicções particulares; Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, são personagens dramáticos, querem nos convencer de sua existência. Herberto Helder, ao contrário, embora escreva em primeira pessoa, em tom conversacional, não nomeia a si mesmo, não apresenta uma cronologia, não descreve ações reconhecíveis, não conta uma história, de si ou do mundo; ele expressa a sua subjetividade na construção da linguagem, ela própria um corpo feito de palavras. “Se o poema emerge do corpo e é o próprio corpo, seremos levados a considerar que a criação é algo da ordem de uma experiência sensível, que se produz a partir da transformação daquilo ou daquele que lhe dá origem” (LEAL, 2009). Herberto Helder é um poeta fingidor, mas o seu teatro é interno, abstrato, e ele não deseja convencer o leitor da existência de uma realidade linear da qual ele próprio duvida. O eu lírico que aparece em seus poemas é um narrador cético, que faz do próprio poema a sua biografia, artesanato e lugar imaginativo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DAL FARRA, Maria Lúcia. A alquimia da linguagem: leitura da cosmogonia poética de Herberto Helder. Lisboa: Imprensa Nacional, 1986.

GUEDES, Maria Estela. A obra em rubro. São Paulo: Escrituras, 2011.

HELDER, Herberto. O Corpo O Luxo A Obra. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000.

HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. São Paulo: Perspectiva, 2006.

HELDER, Herberto. Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue Edirorial, 2004.

HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

JACOTO, Lilian, e MAFFEI, Luís. Soldado aos laços das constelações: Herberto Helder. Bauru: Lumme Editor, 2011.

JÚDICE, Nuno. As máscaras do poema. Lisboa: Arion, 1998.

LAUTRÉAMONT. Obras Completas (trad. Claudio Willer). São Paulo: Ed. Iluminuras, 2ª. ed., 2005.

MARINHO, Maria de Fátima: Herberto Helder, a obra e o homem. Lisboa: Arcádia, 1982.

PERLOFF, Marjorie. O momento futurista. São Paulo: Edusp, 1993.

PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião. São Paulo: Globo, 2005.


Na internet:

BORGES, Contador. Herberto Helder: a razão da loucura. http://www.revistazunai.com/ensaios/contador_borges_herberto_helder.htm

DANIEL, Claudio. Apontamentos de leitura: Helder e Celan, artigo publicado na revista eletrônica Zunái, http://www.revistazunai.com/ensaios/claudio_daniel_apontamentos.htm

LEAL, Izabela. Corpo, sangue e violência na poesia de Herberto Helder. http://www.revistazunai.com/ensaios/izabela_leal_herberto_helder.htm

TRAVASSOS, Jacineide. A máquina de emaranhar paisagens: João Cabral, Herberto Helder e Mondrian, artigo publicado na revista eletrônica Zunái, na página http://www.revistazunai.com/ensaios/jacineide_travassos_maquina_de_emaranhar_paisagens.htm

WILLER, Claudio. Herberto Helder e a grande poesia portuguesa contemporânea, artigo publicado na revista eletrônica Agulha em 2000, http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag9helder.htm

WILLER, Claudio. Conversa sobre Herberto Helder, depoimento publicado no site Triplo V em 2009, http://www.triplov.com/willer/2009/HH.html.

WILLER, Claudio. A obra em aberto: Herberto Helder por Maria Estela Guedes, artigo publicado no site Cronópios em 18/02/2011, http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=4907

sábado, 30 de julho de 2011



CÂNONE E ANTICÂNONE: HERBERTO HELDER (III)


A primeira parte da composição, que inicia com o verso “Uma noite encontrei uma pedra”, simula a narrativa de um caminhante noturno, que descreve aquilo que experimenta ao longo de uma jornada solitária, num “grande silêncio para se habitar só em gestos”. Porém, ao contrário do narrador de O sentimento dum ocidental, de Cesário Verde, este sujeito, que nunca é nomeado, não observa edifícios, chaminés, a via férrea, carpinteiros, mas encontra objetos de contorno e substância imprecisos, submetidos a constantes metamorfoses, como esta pedra encontrada no meio do caminho, ora verde, ora azul: “Uma pedra / sem folhas, um sino / sem pensamento”, que irá percorrer todas as seções do poema, não raro em situações contrárias à lógica natural (“Às mulheres amadas darei as pedras voantes”). A abstração da paisagem é realçada pelo uso arbitrário de adjetivos, fora da qualquer acepção dicionarizada (“flor hipnotizada”, “abstrata violência”, “viola tenazmente taciturna”), e de pronomes indefinidos em construções como “Alguma coisa dessas coisas da imobilidade”, “Alguma coisa subida de raízes mais milagrosas” e “Algo não levantado inteiramente da obscuridade”.

O enigma, o paradoxo, a ambiguidade, são os gênios tutelares dessa escritura, onde, de modo similar ao princípio mallarmeano, não importa pintar a coisa, mas o efeito que ela produz – que será eficiente na medida de sua fluidez, imprecisão e pluralidade de rotas de leitura. Helder é um parente espiritual de Camilo Pessanha, sobretudo do Pessanha mais obscuro do que melódico, como no soneto de Clepsidra que começa com o verso “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”, cuja atmosfera onírica, com imagens de alto impacto estético (“Fulgurações azuis, vermelhas, de hemoptise”, “Abortos que pendeis as frontes de cidra”), antecipam as insólitas arquiteturas helderianas (bem como as de Mário de Sá-Carneiro, em versos como “Idade acorde de Inter-sonho e Lua, / Onde as horas corriam sempre jade”, do poema Distante Melodia, do livro Indícios de Ouro).

A imprecisão voluntária do enunciado, na primeira parte do poema de Helder, é obtida também pela alteridade, em versos como “Som ou degrau que eu beijaria”, “Ou então era alta, ou esmagada, ou degolada, / no meio de um silêncio global”. A conjunção ou, que oferece ao mesmo tempo alternativa e exclusão, cria uma instabilidade no discurso: pode ser isto, pode ser aquilo, não temos um solo firme, uma delimitação de contornos, mas uma abertura para várias possíveis maneiras de imaginarmos o sentido, num desejado caos sensorial da escrita. A transgressão da lógica rotineira manifesta-se ainda pelo uso contínuo de partículas negativas, que simulam a afirmação de algo por sucessivas recusas de caráter enigmático: “Encontrei uma pedra pedra / que não era uma colina com o mês de março em volta / Nem era a boca materna aberta / debaixo dos rios lisos. (...) / Encontrei algo que não andava / pelos montes nem seria atravessado / por uma flecha. E não sangrava. / Que não se ouvia se cantava”. As estranhas afirmações pela negação, de ritmo anafórico e estrutura próxima à da enumeração caótica, combinam-se ao uso de advérbios para aprofundar ainda mais o grau de incerteza e instabilidade do discurso: “Talvez fosse fria / ou vivesse abrasada sobre a ilusão”, “aldeias inteiras cantando sua pureza quase louca”. A palavra-chave que se repete nesta seção do poema, estruturando o ritmo e corporificando a alucinação, é o verbo encontrar, conjugado na primeira pessoa (“Encontrei em mim essa clareira”, “Encontrei um animal desconhecido”, “Encontrei ondas e ondas contra mim”), que conduz as estrofes, num crescendo, até o final de aparente referencialidade, onde nos deparamos com o amor, a morte, o silêncio (“palavras fundamentais”, logo, esvaziadas de sentido) e enfim este verso ambíguo, quase chave de ouro: “ — Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira”, que retoma duas imagens recorrentes no texto, a pedra e o sino, em associação com a palavra vida, num jogo entre concreto e abstrato, pessoal e impessoal, vida e linguagem.

O verso, de sintaxe fragmentada, pode ser lido de várias maneiras, por exemplo, a partir da hipótese de ocultamento da conjunção ou: “ — Se era uma pedra, ou um sino. / Ou uma vida verdadeira”, que numa leitura superficial indicaria uma relação antitética entre existência e representação, natureza e artifício. Sem dúvida, toda construção estética é artificial, seja pelos materiais utilizados em sua consecução, seja pela aplicação de técnicas específicas no processo criativo ou pelo artefato artístico em si, mas o trabalho do poeta ou artista não exclui a participação do universo sensorial, como aliás qualquer trabalho humano. O verso poderia ser lido também pelas lentes do fingidor de Fernando Pessoa: esta “vida verdadeira”, com toda a força retórica trazida pelo adjetivo, seria uma ficção semântica, exatamente por se apresentar como algo tão diverso da construção metafórica, que é o recurso formal dominante em todo o poema; negar a metáfora, fazer uma oposição entre ela e a vida, seria uma negação do próprio texto poético. A ambiguidade do verso de Helder, que não se resume a estas duas interpretações, é justamente a sua riqueza, por não constituir um “final” grandiloquente, no espaço onde o leitor aguarda uma conclusão, uma “mensagem”, que o alivie da dura tarefa do entendimento. Sem apresentar nenhuma verdade universal que nos tranquilize e deixando o poema aberto à múltiplas decodificações, este verso pode nos levar a outra discussão, ainda que breve, sobre os diálogos entre subjetividade e artifício na poética helderiana.

(CONTINUA)

sexta-feira, 29 de julho de 2011



CÂNONE E ANTICÂNONE: HERBERTO HELDER (II)


A fascinação pelo monstruoso, irregular ou disforme, evidente nas vanguardas históricas, e em especial o cubismo e o surrealismo, corresponde, segundo Izabela Leal, a “um projeto da modernidade que tem como objetivo tomar o corpo como possibilidade de desumanização” (LEAL, 2009). A estratégia de intervenção artística pela metamorfose e deformação teve certamente os seus antecessores na poesia do século XIX, e em especial nos autores que leram Charles Baudelaire, como o Cesário Verde de Num bairro moderno (“descobria uma cabeça numa melancia/ e nuns repolhos seios injetados”) e o Lautréamont de Cantos de Maldoror, obra inclassificável nos gêneros literários tradicionais que apresenta figuras híbridas meio humanas, meio animais, meio sobrenaturais, como o homem com cabeça de pelicano, “belo como os dois longos filamentos tentaculiformes de um inseto” (LAUTRÉAMONT: 1997, 28).

O processo da metamorfose, em Helder como em Lautréamont, está atrelado “a um desejo de levar às últimas consequências a compreensão da criação poética como uma operação de desestabilização do sentido”: ao desfigurar – ou refabular – palavra e mundo, o poeta cria novas realidades, realidades estéticas, usando como principal recurso criativo a inusitada associação de imagens. Conforme escreveu Pierre Reverdy, a imagem poética “não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá” (in PIVA, 2005: 150-51). Esta ideia, que é central no surrealismo e também no futurismo – Marinetti afirmou que “a analogia é nada mais do que o amor profundo que associa coisas distantes, aparentemente diversas e hostis” – (PERLOFF, 1993: 117) deriva do Maneirismo e do Barroco, como bem observou Gustav Hocke em seu livro Homo ludens. A lírica transtornada de Herberto Helder pertence a essa estranha família composta de artistas e poetas para quem “o que importa não é a representação da realidade, mas sim a criação de uma realidade nova que se produz através de uma transfiguração dos objetos, da perda de seu sentido usual”, (Leal, 2009). É a partir destes vetores conceituais que iremos agora comentar o poema Lugar, de Herberto Helder.

(CONTINUA)

domingo, 24 de julho de 2011



CÃNONE E ANTICÂNONE: HERBERTO HELDER (I)



A palavra lugar, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, deriva do latim locale e significa, entre outras acepções: “1. Espaço ocupado; sítio. 2. Espaço. 3. Sítio ou ponto referido a um fato. 4. Espaço próprio para determinado fim. 5. Ponto de observação, posição, posto. 6. Esfera, roda, ambiente.” (HOLLANDA, 1986: 1051). O poema Lugar, de Herberto Helder, incluído no livro de mesmo título publicado em 1962, anula qualquer delimitação de território, numa aparente rarefação do sentido referencial: não existe aqui nenhuma indicação geográfica ou temporal, próprias da representação mimética. O espaço do poema é o próprio poema, seu tempo é o da recitação ou leitura silenciosa e as ações desencadeadas nesta longa composição, dividida em sete partes, são os constantes deslocamentos de sentido das palavras, que se aproximam de uma voluntária abstração semântica: o poema é arquitetado como se fosse uma obra plástica, em que importam mais a escolha das cores, linhas, volumes e planos do que a descrição figurativa. O principal recurso usado por Helder para atingir esse grau de indeterminação na escritura é o esvaziamento semântico, que o próprio autor assim descreve na prosa narrativa curta intitulada O Estilo, que integra o volume Os passos em volta:

Às vezes, uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já não significa. É um modo de alcançar o estilo. (HELDER, 2005: 13).

A primeira parte do poema, que começa com o verso “Uma noite encontrei uma pedra”, já apresenta algumas das palavras fundamentais inseridas pelo autor ao longo da composição e que funcionam como os motivos condutores numa obra musical: noite, pedra, sino, árvore, sono, sangue, entre outras. Estas palavras, comuns ao repertório da poesia simbolista e mesmo romântica, são dispostas em diferentes combinações e permutações ao longo do texto: elas não têm sentido fixo, mas sugerem uma pluralidade de possíveis interpretações, numa espécie de mandala caleidoscópica que o poeta propõe a seus leitores. A palavra cidade, por exemplo, que aparece na seção IV do poema, em cada estrofe é acompanhada de outras unidades semânticas que contaminam, ampliam e alteram o seu significado, numa aparente livre associação de imagens e camadas referenciais que se aproximam de um deliberado caos: cidades cor de pérola, cidades absolutas, cidades esquecidas, cidades femininas, cidades doces, cidade voltada para dentro e outras variações que atravessam o poema, em “movimentos de repetição e deslocamento (que) delimitam uma zona ou fronteira simbólica que nos permite restabelecer, ainda que provisoriamente, uma nova ordem do mundo”, nas palavras de Lilian Jacoto, em ensaio publicado sobre A máquina lírica no livro Soldado ao laço das constelações: Herberto Helder (JACOTO, 2011: 62). Ou seja: as palavras fundamentais, na poesia de Helder, criam um novo lugar semântico, “rebatizando seus elementos e atribuindo-lhes novas e sempre outras funções.” (idem).

A combinação e permutação de elementos, assim como a criação de novos conteúdos ou imagens do mundo, são operações de uma lógica distinta daquela da invenção mimética tradicional, em que o discurso poético desenha cenários perceptíveis pelos cinco sentidos: na poesia de Helder vigora uma lei da metamorfose, que o próprio poeta cita em Teoria das cores, fábula breve que também integra o volume Os passos em volta. A história é bem conhecida: um pintor se propõe a retratar um peixe vermelho, mas, numa súbita violação das leis naturais, este se transforma num peixe negro, acontecimento que motiva o artista a refletir sobre o caráter mágico e mutável das coisas: “existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose” (HELDER, 2005: 21-22). Esta palavra é um talismã e uma das chaves de leitura essenciais para a compreensão de sua obra, oferecendo a possibilidade de aproximações com Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa (Ele Mesmo) e o Surrealismo, além das evidentes relações com o pensamento hermético. No caso específico de Helder, metamorfose é sinônimo de hibridismo, conforme diz Maria Estela Guedes: “É a transmutação do corpo em espelho, em metal ou em vegetal; é a transmutação da noite em matéria orgânica; é a transmutação do poema em animal” (GUEDES, 2011: 19). A palavra híbrido, recorda a autora, deriva do grego hybris, que significa “excesso, paixão, orgulho, transgressão dos limites, violação das leis naturais, prole resultante do cruzamento de indivíduos que pertencem a espécies diferentes” (idem, 15), e é exatamente o seu significado na biologia que nos parece mais pertinente para a discussão da poética helderiana, onde os “seres de linguagem (...) são criados por cruzamento de imagens oriundas de diversas espécies de real” (idem). A criação de monstros verbais, similares ao Minotauro, às sereias ou à Medusa, é inevitável nesta insólita engenharia genética, em que não há limites de ordem racional: o poeta trabalha com a “impossibilidade natural absoluta: nem a cobra é raiz nem a rosa tem guelras. Em termos de estética, estamos completamente fora do vínculo ao real próprio dos realismos” (idem, 17).


(CONTINUA)

sexta-feira, 22 de julho de 2011

GLAUCO MATTOSO NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO














O poeta Glauco Mattoso conversará com o público sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de poemas no dia 28 de julho (quinta-feira), das 19h30 às 21h, na edição de julho do Clube de Leitura de Poesia, que acontece no Restaurante do Centro Cultural São Paulo. Endereço: rua Vergueiro, 1.000, próximo à estação de metrô.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

GALERIA: JAN SAUDEK



UM POEMA INÉDITO DE SUSANNA BUSATO

DOS MEUS NAUFRÁGIOS ME VISTO

1.

Um corpete de bronze ergue
cada osso fraturado.
O veludo se integra aos vãos
e ao que ainda me arrisco.

A saia em cada prega
ousa mais atrevida
como espada prestes a
fundir-se em meio à carne
como doida despedida.

As meias se tecem rentes
são cristais de derme.
Se arrastam como ciprestes
devoram as dobras da pele
agarram e sobem na noite
a desejar o mais
que a consente.

Penetrar o labirinto e perder-se
permito. Nos meus naufrágios
me assisto.

2.

Um corpete de bronze tece
um veludo fraturado,
crista de ossos rente
à pele como dente
de desejo inaugurado.

Trama de pele e bronze
corpo de dentes ergue
à pele o desejo osso
só veludo quando sente.

E sente quando encorpa
sua sede pele adentro,
cria nos ossos a derme
cristal carne e desejo.

Mas a pele rompe fria
- osso em corpo -
exígua, exata,
de nenhuma se tinge

e naufraga.

domingo, 17 de julho de 2011

sexta-feira, 15 de julho de 2011

POETAS DE CABECEIRA: HERBERTO HELDER










Claudio Willer fará uma palestra sobre o poeta português Herberto Helder no Centro Cultural São Paulo, dentro do ciclo mensal Poetas de Cabeceira, no dia 20 de julho, quarta-feira, das 19h30 às 21h.

Centro Cultural São Paulo (Sala de Debates)

Rua Vergueiro, 1.000, próximo à estação de metrô.

Entrada franca. Não é necessário retirar ingressos.

Haverá intérprete de Libras.

MINHA ESTANTE















Soldado aos laços das constelações: Herberto Helder, coletânea de ensaios sobre o poeta português organizada pelos professores Lílian Jacoto (USP) e Luís Maffei (UFF), publicada pela Lumme Editor. A obra pode ser encomendada pelo e-mail vendas@lumeeditor.com

quarta-feira, 13 de julho de 2011

terça-feira, 12 de julho de 2011

POEMAS DE KHATCHIG DER GHOUGASSIAN


ESPERANDO O FILME

Decerto haverá uma outra noite
sem mim neste café
e a arquitetura da cidade
tomará forma em palavras diferentes.
O poema
não é mais que fadiga do tempo,
busca falha
de um desejo.
Eis porque
escrever
é a tristeza movente
de pessoas sentadas sós num café
que amam
esperar assim simplesmente
a última sessão.


NO ESPAÇO DAS PALAVRAS

As palavras nos aproximam,
nos ligam um ao outro,

de onde elas estão ausentes:
ouro, você sabe? é justamente lá
que deveríamos nos encontrar...
Mas nós nos ausentamos
perdidos nas palavras,
distanciados um do outro
só as palavras vão e vêm entre nós
fendendo às vezes o espaço por meio de seu som
suas imagens,
e sobretudo por um passado
que agora
- somente agora - é o nosso
palavras criando de novo
o espaço de nossa proximidade.

Tradução: Ana Maria Ramiro

domingo, 10 de julho de 2011

GALERIA: MURILO MENDES



UM POEMA DE MURILO MENDES

JANDIRA

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés,
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de Jandira.

E Jandira se casou
E seu corpo inaugurou uma vida nova.
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.

sábado, 9 de julho de 2011

POESIA DOS 4 CANTOS NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO








"Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa...".

Allen Ginsberg

Caros, no dia 13 de julho, quarta-feira, será realizado o evento Poesia dos Quatro Cantos (Noite Americana) com o poeta, ator e dramaturgo Mário Bortolotto (foto), que lerá poemas da Geração Beat, acompanhado pelos músicos Thiago Cerveira e Mauro Casellatto, que apresentarão peças de jazz.

Horário: das 20h30 às 22h.


Local: Centro Cultural São Paulo (Praça das Bibliotecas), Rua Vergueiro, n. 1.000, próximo à estação Vergueiro do metrô.

Entrada franca. Não é necessário retirar ingressos.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

GALERIA: ARTE CHINESA



OITO ELEGIAS CHINESAS, TRADUZIDAS POR CAMILO PESSANHA

SOBRE O TERRAÇO

Os antigos mortos, invisivelmente,
Vêm ainda ao seu terraço antigo...
Já sopra da nona lua o vento lamentoso.
De os três rios devem estar a chegar os gansos de arribação.

Cobrem nuvens a vastidão dos dois Kuangs.
Declina, pálido, o sol sobre Pang-Lai.
Desterrado da Pátria e sem notícias dela,
Para essas bandas volvo de contínuo os meus olhos.

Wang-Ting-Hsiang


À NOITE, NO PEGO-DRAGÃO

Donde vem este perfume de flores, embalsamando a noite puríssima?
Entre bouças e fragas, uma cabana de ola, perto da qual um arroio murmura...
Como de costume, o eremita parte ao surgir a Lua.
Em um covão do monte, um pássaro, poisado, ininterruptamente gorjeia.

Não lhe importa que as ervas, impregnadas do orvalho, lhe encharquem as alpercatas de junça.
As suas vestes de ligeiro cânhamo, soergue-as, enviesando, a brisa primaveril...
À borda da torrente, intento fazer versos ao viço das orquídeas.
Embargam-mo as saudades violentas, empolgando-me, do Kiang-Pei e do Kiang-Nan.

Wang-Shau-Jen

ASCENSÃO AO MIRADOURO DO KIANG

Este altíssimo torreão abandonado foi outrora célebre.
Aqui plantou seus estandartes, ornados de dragões, o fundador da dinastia Han.
Defendia-o, como inultrapassável fosso, a virtude do rei...
Eram supérfluos os circundantes canais.
Faziam-lhe guarda as próprias tribos bárbaras. De que serviriam muralhas de pedra?

Hoje, como então, a montanha esplende de régia majestade.
Rolam do Kiang as águas; e céu e terra confundem as suas vozes outonais.
Da comoção que sente, assomando no alto, quem poderia ordenar o poema?
Pavilhão novo, pavilhão novo! - de pungentes mágoas milenárias...

Wang-Shan-Jen

EM U-CH'ANG

Em Hsian-Hsian é já quase Outono,
Embora não caia ainda a folha nos jardins do Tung-Ting.
É noite, e da minha mansarda ouço chover,
Sozinho na cidade de U-Ch'ang.

E lembram-me a amoreira e a catalpa da casa paterna,
Ao sentir perto as águas do Kiang e do Han...
Vá entender alguém a grulhada dos gansos,
O festivo alvoroço com que emigram!

Hsii-Chên C'hing


EVOCAÇÕES DO PASSADO

Eis-me o forasteiro de Ing...Mas baldada romagem!
Emudeceram de Ing os afamados cânticos.
E alto o pavilhão para onde as beldades se retiraram.
A música da Torrente é a que ora modulam...

Os túmulos das princesas para que lado ficam?
Sobre Hsian-Hsiang pairam nuvens negras.
Deste abandono só eu penetro bem a essência.
Do Kiang à borda, desgarrado e triste.

Hsii-Chên C'hing


FANTASIA DA PRIMAVERA

Cai o sol no imenso horizonte, em flor, do Kiang.
Pára o viandante a olhar. A chuva, que do arvoredo ainda goteja, vai-lhe repassando a túnica...
Oh! se dos mil chorões, à volta das ruínas do palácio real de Ch'u,
As flores soltas me fizessem cortejo, à despedida, no regresso à Pátria.

Hsii-Chên C'hing

SOLEDADE

Deleita-me a solidão desta choupana...
Mas doí-me ao recordar vozes amigas.
Sim, geme o verdelhão - mas em país de exílio.
Conturba-me a cor da relva o coração, que remoça.

Desce o sol, em um poente de cirros amarelos.
Passam nuvens sobre o mar - que é mais ferrete.
Segunda Lua... . E, na algaravia dos grasnidos,
Oiço os gansos darem o alarme para o regresso.

Pien-Kung

QUEIXUMES DAS ESPOSAS DO HSIANG

Ilhéus do Norte de Hsiang , onde as orquídeas se ceifam!
Plainos do Sul do Lai, onde se talham as essências de preço!
As águas, puras, têm cromatismos de ágata,
Subtil a brisa vibrações de jada.

Sobe a névoa, entre as sombras do Tsang-u.
Baixa o sol entre as brumas do Ting-tang...
As penas dos bambus, quem é que as sabe?
Mas bem se lhes vêem os sinais das lágrimas.

Li-Mang-Iang

terça-feira, 5 de julho de 2011

GALERIA: CAMILO PESSANHA



POEMAS DE CAMILO PESSANHA

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme…

* * *

Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
- Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias -,
No limbo onde esperais a luz que vos batize,

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.

Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

* * *
Cristalizações salinas,
Mirrai na areia o plasma vivaz.
Não se desenvolvam as ptomaínas...
Que adocicado! Que obsessão de cheiro!
Putrescina: — Flor de lilás.
Cadaverina: — Branca flor do espinheiro!

* * *

BRANCO E VERMELHO

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.

Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser, suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!

Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distancia reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)

Na areia imensa e plana
Ao longe a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.

Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.

A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Palidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.

Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...

E ali fiquem serenos,
De costas e serenos.
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas.
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!

A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.

Ó morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...

(Poemas do livro Clepsidra, de Camilo Pessanha.)

segunda-feira, 4 de julho de 2011

GALERIA: OCTAVIO PAZ



UM POEMA DE OCTAVIO PAZ

PASSADO EM CLARO

(Fragmentos)

Ouvidos com a alma,
passos mentais mais que sombras,
sombras do pensamento mais que passos,
pelo caminho de ecos
que a memória inventa e apaga:
sem caminhar caminham
sobre este agora, ponte
estendida entre uma letra e outra.
Como chuvisco sobre brasas
dentro de mim os passos passam
rumo a lugares que se tornam ar.
Nomes: em uma pausa
desaparecem, entre duas palavras.
O sol caminha sobre os escombros
do que digo, o sol arrasa as paragens
confusamente, tênue

amanhecendo nesta página,
o sol abre minha fronte,
mirante para o abismo
dentro de mim.

Alheio-me de mim mesmo,
sigo os titubeios desta frase,
caminho de pedras e de cabras.
Relumbram as palavras na sombra.
E a negra maré das sílabas
cobre o papel e enterra
suas raízes de tinta
no subsolo da linguagem.
De minha fronte saio a um meio-dia
do tamanho do tempo.
O assalto de séculos do baniano
contra a vertical paciência da taipa
é menos longo que esta momentânea
bifurcação do pensamento
entre o pressentido e o sentido.
Nem lá nem aqui: por esse limite

de dúvida, transitado
só por miragens e vislumbres,
onde a linguagem se desdiz,
vou ao encontro de mim mesmo.
A hora é bola de cristal.
Entro em um pátio abandonado:
aparição de um freixo.
Verdes exclamações
do vento entre os ramos.
Do outro lado está o vazio.
Pátio inconcluso, ameaçado
pela escritura e suas incertezas.
Ando entre as imagens de um olho
desmemoriado. Sou uma de suas imagens.
O freixo, sinuosa chama líquida,
é um rumor que se levanta
até tornar-se torre falante.
Jardim já matagal: sua febre inventa bichos
que logo copiam as mitologias.
Tijolos, cal e tempo:
entre ser e não ser os pardos muros.
Infinitesimais prodígios em suas brechas:
o cogumelo duende, vegetal Mitridates,
a lagartixa e suas exalações.
Estou dentro do olho: o poço
onde desde o princípio um menino
está caindo, o poço onde conto
o que tardo a cair desde o princípio,
o poço da conta de meu conto
por onde sobe a água e baixa
minha sombra.

O pátio, o muro, o freixo, o poço
em uma claridade em forma de lagoa
se desvanecem. Cresce em suas margens
uma vegetação de transparências.
Rima feliz de montes e edifícios,
desdobra-se a paisagem no abstrato
espelho da arquitetura.
Apenas desenhada,

tipo de vírgula horizontal

entre o céu e a terra,
uma canoa solitária.
As ondas falam naua.
Um signo voador cruza as alturas.
Talvez seja uma data, conjunção de destinos:
o feixe de canas, prefiguração do braseiro.
O pedernal, a cruz, essas chaves de sangue
alguma vez abriram as portas da morte?
A luz poente se demora,
alça sobre o tapete simétricos incêndios,
torna chama quimérica
este volume alacreado que folheio
(estampas: os vulcões, os cúes e, estendido,
manto de plumas sobre a água,
Tenochtitlán todo empapado em sangue).
Os livros da estante já são brasas
que o sol atiça com suas mãos rubras.
O lápis rebela-se a seguir o ditado.
Na escritura que a nomeia
se eclipsa a lagoa.
Dobro a folha. Cochichos:
espiam-me entre as folhagens
das letras.

Um charco é minha memória.
Lodoso espelho: onde estive?
Sem piedade e sem cólera meus olhos
olham-me nos olhos
a partir das águas turvas desse charco
que convocam agora minhas palavras.
Não vejo com os olhos: as palavras
são meus olhos. Vivemos entre nomes;
o que não tem nome ainda
não existe: Adão de lodo,
não um boneco de barro, uma metáfora.
Ver o mundo é soletrá-lo.
Espelho de palavras: onde estive?
Minhas palavras me olham do charco
de minha memória. Brilham,
entre ramagens de reflexos,
nuvens paradas e borbulhas,
sobre um fundo do ocre ao abrasado,
as sílabas de água.
Ondulação de sombras, revérberos, ecos,
não escritura de signos: de rumores.
Meus olhos têm sede. O charco é senequista:
a água, embora potável, não se bebe: lê-se.
Ao sol do planalto evaporam-se os charcos.
Ficam um pó desleal
e uns quantos vestígios intestados.
Onde estive?

Estou onde estive:
entre os muros indecisos
do mesmo pátio de palavras.
Abd al-Rahman, Pompeu, Xicoténcatl,
batalha no Óxus ou na barda
com Ernesto e Guilherme. A mil folhas,
verde-negra escultura do murmúrio,
jaula do sol e a centelha
breve do colibri: a figueira primordial,
capela vegetal de rituais
polimorfos, diversos e perversos.
Revelações e abominações:
o corpo e suas linguagens
entretecidas, nó de fantasmas
apalpados pelo pensamento
e pelo tato dissipados,
argola do sangue, idéia fixa
em minha fronte cravada.
O desejo é senhor de espectros,
somos trepadeiras de ar
em árvores de vento,
manto de chamas inventado
e devorado pela chama.
A fenda do tronco:
sexo, selo, passagem serpentina
fechada ao sol e a meus olhares,
aberta às formigas.
A fenda foi pórtico
do além do visto e do pensado:
lá dentro são verdes as marés,
o sangue é verde, o fogo verde,
entre as ervas negras ardem estrelas verdes:
é a música verde dos élitros
na antiga noite da figueira;
- lá dentro são olhos as polpas dos dedos,
o tato olha, os olhares apalpam,
os olhos ouvem os aromas;
- lá dentro é fora,
é todas as partes e nenhuma parte,
as coisas são as mesmas e são outras,

encarcerado num icosaedro
há um inseto tecedor de música
e há outro inseto que destece
os silogismos que a aranha tece
suspensa pelos fios da lua;
- lá dentro o espaço
em uma mão aberta e uma fronte
que não pensa idéias mas formas
que respiram, caminham, falam, mudam
e silenciosamente se evaporam;
- lá dentro, país de entretecidos ecos,
despenha-se a luz, lenta cascata,
entre os lábios das brechas:
a luz é água; a água, tempo diáfano
onde os olhos lavam suas imagens;
- lá dentro os cabos do desejo
fingem eternidades de um segundo
que a mental corrente elétrica
acende, apaga, acende,
ressurreições chamejantes
do alfabeto calcinado;
- não há escola lá dentro,
sempre é o mesmo dia, a mesma noite sempre,
não inventaram o tempo ainda,
o sol não envelheceu,
esta neve é idêntica à relva,
sempre e nunca é o mesmo,
nunca choveu e chove sempre,
tudo está sendo e nunca foi,
povo sem nome das sensações,
nomes que buscam corpo,
ímpias transparências,
jaulas de claridade onde se anulam

a identidade entre suas semelhanças,
a diferença em suas contradições.
A figueira, suas falácias e sua sabedoria:
prodígios da terra
- fidedignos, pontuais, redundantes -
e a conversação com os espectros.
Aprendizagens com a figueira:
falar com vivos e com mortos.
Também comigo mesmo.

Tradução: Marcelo Tápia

domingo, 3 de julho de 2011

GALERIA: CLAUDIO WILLER



EVENTOS DE JULHO NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO


Krig-há bandolo: diálogos entre a literatura e os quadrinhos, debate com os escritores Nelson de Oliveira e Ademir Assunção e os quadrinhistas Arnaldo Branco e Gabriel Góes.

Dia 07, quinta-feira, das 20h às 21h30, na Praça das Bibliotecas.

Poesia dos Quatro Cantos: noite americana com o poeta, ator e dramaturgo Mário Bortolotto, que lerá poemas da Geração Beat, acompanhado pelos músicos Thiago Cerveira e Mauro Casellatto, que apresentarão peças de jazz.

Dia 13, quarta-feira, das 20h30 às 22h, na Praça das Bibliotecas.

Poetas de cabeceira: Claudio Willer fará uma palestra sobre o poeta português Herberto Helder, comentando a biografia do autor, sua época, características estéticas e, sobretudo, a sua experiência pessoal como leitor da poesia de Helder.

Dia 20, quarta-feira, das 19h30 às 21h, na Sala de Debates.

Haverá intérprete de Libras.

Clube de Leitura de Poesia: o poeta Glauco Mattoso conversará com o público sobre a sua carreira literária e fará uma leitura de seus poemas. Em seguida, o público será convidado a fazer perguntas ao poeta, para um bate-papo informal.

Dia 28, quinta-feira, das 19h30 às 21h, Restaurante CCSP.



Centro Cultural São Paulo: rua Vergueiro, n. 1.000, próximo à estação Vergueiro do metrô.