sábado, 31 de julho de 2010

quinta-feira, 29 de julho de 2010

GALERIA: CHEMA MADOZ (II)




SEBASTIÃO NUNES ESCREVE SOBRE O ROMANCEIRO DE DONA VIRGO

AUTOR EXPLORA OS LIMITES DA LINGUAGEM

A literatura de ficção do século 20 pode ser dividida, grosso modo, em dois grandes grupos de escritores: os contadores de história e os pesquisadores de linguagem. Claro que está longe de mim tentar estabelecer blocos monolíticos de autores de uma ou outra tendência. Temos dezenas de bons e ótimos prosadores transitando com a maior desenvoltura de um lado para o outro, aos saltos e cambalhotas. Talvez os maiores exemplos desses grupos hipotéticos sejam, de um lado, James Joyce e, do outro, Marcel Proust, Thomas Mann ou ainda Franz Kafka. Já nos exemplos fica clara a superioridade numérica dos contadores de história sobre os pesquisadores de linguagem. Também no Brasil a tendência joyceana sempre esteve em minoria, mesmo porque num país de poucos leitores há o esforço natural para atrai-los através de narrativas lineares e de mais fácil assimilação. Não foi, contudo, o que aconteceu na virada de século. Incrivelmente, há uma crescente efervescência de autores voltados para a construção (ou para a desconstrução) da linguagem – e o mais recente deles, e dos mais criativos, originais e instigantes, é Claudio Daniel, com seu Romanceiro de Dona Virgo. Poeta com três ótimos livros publicados, Claudio partiu para uma prosa radical, em que – paradoxalmente – usa como referência e suporte alguns dos principais clássicos da língua, tanto na biografia como na obra. De fato, dos seis textos que compõem o livro, quatro se estruturam em torno de Camões, Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa e Cruz e Sousa. Um outro toma como mote o romance entre George Sand e Chopin, enquanto o último retorna à época dos trovadores, para entremear à intrincada narrativa poemas em português arcaico, quando a língua se consolidava. Nesse nível de construção, em que a prosa ficcional é pretexto para a exploração ao máximo do potencial da língua e das estruturas narrativas, não se pode esquecer os que o antecederam entre nós, e cujos nomes só o valorizam, especialmente Guimarães Rosa, Haroldo de Campos e Paulo Leminski (via Catatau). É uma vertente riquíssima e da maior importância em nossa literatura. Ao lado de textos que se propõem mais narrativos, como o que conta uma hipotética aventura de Camões em Macau, no capítulo do mesmo título, o leitor vai encontrar textos de invenção radicalíssima, como Gavita, Gavita, em que Daniel mergulha na própria linguagem da loucura, numa construção densa e estranha, “entrecortada de pausas, silêncios e claridades súbitas”, com escreveu no posfácio Maria Esther Maciel. E também de textos em que, como destacou Sérgio Sant’Anna na orelha, “um jovem guerrilheiro, vestido de mulher, se refugia num mosteiro beneditino e vê Deus, e Ele é azul”, numa história que, apropriando-se de trechos de Gregório de Matos e do Padre Antônio Vieira, ecoa os momentos mais violentos da ditadura militar brasileira, séculos depois. O Romanceiro de Dona Virgo é um livro múltiplo e complexo. Desses que exigem tempo, argúcia e experiência na leitura da melhor literatura, e agora não apenas da ocidental, porque o romanceiro de Claudio Daniel nos remete a todos os tempos e a todos os povos, com sua multiplicidade de culturas e costumes, como se neste livro se reedificasse, mais uma vez, a Torre de Babel, em toda a sua extraordinária multiplicidade de linguagens.

(Resenha publicada em 2004 no jornal O Tempo, de Belo Horizonte.)

Em tempo: encontrei um pacote em casa com dez exemplares da primeira edição do Romanceiro. Se alguém estiver interessado em adquiri-lo, escreva para o meu e-mail, claudio.dan@gmail.com.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

GALERIA: CHEMA MADOZ (I)


FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (VI)

(Segunda Ária de Lúcia)

Tia Vânia cuidou de mim. Ela me ensinou a tocar piano e a preparar tortas de palmito, com vago aroma de desolação.

Não tive o gato siamês que pedi de aniversário, pois ela era alérgica a felinos, homens e outros animais.

Estudei biologia, química, geografia e fiz aulas de dança indiana. Gostava de fumar escondido com os meninos.

— Isso não é coisa de menina, falou-me certa vez a professora Maria da Graça.

Eu adorava fumar escondido. Um maço inteiro de Malrboro por dia, uau, cigarro após cigarro. Tossia que nem uma condenada.

Pouco depois, li o Ulisses de Joyce e beijei na boca pela primeira vez. Que nojo! Levei anos para me recuperar, no divã da dra. Elizabeth.

Os anos se passaram e não fui atriz em nenhum filme de Peter Greenaway. Também não fui cantora, videomaker ou webdesigner.

Tia Vânia insistiu para eu conseguir o diploma de secretária. “Isto é para o seu futuro”, ela dizia, com o olhar grave de um arquipélago.

Hoje, sou a boneca mecânica que ela sempre quis. Apodrecendo entre caramujos de plástico e escaravelhos de isopor.


* * *

(Terceira Ária de Lúcia)

Wolf, você sabe qual é o caminho do inferno?

Passar batom maison désespoir a cada manhã, calçar as botas de putinha yuppie e ir ao escritório, mascando o chiclete de menta.

Separar envelopes e holerites como quem disseca vértebras. Arquivar as tripas em pastas.

Atender o telefone com a vez melódica, cardíaca, de um manequim de loja de casacos.

Escrever relatórios como as fezes de uma lagartixa grávida. Engolir a saliva, em vez de dar uma cusparada.

Esconder os seios dos olhares magriços de fúmeos office-boys jamaicanos com corações e crânios tatuados nos antebraços.

Depois, almoçar na sonâmbula cripta nipônica peixes temperados e cenas lacrimais de videokê.

Cortar pedaços de salmão com o asco encurvado do coveiro. Beber com asco o vinho de arroz entre biombos de paisagem descorada.

Ouvir com asco gravatas cardíacas cacarejarem nádegas disformes, em ecos sombrios de grunhidos.

Baby, esses caras são retratos calvos de paletó e marcapasso, suores telúricos nas costas e voz de grampeador coagulado.

I’am lonely in London, London, is far away.

Somos uns fantasmas, e fantasmas não bebem coca-cola.

Baby, este é o meu pequeno círculo da insanidade. Este é o meu fado e minha saga, jornada de febre e muco.


* * *

Sinfonia pulmonar.

Fréderic sonha novamente em verdes partituras de escarro com a estranha irmã que ele chamava de Menina da Fronteira.

Recorda sua voz profunda de contralto. Seu amor pelos pássaros e clavicímbalos, seu temor aos lobos e trompetes.

Houve uma vez, em Varsóvia, uma feira circense de italianos. Depois vieram baionetas e a longa viagem no vagão de trem até Viena.

Por que soldados sempre degolam poetas, estátuas e pianistas?, ele pensou.

Houve a pensão onde ele conheceu o amor de uma cortesã. O mercador judeu que comprou seu relógio de ouro. A catedral neoclássica que inspirou certo prelúdio.

E houve Paris.

Com seus deuses de mármore e pálidas princesas que aplaudiam adocicadas melodias, sonhando com aventuras sob a lua muçulmana.

Com suas vielas escuras de operários maltrapilhos e procissões solenes de velas e de cruzes, panos vermelhos e incensórios.

Com suas fábricas de lágrimas e seus periódicos pontuais, onde colunistas de cavanhaque discorriam sobre o Palais Royal.

Algum dia, haverá ali uma matança, pensa o polonês, deitado na areia junto à sua dama, que apenas o contempla, com olhar doce, terrível, indefinido.

George chupa o pau de Fréderic.


* * *

(Quarta Ária de Lúcia)

Wolf, você já deve imaginar o final da história. Sim, já pensei em brincar de Sylvia Plath, mas não escrevi nenhum poema.

Cortar os cabelos e virar monja budista? Seria uma saída, se eu não fosse tão ninfomaníaca. Além disso, nunca fui muito boa em sânscrito.

Pelo amor de Deus, nem me fale em posar para a Playboy. Eu não teria como pagar os caras, e ainda não fiz lipoaspiração.

Fugir para a Austrália seria lindo, se não tivesse medo de viajar de avião. Wolf, desculpe, nunca fui boa humorista. Talvez só saiba chorar.

Não, não é verdade. Eu sei escrever. Talvez apenas isso tenha me ajudado a suportar essa rotina absurda, epilética, essa vida vazia.

Eu posso sonhar, criar histórias. Foi a Menina da Fronteira que me ensinou. Você também a conhece, não é?

Se não posso mudar a vida, posso escrevê-la do jeito que eu quiser. Tudo é escritura. Nada é mais real que a página de um livro.

Escrevendo-me, posso virar top model, receber a Palma de Ouro em Cannes ou ser a rainha da Inglaterra.

Ou ainda, ser a Dona Virgo das cantigas lusitanas e ter o meu próprio Romanceiro.

Nada disso, porém, seria convincente; estou presa, talvez, a certos princípios de fabulação.

Confesso, não sou muito moderna. Tá legal, sou meio século XIX. Afinal, ninguém é perfeito, não é?

Preferi escrever algo mais simples: retratar minha rotina de animal triste e vencido, mas com uma diferença: você.

Sim, Wolf, você é meu personagem.

Desculpe-me por não dizer isso antes, mas não fique triste. Vamos ficar juntos para sempre, eu prometo.

Sou uma moça romântica.

terça-feira, 27 de julho de 2010

GALERIA: ANÔNIMO


FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (V)

Mar nupcial de árvores e pianos, ninfa submerge na água, escreve mandalas de branca espuma na areia alucinada.

Meninos brincam. Bola vermelha avança no horizonte de pássaros e nuvens com formato de estranhos animais com chifres e corcovas.

A senhora obesa fecha o jornal após beber seu chá do Ceilão, abre as longas asas de harpia e voa num grito único, escuro.

Fréderic sorri com olhos de lua sanguínea.

A moça quase nua mergulha no esmeralda vivo das ondas como serpente do mar, seus braços dissolvem-se na água, os cabelos metálicos viram reflexo do sol e o corpo todo reconverte-se em verde céu.

O polonês tem medo do mar. Ele se afasta do sonoro pugilato das vagas que batem nas rochas com a ferocidade de um mamute.

Prefere pintar sóis de partituras com as mãos de esqueleto, dançar com os meninos na areia ou sonhar com música chinesa e otomanos.

Onde é possível divisar luzes mediterrâneas, perceber o azul que atravessa o verde como espátula e flagrar uns seios molhados.

Este é um quadro de Delacroix, ópera plástica com sopranos em nuances imprecisos e uma orquestra noturna de plantas marinhas.

A felicidade é uma vida medíocre, pensou.

Longe das gazetas e salões, dos cachimbos e monóculos em balcões de teatros apodrecidos, do abade insano e da condessa meretriz.

Longe do próprio vômito.

George emerge entre círculos concêntricos de espuma em uma concha de Botticelli e chama o polonês, que por fim adentra a água.

Súbito, ela afunda a cabeça risonha e brinca de afogar Fréderic, para depois salvá-lo com palavras de melodrama e teatro de bonecos.

O pálido músico contempla num segundo o estranho prelúdio em teclas brancas e negras sob o olhar cabalístico da Morte.

* * *

(Primeira Ária de Lúcia)

— Wolf, eu já te contei os meus pesadelos?

The lunatic is on the grass / The lunatic is on the grass / Remembering games and daisy chains and laughs / Got to keep the loonies on the path.

Eu vejo cenas de minha infância, como num cinema mental.

The lunatic is in the hall / The lunatic are in my hall / The paper holds their folded faces to the floor / And every day the paper boy brings more.

Vejo bonecas de pano sem cabeças. Vasos de violetas e avencas, no jardim. Cacos de vidro e um canário morto, na sala de jantar.

And if the dam breaks open many years too soon / And if there is no room upon the hill.

Ouço vozes nuas, das paredes da casa. Sinto o cheiro da compota de pêssego e do casaco de naftalina. Ouço aquela velha canção de ninar.

And if your head explodes with dark forbodings too / I’ll see you on the dark side of the moon.

A casa estava morrendo, e eu não sabia. Ela apodrecia aos poucos em sua lepra surda, solitária.

The lunatic is in my head / The lunatic is in my head / You raise the blade, you make the change / you re-arrange me ‘till I’m sane.

Eu fugia para o quintal, e brincava com meus jogos de crueldade. Decepava cabeças de lagartos, sorrindo para a líquida explosão verde.

You lock the door / And throw away the key / There’s someone in my head but it’s not me.

Fazia sopas de flores para as fadas, que nunca vieram para o jantar. Olhava o céu e sonhava com futuras tatuagens, uma para cada estrela.

And if the cloud bursts, thunder in your ear.

Gostava de correr na chuva, longe do cheiro de bebida, longe dos gritos amarelos. Um dia, mamãe não gritou mais.

You shout and no one seems to hear.

Eu queria ser estrela de cinema, sabia? Usar aqueles vestidos apertados, colecionar carros de luxo, ter uns olhos verdes de enfeitiçar.

And if the band your’e in starts playing differents tunes.

Depois que papai fugiu, nunca mais perdi um filme de Nastassia Kinski.

I’ll see you on the dark side of the moon.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

GALERIA: ELLEN VON UNWERTH (II)


FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (IV)

(Ária de Wolfram)

Tudo é um livro de viagens.

Com fotografias de meninos e cavalos-marinhos, pássaros e pianos, garrafas de cerveja e pincéis.

Sempre é possível, no pequeno barracão de feira, brincar de marinheiro e esgrimista.

Tatuar o torso da formiga ou masturbar-se em jornais velhos.

Assobiar outro noturno de Chopin. Incendiar uma lágrima.

Jardins e camaleões, pérolas e madrepérolas, tudo são palavras secretas. Vivemos na encantação.

Somos todos peles-vermelhas, girafas sonâmbulas, relógios mecânicos, vagões de metrô.

Quando eu era adolescente, tracei com o canivete círculos na face. O meu nome então era “Eu Sou o Enforcado”.

Usava brincos de ouro nas orelhas e um lenço vermelho sobre a testa. Gostava de calças velhas, blusões de couro e pesados coturnos.

Amava fantasiar-me de cigano, bucaneiro ou tuaregue. Papai não gostava. Implicava com os meus disfarces.

Com o tempo, cansei de imitar esqueletos e motociclistas. Quis ser paisagens. Fiz-me deserto e iceberg, aurora boreal e piscina selvagem.

Certa vez, pintei o rosto de azul e raspei as sobrancelhas. Queria me vestir de “O Mais Profundo Céu”. Papai não gostou nem um pouco.

Ele, que era um diploma afogado em uísque com sorriso de impecável lagartixa e um relógio de pulso derretido dentro do crânio.

Gárgula com frio suor de réptil esmeraldino, papai invocou desolados cenários bíblicos, a foto de mamãe amarelada na gaveta fúnebre.

Ouvi sua voz de tenor enlouquecido, voz de galo azul e alvorada, e senti o peso de sua pata de urso em minhas costas de galápago.

Depois, o telefone trouxe o carro que me levou a um lugar branco com flores do campo, cheiro de iodo e novelas de Franz Kafka.

Fui levado a um quarto escuro onde caras fodidos como lutadores de jiu-jítsu me espetaram com seringas e alfinetes de cenobita.

Eles queriam que eu fosse um roteiro previsível de melodrama, com sorriso de plástico e girassol enfiado na lapela do paletó sombrio.

Sim, eles eram nigromantes e queriam transmutar-me em orquídea, em peixe ornamental de restaurante japonês com afiladas barbatanas.

Eles me trancaram na jaula de um navio holandês no mar imóvel de uma noite africana.

Tatuaram meus olhos com escunas e cetáceos e ataram meus punhos com as tripas de um leão.

Fumaram havanas e apagaram os tocos em meu tronco, incêndio de pequenos sóis, inscrições nas corcovas do camelo.

Unhas manchadas de preto, boca lacerada e tez amarela de defunto, juntei meus ossos e nervos e costurei com a pele da raposa.

Dor metalizada em touro, setas cravadas nas costas, escavei o chão com as patas e o focinho, híbrido animal de pequenos olhos vermelhos.

Assim o tempo vertical de um verde escuro, sinistra arquitetura de braços fluidos que cresciam nos lençóis e agarravam os meus pés.

Vozes ruivas de esfinges e medusas me curravam com cápsulas e haldol, eu era o zumbi da orquestra noturna de espectros e mongóis.

Urrava o azul de minha boca, riscava os pulsos com lascas de vidro e arranhava as paredes do crânio em formol.

Então, Ela, a Menina da Fronteira, sorriu para mim com o desenho de figuras espiraladas em seus lábios, e ouvi sua voz de taumaturga.

Havia uma porta atrás do espelho, com um corredor de mãos que puxavam meus cabelos. Segurei firme a ventosa e bebi a última gota.

Conversei com os mortos, como se fossem vivos, e aceitei sua versão dos fatos. Fiz-me coisa entre coisas, sombra entre muitas sombras.

Menti acreditar no que mentiam. Fingi ser um boneco mecânico, até ser declarado são. Agora, eles não podem mais me machucar.

Certo dia, acordei na manhã esquálida, escovei os cabelos molhados e vesti a camisa dos humanos.

Ela, a Menina da Fronteira, ainda estava sorrindo para mim quando papai assinou a folha do cheque antes de levar-me de volta para casa.

Cinco anos se passaram, levei comigo algumas cicatrizes e o Livro de Sonhos com as páginas em espiral borrifadas de estrelas.

— Estou tentando, estou tentando entender, ela respondeu com a pele e a voz, em timbre vegetal, escuro, quase mudo.

domingo, 25 de julho de 2010

GALERIA: ELLEN VON UNWERTH


FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (III)

Cinema e bombons de licor, olhos pousados em seios, a vontade de ser pele-vermelha e a boca de Lúcia em seus dedos.

Acendem-se as luzes.

Pernas e cortinas se fecham, bocas mudas ergueram-se das poltronas e olham para os cartazes de um novo filme chinês.

Depois, cabelos e corpos ficam ensopados na corrida de touros até o mais próximo ponto de táxi.


* **

A noite tem peitos de esfinge, olhos de coruja, patas de macaco e asas de morcego.

Música de Wagner no CD. O canto de Brunhilde, na voz de Birgit Nilsson, no final do III ato de Siegfried.

A moça tira a lingerie e o céu joga flores brancas, azuis e amarelas nos braços e pernas que se misturam ao som de metais e violoncelos.


* * *

No dia seguinte.

Chá de cidreira matinal, pão preto com ricota, incenso e água para o Buda, regar o canteiro de flores no jardim.

Máscara balinesa na parede, um espelho oval de lupanar, cheiro de banho morno e o jornal espalhado no chão da sala, entre cartas de tarô.

Wolfram ligou a tevê para saber do atentado ao metrô de Paris. Onze mortos, dezenas de feridos, luzes de sirenes, jatos de água, policiais.

Fotógrafos e jornalistas estrangeiros acorrem como formigas, e as valquírias de Alá conduzem o mujahedim ao paraíso do Profeta.

Ele passava geléia em outra fatia de pão e dizia que vão tomar as cidades européias, todos vão ter de ler o Alcorão, jejuar no Ramadã.

Depois de Londres e Moscou, será a vez de Nova York, homens barbudos e mulheres vestindo a burga em frente ao Empire State.

Ela diz, não brinque, há cadáveres nas ruas, entre solidéus, katyushas e minaretes de mesquitas, quando o filme louco vai terminar?

Ele tocou mais uma vez a valsa da loucura, todos são insanos, malucos, kamikases, clones de Ariel Sharon e de George Bush.

Que nunca leram Whitman deitados na grama.

Nem contaram os dedos de suas namoradas ou recitaram fábulas persas para as nuvens, antes de outro ataque de furor genocida.

Baby, eles nunca ouviram Charlie Parker nem recitaram o mantra de Amitaba, pois estavam ocupados matando afegãos nos hospitais.

São eles, os gárgulas da guerra, os gigolôs de uma velha cadela banguela, uma civilização de remendos, uma marafona dos infernos.

Então, ela diz, tá, vem amor, desligue um pouco o Estúdio Realidade, vamos fazer um novo concurso de sonhos, eu deixo você ganhar.

Ela acende outro cigarro e diz, vem, não cansei de ouvir tuas alucinações.

Uma noite, você é o boxeador nigeriano com dentes de ouro.

Outra noite, é o gângster de Pacino com a metralhadora Thompson .45, ou é eleito Papa no Vaticano e canoniza Muamar Khadaffi.

Hoje, quem sabe, será o eunuco do serralho de um turco, com peito de bronze azeviche e uma longa faixa amarela contornando a cintura.

Eu sou apenas a loura com olhar monótono de couve-flor inglesa que atende telefonemas e entrega relatórios ao senhor diretor.

À noite, brinco de puta, e você usa minhas calcinhas coloridas para estrangular os cãezinhos do tédio.

Já de manhã, coloco água-de-colônia, salto alto e volto à rotina de abrir e-mails, receber malotes do correio e conferir falcatruas fiscais.

Wolf, eu não sei o que são os portais-de-pérola.

Sei apenas que um elevador espelhado é a ponte de arco-íris entre a recepção de voz titânica e a sala em carpete marrom do 7º andar.

Digo bom-dia com o olhar opaco da tarântula, sento em minha mesa e ligo o computador, discretíssima como um jornal dobrado.

Depois, abaixo a cabeça de alfinete e cravo as unhas no teclado, ao meio-dia telefono para a junky food e música de girassóis amassados.

À noite, chego em casa como um telegrama. Coloco tofu e sopa de ervilhas na tigela, ouço jazz de Charles Mingus e brinco de me matar.

Antes de beber o coquetel de creolina, pego o controle remoto, ligo a TV, deito nua na cama e ensino o gato a me chamar de Lady Solidão.

Tenho uma lata de salsichas em conserva na geladeira. Você quer?

sexta-feira, 23 de julho de 2010

GALERIA: JOEL PETER WITKIN (VI)


FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (II)

Wolfram pensou no galho florido do ipê no verão, numa manhã sanguínea, na deusa seminua saindo da piscina com olhar celestial.

Porém, orange is the colour of darkness e ele tocou o velho saxofone no maldito antro yuppie, com a alma feito música líquida.

Vozes escuras, ruidosas, somavam-se ali aos odores de água-de-colônia, carneiro desossado e frango com especiarias.

A música nervosa mergulhava numa sequência de olhos vermelhos de lagartos, carecas lustrosas e decotes com enormes tetas brancas.

Bocas cegas dardejavam olhos mudos sobre copos de uísque e gravatas italianas, meias de seda e óculos comprados em Nova York.

O famoso colunista, em impecável terno sweed, discutia com o estagiário magrinho, que estudou na London School of Economics.

O albino obeso refletia na alta da taxa de juros, enquanto a gerente comercial bolinava o diretor financeiro, assobiando um samba-canção.

Impossível pensar em Giotto, aqui; nenhum Fra Angelico; caralho, nenhum Caravaggio entre pratos de arroz com creme de espinafre.

(Temperature’s rising, fever is high, can’t see no future, can’t see no sky.)

Aqui é a prisão da Mente, ele pensou; impossível a poesia neste labirinto de autômatos cocainados, inferno de janelas com vidro fumê.

(My feet are so heavy, so is my head, I wish I was a baby, I wish I was dead.)

Após o último solo de sax, tomou uma dose de sputinik e avançou pela noite vaporosa, rumo à estação do metrô.

(Oh I’ll be a good boy, please make me well, I promise you anything, get me out of this hell).


* * *

No vagão impressionista, rostos da floresta vertical entram com olhos noturnos, pernas de atrizes e guias de televisão.

A mulher morena que vende doces é uma bola quadrada que canta sambas com a orla marítima da boca.

O pescoço de esquimó com gravata amarela afoga o pássaro do medo em suas axilas, embrulhado no pedaço de jornal.

Uma estrela invisível resolve transformar-se em martelo.

O rapaz paranóico grita que não é uma montanha e revira as páginas da revista feminina, lambendo fotos de árvores-anãs japonesas.

Estação Ana Rosa.

O garoto suicida de barracões em lonjuras de azul e cinza toca no walk man aquela canção de navalhas que ele abomina.

Estação Paraíso.

Wolfram desceu como um negro marroquino de seu camelo e foi comprar cogumelos e tofu na última mercearia sayonará iluminada.

Depois, subiu os Alpes até o apartamento da rua Suíça para deitar nos lençóis de relógio mecânico de sua musa workaholic.

Com uma cara fodida de quem viu helicópteros cuspindo rajadas de metralhadora na selva colombiana.

— Seu Lobo Mau, você não tem nenhum romantismo, dizia Lúcia.

— Não me envia flores, não me dá bichos de pelúcia nem diz que me ama, enquanto conta os dedos dos meus pés.

— É, ele respondeu, sonhando com o tapete mágico de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa.

A manhã seguinte trouxe uma orquestra de carícias.

Depois, os dois foram ao parque de mãos dadas, pierrot dark & miss colombina prêt-a-porter.
* * *
Parque Lezama.

Trilhas de formigas nos canteiros de azaléias, violetas e jasmins. Sinfonia de barro, pedras e gravetos.

Peixes de vidro, espelhinhos, miçangas cor de água; fósseis de algas, lascas de topázios, cacos de garrafa, em paleta de matizes.

Areia sobre areia, em camadas de cor, e a somatória de incenso em espirais, água de rosas e cheiro de maconha.

Cavalos em relevo de cobre e ilhas sangradas a óleo entre palhaços que choram e a imagem da deusa africana.

Uma ânfora verte água para os cães que se banham com as meninas de olhar verde oxidado.

Som vago de pianos, reflexo de catedrais e os jaguares cegos do desejo.

Moleques mijam na estátua do poeta, e o rabino talmúdico pensa em pastéis de palmito fritos na hora.

A velha senhora pinta aquarelas de pardais, e dá uma gostosa risada ao perceber lábios e braços misturados na grama.

Nuvem-caracol anuncia a chuva que cai, transparente, invisível, como numa tela de Monet.

— Vamos almoçar?

Atrás da banca de doces, sombras de pernas que correm, o maço de aspargos na calçada, alvoroço de olhos e o pisca-pisca de faróis.

Alguém assobia e joga no meio-fio o toco do cigarro.

* * *


No Restaurante Azul.

— Você reparou naquele garçom?, perguntou L.

— Sim. Ele se parece com um chafariz, com o bolor, um peixe, castiçais, tarântulas, um postigo ou uma chave inglesa, respondeu W.

(O diálogo foi ouvido por uma sopa de aspargos.)

quinta-feira, 22 de julho de 2010

GALERIA: JOEL PETER WITKIN (V)


FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (I)

O sol é música em Palma de Maiorca.

Fréderic sonha com a estranha irmã que lhe trazia doces e narcóticos.

Com a face terrível e angelical da mãe em Varsóvia, num domingo de canhões e baionetas.

George vela o sono do polonês e canta para ele uma pequena ária de concerto, com uma voz infinita de soprano e máquina de costura.

Depois, chama as crianças que faziam pouco das ondas, afundando as cabeças rubras na água como cavalos-do-mar.

Seremos felizes aqui, longe das loucuras de Paris, pensou, com um copo de vinho tinto e o leque de papel-da-china.

Estou aqui para amá-lo e cuidar de você, sou tua cadelinha de seda, teu guarda-chuva, teu pássaro de estimação.

Seremos felizes, longe de Monsieur Méprise e Madame Désespoir.

Viveremos juntos para sempre, eu para você, você para mim, mon petit dieu, mon joyau mélancolique.

As crianças correm de novo para o mar, onde encontram um gigante africano.

Elas olham fascinadas para o ancião, de longa barba e cabeleira, que diz palavras bizarras e agita colares de ossos e guizos.

George grita novamente, Maurice, Solange, voltem para cá, vamos para casa, está na hora do almoço, já é tarde, já é tarde.

Sim, mamãe, elas correm em direção ao guarda-sol, o negro continua as invocações e o sol permanece rútilo sobre as verdes águas espanholas.

Fréderic imagina o seu último recital para a Dama Sem Face.


* * *

Il faut être moderne, pensou Lúcia ao atender o celular, naquela manhã, vestida de tatuagens.

Wolfram dizia coisas obscenas a ela, nessa hora sonolenta em que os jasmins não são coelhos correndo em direção ao arco-íris.

A moça nua ria alto e seu riso misturava-se ao canto cego do jazz singer entre pilhas de revistas e ursinhos de pelúcia degolados.

Com uma touca nos cabelos, segurava o cigarro de canela, tragando devagar; depois, amassou a bituca no cinzeiro em forma de cisne.

Pegou o alicate e o vidro de esmalte para fazer as mãos e os pés, disse tchau amor e começou o jogo estratégico de lay out.

Ela, que sonhava com praias australianas, passou o batom devagar, nos lábios finíssimos, e depois pintou os biquinhos dos mamilos.

Então, escolheu a lingerie mais esperta e menos discreta, sentou-se para o longo ritual das meias e enfim vestiu o conjunto azul-turquesa.

Pronto, agora só faltava a escova nos cabelos e um rápido olhar no espelho antes de pegar o ônibus até a agência de publicidade.

No caminho, o chiclete com sabor de menta e um romance água-com-açúcar para passar o tempo.

Depois de alguns minutos, fechou o livro e olhou pela janela o muro com grafites de mísseis e caveiras, o cemitério, o oceano das ruas.

Pensava em Wolfram. Seu nome, sim, tem algo a ver com lobos, e foi tirado de uma ópera de Wagner.

Ela pensava no seu Lobo Mau como um sonho estranho.

O modo delicado como segurava suas mãos; o olhar de ave de rapina ou esgrimista.


A maneira como a despia, como se lidasse com pincéis e tinta plástica; como se bordasse figuras de triângulos e círculos coloridos.

— Vou ser uma Loba, uma Loba, Lua Negra de Lilith, ela pensava. Então, cuspiu o chiclete e desceu do ônibus, apressada.

Olhou para o relógio, oito horas, e correu como louca, de salto alto, sombrinha cor damasco e bolsa de couro na altura da cintura.

Até a Torre Norte do Paulista Work Station: para nova jornada de doze horas de telefonemas e reuniões com o senhor diretor.

Bater o cartão, retocar o batom, apertar o botão do décimo andar e abrir a porta de vidro da agência, onde alguém de óculos escuros e camisa amarela canta Lucy in the Sky with Diamonds.

(Fragmento inicial do conto Fantasmas não bebem coca-cola, de meu livro Romanceiro de Dona Virgo.)

quarta-feira, 21 de julho de 2010

GALERIA: JOEL PETER WITKIN (IV)


GAVITA, GAVITA (IV)

ela é tão bonita como um sarcófago etrusco, espada sarracena, bi-ombo japonês. seus pequenos pés, que bocas febris e apaixonadas / purificam, quentes, inflamadas / com o beijo dos adeuses soluçantes. a boca, viçosa, de perfume a lírio, / da límpida frescura da nevada, / boca de pompa grega, purpureada, / da majestade de um damasco assírio. ela foi a minha máscara. ela é o meu fetiche. serei então o teu lacaio, teu pajem e eunuco. renuncio a minha vaidade, narciso despido de narciso. sou agora teu mendigo; serei teu diabo, teu criado, teu cão.

gavita, gavita; minha fada e apsara; agora repousa, negra e magra, como galho seco; a pele tensa, de cervo degolado; os olhos turvos, de noite proscrita. estirada, como massa amorfa, ou bolo vegetal; os braços líquidos, de nereida; a voz desfeita, em careta torpe. esticada, como um animal ou coisa; atirada, não, colocada no caixão, digo, em seu leito de extintas exéquias. meninos, esta é sua mãe; vamos deixá-la em paz, é hora de dizer bonne nuit. venham fazer as orações, no oratório; em nome do pai, do filho, do espírito santo, amém. é preciso fechar bem as portas e janelas; reler um soneto de camões; beber o copo de leite; abocanhar o naco de pão; esquecer um verso no idioma páli; fazer-me treva; guardar o grito ancestral no livro de retratos.

ela está enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de taumaturgo. insano, febril, como quem fuma visões de navios e cetáceos, desenho portais de estranhos labirintos, dragões de esquecida tapeçaria, sinos de catedrais submersas. vejo a noite decapitada. ouço a chuva que cai, tênue como o som de um cravo metafísico, remota sonata para medo e medula, no patíbulo das horas. recordo seus olhos de cravos e cravinas. seus olhos de uma tarde em setembro, quando havia um céu de seda e o apito do trem na estrada de ferro. eu via suas mãos crescendo como ventosas, os lábios de estilete, o corpo querendo voar. meninos morenos corriam na estação, sombrinhas e sobretudos criavam asas, uniformes e tabaco gritavam em cinza, um topázio virava uma estrela. esta foi a tarde azul da metempsicose.

gavita, gavita. foi minha culpa, meu pecado, que invocou esse fado? terei perdido a luz de sua luz por uma absurda, obscura vaidade? eis o que os versos me deram, a ardente areia desolada, o rito absíntico do medo. abyssus abyssum invocat. soa a meia-noite; agora, devo cuidar dela. velar seu sono, na madrugada inquieta. abrir seus punhos mudos, para o repouso; repelir do leito a cabeça do lagarto; pendurar suas vestes, guardar caixinhas e estojos, enxugar sua face. oh, senhor dos caminhos que se bifurcam. penso, mais de uma vez, em fazer-me nada entre nadas; partir rumo à nebulosa, mas não posso. ela está enfeitiçada, e treme toda, torva e turva; é fera e fúria. sim, cuidarei dela, e sempre a amarei. um amor obsessivo e triste, amargo e amarelo.

terça-feira, 20 de julho de 2010

GALERIA: JOEL PETER WITKIN (III)


GAVITA, GAVITA (III)

para as estrelas de cristais gelados / as ânsias e os desejos vão subindo, / galgando azuis e siderais noivados, / de nuvens brancas a amplidão vestindo. mas agora soa apenas a sina da insânia, pretume, pedraria, pesadelo; desnudas deidades descartam os danados, riem dos duendes da demência. (sozinho,) (no rito) (intenso) (da nevrose,) (junto) (minhas cinzas) (no místico) (cinerário,) (ao som) (de brahmânicos) (sonidos.) (shiva,) (shiva) (nataraja,) (onde,) (em que) (lua) (ou pétala) (ofendi) (a memória) (de um deus?). (senhor) (dos dançarinos,) (quando,) (em que era) (noturna) (de infortúnios) (cometi) (os mais terríveis) (enganos?) (estas) (são) (as mãos) (de um) (criminoso,) (turco) (ou judeu.) (apedrejai-me,) (sim,) (apedrejai-me,) (para abreviar) (a minha) (longa) (miséria.)

(vítor,) (houve uma ilha) (em que os homens) (e as mulheres) (andavam nus,) (e as árvores) (geravam) (pomos) (de ouro.) (filetes de água) (escorriam) (pelo verde) (limoso) (das rochas.) (o sol) (de bronze) (festejava) (os ritos) (da primavera). (monolitos) (decorados) (com coroas) (de flores) (pontiagudas.) (oferecia-se) (aos deuses) (música) (de tambores) (e frutas) (saborosas.) (tudo era calma,) (beleza) (e languidez.) (tudo era dança, dança, dança.) (oh senhor) (dos rios) (que se encontram,) (em que distante) (esfera) (perdi) (a minha vida?)

está enfeitiçada, sim, enfeitiçada, triste espectro que vomita estrelas. cega e surda, não escuta clamores; ordena traições e incestos; sorri dos servos fenícios degolados. crianças, esta ainda é a sua mãe. venham. vamos conversar. o nilo banha o egito, terra de escribas e papiros. o sena flui em paris, onde os poetas são jovens tuberculosos. o tâmisa tem o fog londrino como cenário, e abriga as ossadas de um famoso maníaco. o ganges nasce dos pés de lótus de krishna. é preciso lembrar das savanas e das estepes. das matas tropicais e dos desertos. dos míticos vulcões e das geleiras. é preciso conhecer o mundo.

(eu quero sair do mundo.) (habitar outros pórticos.) (aprender) (idiomas) (sem vogais.) (há uma estrela) (de musicais) (estatuarias.) (há um espelho) (que reflete) (apenas) (minaretes) (de mesquitas.) (há uma moeda) (que mesmeriza) (tenores) (e contraltos.) (há uma lesma) (ou plasma) (que abraça) (os meninos,) (sorrindo) (truculenta,) (brutal,) (um riso) (azul) (de agonia.) (certa vez) (sonhei) (um livro) (infinito.) (suas paginas) (eram translúcidas) (como um espelho.) (as palavras) (brotavam) (como gotas) (de chuva) (borradas,) (sangradas) (no vidro) (do papel;) (as letras) (eram arcanjos) (desnudos,) (que cantavam) (em timbre) (agudo,) (numa) (voz) (escura,) (quase) (silêncio.) (eu sou) (talvez) (esse livro.)

gavita, gavita. reclinada em seda e linho, lua minguante, no entressonho. seus caninos nivosos, torneados, como jóias de marfim. suas palmas, de rosácea; os clarões das unhas, e os olhos, corolas de hibisco. ela amava as valsas ingênuas, os realejos e tristes ametistas; o chá servido em baixela; o sabor do vinho branco; passear de braços dados, no largo do coreto. súbito, cai uma flor amarela, no tanque de água; ela sorri, e recorda quando a abracei, no jardim dos moura schiavo, lembra-se do que eu disse em seu ouvido, você é só encanto, encantamento, my love is as a fever, longing still. ela coloca meus dedos em sua boca e diz que eu tenho o olhar cigano de um nômade estrangeiro; e acaricia meus cabelos com os dedos finos, suaves, tão suaves. mas isso foi em outra aurora; agora apenas gira, desorientada, sem rumo nem prumo, sem ver-me ou ouvir-me, dolente e demente, enfeitiçada.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

GALERIA: JOEL PETER WITKIN (II)


GAVITA, GAVITA (II)

(na mocidade,) (tomei cerveja) (com vadios,) (provei do tabaco) (e do presunto tostado;) (soube de vênus) (com atrizes) (de má vida.) (se sonhei) (com o sublime?) (sim,) (foi) (numa festa) (de coxos.) (sou um porco,) (como todos) (os homens) (são porcos;) (injuriei,) (conheci) (o escarro,) (o tabefe.) (porque sei,) (sou duende;) (vejam) (minhas unhas;) (sou inferior,) (como um pedaço) (de ferro;) (um saco) (de farelo;) (migalhas) (de ração.) (por que li) (o teu livro,) (charles baudelaire?) (acreditei-me um deus.)

está enfeitiçada, pobre leoa devassa; onde estão teus filhotes? devo banhá-la, com a água que eu mesmo fervi. ergo seu braço, para a assepsia; depois outro, e as pernas, o pescoço, as nádegas, sem nenhum erotismo: como se prepara um morto para o caixão. vesti-la, peça por peça, com as cores discretas da pobreza. assobiar talvez uma valsa, um minueto, para dar requinte a nossa sopa. por fim, velar o sono da vestal, para só depois escrever os versos que ninguém escreveu jamais. torva, febril, torcicolosamente, / numa espiral de elétricos volteios, / na cabeça, nos olhos e nos seios / fluíam-lhe os venenos da serpente.

(arquivista, sim,) (da estrada) (de ferro,) (ninho) (de covas) (e coveiros;) (onde) (sou corvo) (entre corvos,) (negro) (entre negros,) (porque os versos) (não compram pão.) (recolher as sobras,) (para o azeite) (e as verduras.) (desviar do cuspe;) (oferecer a outra mão.) (exilado) (de mim,) (despido) (de qualquer) (delicadeza) (sou coisa) (entre coisas.) (vítor,) (o que) (fazer,) (sozinho,) (em terra desolada?)

(houve) (um tempo) (em paris) (em que fui) (o rei) (do haxixe.) (todas) (as moças) (amavam) (minha face) (de príncipe) (etíope,) (atlante) (ou cenobita.) (eu usava) (uma gravata) (vermelha,) (flor) (de cardo) (na lapela) (e bigodes) (espessos) (de mongol.) (é tão distinto) (ser) (um poeta) (maldito.) (meus versos) (encantavam) (insólitas) (platéias) (ao som) (monótono) (do piano) (estrangulado.) (alguém) (de suíças) (platinadas) (desenhava) (haréns) (de divas) (marroquinas.) (um outro) (de denso) (cavanhaque) (e nariz) (encurvado) (discutia) (platão) (e plotino.) (mulheres) (de seios) (rosados) (entoavam) (árias) (de concerto.) (havia) (pratos) (refinados) (de atum) (e salmão,) (garrafas) (de vinho) (espanhol) (e cheiro) (forte) (de fumo) (africano.) (eu era) (o rei) (do haxixe,) (até) (certo dia,) (quando) (fui surrado,) (como) (um) (escravo,) (cuspido) (e) (atirado) (para fora) (dos salões,) (como) (um corcunda,) (leproso,) (bufão.) (senhores,) (vejam,) (ali) (vai,) (célere,) (espavorido,) (o) (macaco) (cantante.)

gavita, gavita. sim, está enfeitiçada, e fala ganidos. ela, minha bela, dona e dânae, minha flor amarela, meu bicho-da-seda, minha floresta. eu sou o teu dervixe, tua chuva de ouro, teu apache, teu urso polar. vem, deusa de tetas verdes, vem aos meus braços, como no tempo em que te conheci, na terra do gelo. você me dizia de países distantes, em que são servidos licores de pétalas de rosa. onde há carros floridos movidos pela mente, e macacos que entoam devotadas preces. eu enlaçava tua cintura delgada, e recitava o mantra dos jogos nupciais.

domingo, 18 de julho de 2010

GALERIA: JOEL PETER WITKIN (I)




GAVITA, GAVITA (I)

escuro, escuro como um uivo — som de sombra — esquálido e fecal — voz miúda, no espaço espesso. gestos surdos, de pele tensionada — mãos fluidas que tateiam o ar. sim, está enfeitiçada. ginga, negra e cega, em vôo tosco. vibra o torso, em vaivém, nas pontas dos pés. ginga e gira, com serpentes nos braços, e treme toda, torva e turva. não tem unhas, só garras; nem lábios, apenas gritos mudos. ela expande os passos, sem volúpia ou cisma, e s’incandesce, crestando o solo. é toda fera e fúria. está enfeitiçada, e me apavora. eu sorvo sua treva, e afundo em visões de salamandra. visitei as páginas de um livro de magia, e invoquei as figuras retorcidas da insânia: vêm, astaroth, asmodeus, sintam a carne que ofereço a seus caninos.

(eu sabia os nomes das flores, quando menino, das estrelas e insetos;) (juntava lagartas numa caixa de sândalo) (e rezava pelas almas das princesas suicidadas.) (um albino ensinava-me latim) (e apertava fortemente meus testículos.) (laos deo, laos deo.) (citações de cícero e da guerra da gália) (até soar a sineta para o desjejum.) (eu gostava dos turíbulos e ostensórios,) (dos saltérios e vitrais) (em que o filho do ho-mem) (sangrava por nossas culpas.) (excitava-me com sua dor.) (amava ícones mal pintados,) (palavras arcanas,) (música de violoncelo) (e sonhava ser marinheiro) (ou alcoólatra.) (certo dia, fugi.) (oh estações, oh castelos.) (açoitei a delicadeza,) (fiz-me barro, besta, bruto;) (um selvagem, sim, selvagem,) (e toquei tambor) (na noite do sabá.)

(minha mãe tinha seios brancos) (e voz branca de medievo místico.) (ela foi a lua cheia,) (angélica e nivosa,) (oh monja da cela constelada.) (meu pai foi um rude fazendeiro,) (igualmente branco,) (cujo olhar tinha odor de antigas armaduras.) (recordo seu rosto de falcão,) (as pequenas mãos trigueiras,) (a voz pesada, de bacamarte.) (eles eram de diversa estirpe,) (mas eu os amei,) (em minha estranha epiderme,) (na nostalgia de outro reino,) (que não sei.) (dizem os juristas) (que no céu) (todos são brancos,) (como as velas dos santos,) (o linho,) (o algodão.) (é verdade que sou um deslocado,) (desbocado,) (excêntrica bizarria,) (rosa cúbica, talvez.) (vejam, aqui está) (o negrinho) (que fala francês,) (membro de uma raça impura,) (turba de pobres diabos,) (ratos depenados,) (pretos amaldiçoados.) (é verdade,) (confesso aos senhores,) (a minha escurez,) (mas guardo comigo) (a música das esferas.)

está enfeitiçada, e canta ladainhas. em nervosa mímica de punhos, move-se como a naja em sua caverna, o peito magro ornado com colares de crânios, os cabelos azuis cobertos de cinzas. ela dança, dança sobre o meu ventre, agitando as armas de suas múltiplas mãos, e beija-me a boca com os acres perfumes do crematório. delírio contorcido, convulsivo / de felinas serpentes, / no silamento e no mover lascivo / das caudas e dos dentes. (não há qualquer caminho) (ou via ideal) (com trigais e monjolos,) (apenas a rua) (tortuosa do grito,) (a vereda) (fantástica) (do absinto.)

(fui o ponto) (dos mais curiosos) (espetáculos,) (cedendo palavras) (aos atores no palco;) (e emprestei silêncio) (a minhas próprias comédias.) (sou talvez essa loucura geométrica,) (nos porões de um teatro abolido.) (mancha de tinta) (no final de cada linha,) (sem dimensões,) (mínima esfera.) (uma pausa entre vozes,) (lugar indefinido,) (porção menor de um plano,) (sinal que abrevia os vocábulos.) numa evaporação de branca espuma / vão diluindo-se as perspectivas claras... / com brilhos crus e fúlgidos de tiaras / as estrelas apagam-se uma a uma.
(Fragmento inicial do conto Gavita, Gavita, de meu livro Romanceiro de Dona Virgo, publicado em 2004 pela editora Lamparina, do Rio de Janeiro.)

sábado, 17 de julho de 2010

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS (I)







Parei de fumar há um ano e meio. Confesso que não sinto nenhuma vontade de voltar a acender um cigarro. Nem vontade física, nem mental. Não parei de fumar pensando em ter vida longa, nem por convicção filosófica, religiosa ou por pressão social e publicitária, e não usei nenhuma medicação específica para combater o tabagismo: tive apenas uma forte motivação, a de obter uma condição física mais adequada à prática do Aikidô, arte marcial japonesa criada na primeira metade do século XX por Morihei Ueshiba a partir de antigas técnicas de combate dos samurais. Esta arte me fascina pela beleza, equilíbrio e harmonia dos movimentos, e sobretudo pelo trabalho de sensibilidade, percepção, intuição, consciência corporal e interação com os que estão à sua volta. O colega de treino, ou uke, não é visto como um adversário, mas como alguém que colabora com o seu aprendizado: o Aikidô é o caminho da união da sua energia com a do outro (Ai, unir; Ki, energia; Do, caminho), e desse trabalho advém a eficiência das técnicas (em resumo, usar a força do outro contra ele mesmo). Os verdadeiros inimigos, de acordo com a filosofia dessa arte, são internos: o ódio, a inveja, o ciúme, a cobiça, o medo e outros venenos mentais. Acredito que o Aikidô transcende a prática física, é no fundo um exercício mental e espiritual, que exige talvez o tempo de uma vida para termos um pequeno conhecimento de alguns de seus aspectos.

Já escrevi muitas vezes aqui sobre esta arte fascinante, que hoje me interessa muito mais do que a literatura ou qualquer outro assunto. Minha intenção inicial, ao escrever este relato, era a de falar sobre a “vida após o cigarro”, agora que completei 18 meses de abstinência. Sofri muito nos primeiros três ou quatro meses (o cigarro era um estímulo à minha própria criação literária, inclusive; mas acabei descobrindo que, mais do que inspirar, ele roubava tempo do trabalho criativo, já que eu era obrigado a parar de escrever, a intervalos de tempo, para ir fumar na área de serviço). Cortei o consumo de café, álcool, carnes temperadas, comidas picantes, qualquer coisa que pudesse “chamar” o cigarro, nos primeiros meses. Beber água ajuda? Sim, mas não muito; em meu caso, funcionou mais o truque mental de “mudar de assunto”: deu vontade de fumar? Ótimo, vamos mudar de assunto! Mente, que tal você pensar no segundo ato da ópera Tristão e Isolda, de Wagner? Ou então, naquele artigo sobre a técnica de fabricação tradicional da espada japonesa? Ou num poema de Hoelderlin que reli tantas vezes e nunca consegui entender? Parece algo ingênuo, mas funciona: a mente muda o objeto do pensamento, e em alguns minutos a vontade de fumar desaparece. O curioso é que, nesse tempo todo, por diversas vezes eu sonhei que estava fumando, e os sonhos nunca eram prazerosos: eles traziam um sentimento de culpa, do tipo: “Caralho! Você aguentou tanto tempo, tinha que ceder agora?”. Quando acordava, e sabia que foi apenas um sonho, eu me congratulava por ter mantido a força de vontade, e não recuado em meu propósito. O resultado de todo esse esforço, 18 meses depois? Sim, a respiração melhorou, a disposição física, o paladar, engordei 15 quilos e, o melhor de tudo: a dependência mental desapareceu. Esta, acredito, foi a maior conquista nessa batalha, após 30 anos de uso regular de tabaco.

P.S.: revendo filmes de Bergman e Godard, como Monika e o Desejo e Acossado, sou obrigado a admitir que o cigarro tem um indiscutível charme, criou uma estética própria e talvez uma mitologia.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

GALERIA: LEILA PUGNALONI (V)


DOIS POEMAS DE EMILIO ADOLPHO WESTPHALEN

UMA CABEÇA HUMANA VEM...

Uma cabeça humana vem lenta desde o esquecimento
Tenso se detém o ar
Vem lento o seu olhar
Um lírio traz a noite às costas
Como pesa o esquecimento
A noite é extensa
O lírio uma cabeça humana que sabe o amor
Mais débil não é senão a sombra
Os olhos não negam
O lírio é alto de antiga angústia
Sorriso de antiga angústia
Com díspar sinistro com ímpar
Teus lábios sabem desenhar uma estrela sem equívoco
Retornei dessa atarefada estância e de uma temerosa
Você não tem temor
É alta de várias angústias
Quase alcança o amor teu braço estendido
Eu tenho uma guitarra com sonho de vários séculos
Dor de mãos
Notas truncadas que se calavam podiam dar ao mundo o que faltava
Minha mão se alça mais para baixo
Colhe a última estrela de teu passo e teu silêncio
Nada igualava tua presença com um silêncio esquecido em tua cabeleira
Se falava nascia outro silêncio
Se calava o céu contestava
Fiz de mim uma lembrança de homem para ouvir-te
Recordo de muitos homens
Presença de fogo para ouvir-te
Detida a corrida
Atravessados os corpos e diminuídos
Porém está na glória da eterna noite
A chuva crescia até teus lábios
Não me digas em qual céu você tem a sua morada
Em qual esquecimento tua cabeça humana
Em qual amor meu amor de vários séculos
Conto a noite
Desta vez teus lábios iam com a música
Outra vez a música esqueceu os lábios
Ouve, se me esperasse detrás desse tempo
Quando não fogem os lírios
Nem pesa o corpo de uma garota sobre o relento das horas
Já me dói tua fadiga de não querer voltar
Você sabia que ia se ocultar o silêncio o temor o tempo teu corpo
Que ia ocultar teu corpo
Já não encontro tua lembrança
Outra noite sobe por teu silêncio
Nada para os olhos
Nada para as mãos
Nada para a dor
Nada para o amor
Por que haveria de te ocultar o silêncio
Por que haveria de te perder minhas mãos e meus olhos
Por que haveria de te perder meu amor e meu amor
Outra noite baixa por teu silêncio

UMA ÁRVORE SE ELEVA ATÉ O EXTREMO...

Uma árvore que se eleva até o extremo dos céus que a cobiçam
Golpeia com dispersa voz
A árvore contra o céu contra a árvore
É a chuva encerrada em tão pouco espaço
Golpeia contra a alma
Golpeia com os galhos a voz a dor
Não faças tal força para que te ouçam
Eu te cedo meus dedos meus galhos
Assim poderás raspar arranhar gritar e não apenas chorar
Golpear com a voz
Porém tal leveza me fere
Me desola Não te acreditava de tal ânimo
E que não cabes no espaço
Como golpeia a árvore a árvore a árvore
Água
E navegam os vermelhos galeões pela gota de água
Na gota de água soçobram
Acaso golpeia o tempo
Outra gota
Água
A garganta de fogo água água
Morto pelo fogo
As chamas gigantescas
Maravilhoso final
Morto sem água no fogo
A mão arranhava o fogo
A mão
E nada mais que sangue água
Não sangue fogo último fogo
Definitivo fogo
As gotas contam outra coisa
Ninguém conta as gotas
As lágrimas são de mais perfeita forma
Sua música mais suave apagada
O rosto de uma garota ilumina uma lágrima com sua luz suave apagada
A chuva chora em todo o espaço
Inunda a alma sua música
Golpeia outra ânima suas folhas
As gotas Os galhos
Chora a água
Conta-se o tempo com as gotas o tempo
A música desenha o céu
Caminha sobre a água a música
Golpeia A água
Já não tenho alma já não tenho galhos já não tenho água
Outra gota
Sim
Embora me afogue
Já não tenho alma
Nas gotas se afogaram os valentes cavaleiros
As formosas damas
Os valentes céus
As formosas almas
A música dos tropeços
Nada salva ao céu ou à alma
Nada salva a música a chuva
Já sabia que além do céu da música da chuva

Crescem os galhos
Além
Crescem as damas
As gotas já sabem caminhar
Golpeiam Já sabem falar
As gotas
A alma água falar água caminhar gotas damas galhos água
Outra música alba de água canta música água de alba
Outra gota outra folha
Cresce a árvore
Outra folha Já não cabe a alma na árvore na água
Já não cabe a água na alma no céu no canto na água
Outra alma
E nada de alma
Folhas gotas galhos almas
Água água água água
Morta pela água

Traduções: José Arnaldo Villar

quinta-feira, 15 de julho de 2010

GALERIA: LEILA PUGNALONI (IV)


DOIS POEMAS DE CÉSAR MORO


A ÁGUA LENTA O CAMINHO LENTO

A água lenta o caminho lento os acidentes lentos
Uma queda suspensa no ar o vento lento
O passo lento do tempo lento
A noite não termina e o amor se faz lentamente
As pernas se cruzam e se juntam lentas para deitar raízes
a cabeça cai os braços se levantam
O céu da cama a sombra cai lenta
teu corpo moreno como uma catarata cai lento
No abismo
Giramos lentamente pelo ar quente do quarto cálido
As borboletas noturnas parecem grandes carneiros
Agora seria fácil destroçarmo-nos lentamente
tua cabeça gira tuas pernas me envolvem
tuas axilas brilham na noite com todos teus pêlos
tuas pernas nuas
No ângulo preciso
O cheiro de tuas pernas
A lentidão da percepção
O álcool lentamente me deixa alto
O álcool que brota de teus olhos e que mais tarde
Fará crescer tua sombra
Alisando o cabelo lentamente subo
Até teus lábios de fera

Tradução: Claudio Daniel


VIAGEM ATÉ A NOITE

É minha morada suprema, da qual não se retorna
Krishna, no Bhagavad Gita

Como uma mãe sustentada por galhos fluviais
De espanto e de luz da origem
Como um cavalo esquelético
Radiante de luz crepuscular
Atrás a ramagem densa de árvores e árvores de angústia
Cheio de sol o caminho de estrelas marinhas
O estoque fulgurante
De dados perdidos na noite cabal do passado
Como um ofegar eterno se sai à noite
Ao vento tranqüilo passam os javalis
As hienas fartas de rapina
Rompido ao largo o espetáculo mostra
Faces sangrentas de eclipse lunar
O corpo em labareda oscila
Pelo tempo
Sem espaço cambiante
Pois o eterno é o imóvel
E todas as pedras arrojadas
Ao vendaval aos quatro pontos cardeais
Voltam como pássaros solitários
Devorando lagoas de anos derruídos
Insondáveis teias de aranha de tempo caído e lenhoso
Vacuidades enferrujadas
No silêncio piramidal
Morticínio pestanejante esplendor
Para dizer-me que ainda vivo
Respondendo por cada poro de meu corpo
Ao poderio de teu nome oh poesia

Lima, a horrível, 24 de julho ou agosto de 1949.

Tradução: José Arnaldo Villar.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

GALERIA: LEILA PUGNALONI (III)




UM POEMA DE W. B. YEATS


SEGUNDA TRÓIA

Por que hei de a censurar por ter-me enchido os dias
De miséria, ou por ter em horas não distantes
Ensinado a violência a homens ignorantes
Ou lançado as pequenas ruas contra as grandes,

Tivessem a bravura igual à aspiração?
Como traria ela paz com sua mente
Que a nobreza fez simples, simples como o fogo,
Com uma beleza de arco tenso, uma versão

Que não é natural em tempo como o nosso,
Por isolada e alta e austera e singular?
Que poderia ela ter feito, sendo o que é?
Havia nova Tróia para ela queimar?

Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos

terça-feira, 13 de julho de 2010

GALERIA: LEILA PUGNALONI (II)


UM POEMA DE WILLIAM BLAKE

O ANJO E O LADRÃO

Pedi ao Ladrão que um pêssego roubasse
Ele me virou a cara
Pedi à dócil dama que deitasse
Santa e mansa ela chorou.

Assim que saí um Anjo chegou.
Sorriu à dama e ao Ladrão piscou.

E sem dizer palavra
Teve o pêssego da árvore
E entre grave e grácil
Deleitou a dama

Tradução: Elson Fróes

segunda-feira, 12 de julho de 2010

GALERIA: LEILA PUGNALONI (I)


UM POEMA DE SYLVIA PLATH

OS MANEQUINS DE MUNIQUE

A perfeição é horrível, ela não pode ter filhos.
Fria como o hálito da neve, ela tapa o útero

Onde os teixos inflam como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida.

Desprendendo suas luas, mês após mês, sem nenhum objetivo.
O jorro de sangue é o jorro do amor,

O sacrifício absoluto.
Quer dizer: mais nenhum ídolo, só eu

Eu e você.
Assim, com sua beleza sulfúrica, com seus sorrisos

Esses manequins se inclinam esta noite
Em Munique, necrotério entre Roma e Paris,

Nus e carecas em seus casacos de pele,
Pirulitos de laranja com hastes de prata

Insuportáveis, sem cérebro.
A neve pinga seus pedaços de escuridão.

Ninguém por perto. Nos hotéis
Mãos vão abrir portas e deixar

Sapatos no chão para uma mão de graxa
Onde dedos largos vão entrar amanhã.

Ah, essas domésticas janelas,
As rendinhas de bebê, as folhas verdes de confeito,

Os alemães dormindo, espessos, no seu insondável desprezo.
E nos ganchos, os telefones pretos

Cintilando
Cintilando e digerindo

A mudez. A neve não tem voz.

Tradução: Claudia Roquette-Pinto

domingo, 11 de julho de 2010

GALERIA: ELEKTRA NATCHIOS


UM POEMA DE BERTOLD BRECHT

LISTA DE PREFERÊNCIAS

Alegrias, as desmedidas.
Dores, as não curtidas.

Casos, os inconcebíveis.
Conselhos, os inexeqüíveis.

Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.

Orgamos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.

Domicílios, os temporários.
Adeuses, os bem sumários.

Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.

Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.

Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.

Cores, o rubro.
Meses, outubro.

Elementos, os fogos.
Divindades, o logos.

Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.

Tradução: Paulo César Souza

sexta-feira, 9 de julho de 2010

GALERIA: ADRIANA PELIANO (VI)


UMA CONVERSA COM HORÁCIO COSTA (IV)

CD: Você teceu reflexões sobre o ofício poético em diversas composições, como Os Jardins e os Poetas. Em sua opinião, qual é o sentido da criação literária numa época que cultua o monoteísmo do mercado (Garaudy), a tecnologia e os meios de comunicação de massa? Pintar quadros, escrever poemas serão ofícios inúteis, míticos ou semilendários como a falcoaria, a heráldica ou a edificação de câmaras mortuárias piramidais?

Horácio: Não se pode pedir ao poeta que não poetize, ao escritor que não escreva, ao pintor que não pinte, ao escultor que não esculpa, ao artista visual que se cegue, ao realizador de filmes que não filme, ao bailarino que não dance, ao ator que não represente, ao arquiteto que não projete etc. O sentido de produzir arte é o próprio do fazê-lo, não o de agregar sentido a este fazer. Veja bem, não se trata da defesa da arte pela arte dos simbolistas, distante do vulgo e perto de umas musas que hoje estão contando os centavos e os minutos para cobrar o seu cachê. Não se trata de defender, por outro lado, o fazer mecânico, alienado e alienante. Nem do elogio do fazer por mero descarrego hormonal. A arte é um assunto sério, que se justifica sozinho e que acontece há muito tempo, e que não se faz para o futuro nem para um tempo histórico qualquer; é mesmo fora do tempo que se faz dentro dele e para ele, como se para oferecer-lhe um seu trasunto, um seu equivalente, paradoxal: ars longa vita brevis, vaya. Por outro lado, o fragílimo jogo narcísico da produção da arte no mundo monoteísta de mercado, como você diz, é um risco que apenas algum artista que não conheça nada de psicanálise pode cair: hoje em dia, na arte séria, o narcisismo acabou, foi substituído pela crítica, e isto não quer dizer que a exploração da subjetividade, por tanto tempo satanizada, tenha se obnubilado, ela me parece objetivamente mais importante do que nunca. Só os realmente pior preparados diante da linguagem crêem que o Deus-Mercado é algo mais do que um tigre de papel. Acho que até ele, o tão decantado deus de pés de bode, ou o bezerro de ouro, sabe disso, mesmo que odiando esta consciência. Por isso ainda se produz e se recebe e se analisa arte.

O Mercado, que continuamente tenta conspurcá-la para afirmar-se, constantemente termina por respaldá-la, por homenageá-la, por puxar o saco dela, que continuamente lhe diz, você lá eu aqui, eu sei bem qual é a tua, você não me engana, sacana. Claro que seria melhor ter idéias mais assentes, como até há algumas décadas, um corpus cuja centralidade e autoridade fossem referenciais para um grande número de agentes sociais, entre eles os artistas, e melhor seria, em poucas palavras, não ter que lidar com a ameaça ou o fantasma constante do mercado e com a melancolia que isso necessariamente gera, e não ter sequer que continuamente afirmar o óbvio, como o faço agora, e simplesmente esquecer essa bem infeliz conjunção. Mas não é assim. Então, faz-se arte porque sim, e se ela virar ruína, que pena, mas tanto dá; a Biblioteca de Alexandria queimou-se, Pequim foi incendiada por Gêngis Khan, os maias regrediram misteriosamente para a selva, mas nós sabemos de Hipatia e Plotino, e o mundo dos mandarins virou tema para Marco Polo e Matteo Ricci, e hoje já se podem ler as estupendas estelas comemorativas na América Central. Talvez essa empreitada decodificadora não possa continuar indefinidamente devido ao quadro que nos encontramos, mas não temos saída: do bisonte grafado em Lascaux ao livro deixado na Lua, sempre apostamos contra Mammon e suas aparições e tentações. A poesia, pois, tem um lugar e uma dignidade específicos nesta estratégia milenar de resistência, nesta aposta cega. A arte do vento, como a chamo, sempre deu um jeito de ecoar. E segue ecoando. E se depender de nós, pois seguirá enquanto der, não? Se tudo virar pó, enfim, a poesia não sofrerá nada, porque não é material, e uns extraterrestres avançadíssimos e com cabeças parecidas a abóboras de água e com antenas cor-de-rosa, gelatinosamente identificarão nossos sussurros pelas dobras do universo através de seus sensores sensibilíssimos, e como serão tão superiores, saberão como separar o joio da palavra mamônica do trigo da poesia, e talvez venham a dizer que uma surpreendente forma de vida se desenvolveu num planeta polvorento e escasso, uma forma de vida que sabia expressar-se poeticamente.

CD: Em ensaio publicado na revista Coyote, Eduardo Milán comenta o descompasso entre linguagem e realidade. As palavras são insuficientes para a representação do mundo? Cabe ao poeta insistir na tentativa da mímese ou buscar a criação de novas realidades, quer dizer, realidades estéticas (e através delas influir na mudança do mundo atual)?

Horácio: As palavras nunca cobriram a realidade, elas inventam outra, ou outras, que está, ou estão, em contato com a realidade dita tangível pelos nossos pobres e insuficientes sentidos. A correspondência entre realidade e linguagem nunca foi direta, nem simples. Derrida fala disso bem em La Mythologie Blanche, no famoso ensaio La Pharmacie de Platon. Thot pode matar ou curar; depende da dose e do acerto. Não há muitas regras, de fato, para estabelecer a distância entre a criação de linguagem e sua recepção, ou melhor dito: o seu cabimento, num determinado momento histórico. O que pensaram os contemporâneos de Dante sobre a Divina Commedia? Nunca se saberá. Dante era antipático aos gibelinos, foi expulso de Florença, tinha um imaginário pedófilo e seria um cripto-fascista, em termos da ideologia que circulava há cinqüenta anos — preferia o imperador germânico a seus fellow citizens. Mas escreveu, ou melhor: fez, no sentido de realizar, a maquete mais acabada de uma forma mentis, que hoje nós chamamos de medieval. Quantos de seus contemporâneos se reconheceram nela, à época da sua escritura? Nunca se saberá. Então vejamos: há, sim, hoje, uma grande aceleração na superfície do lago, uma turbulência que parece digna de um macroliquidificador de tudo, menos de si mesmo, mas eu quero crer que é só aparencial, embora nós a vivamos como Realidade, ou pelo contrário, essa turbulência é tão estrutural que só a podemos perceber como aparência, por que a nós humanos não é dado o entendimento completo (e por que seria?).

Michio Kaku, um matemático japonês, fala de dez dimensões detectáveis e que quiçá venham a ser mensuráveis (quando?). A turbulência da nossa realidade se somará às de todas as demais, potencializada? E se o "natural" da ordem for a desordem, no sentido da turbulência? Então, se for assim tudo sempre foi e será eminentemente turbulento. O melhor é não se assustar com isso, começar a encarar o caos como fator condicionante daquilo que pensávamos ser ordem, e condicionante para a criação de outras utopias futuras, e tratar de viver a nossa dimensão turbulenta como se fosse — e parece ser — o normal das coisas, ainda que tenhamos momentos de suspensão, alguns deles induzidos pela poesia, ou pela linguagem em função artística, que criam uma outra vertigem, a da arte, que podemos crer ou não que nos compensam desta sina cósmica. Também é importante que incorporemos de vez que só na aparência algumas obras de arte que nos parecem "monumentos", no sentido anterior da palavra, parecem-nos estáveis, uma vez que a crítica já faz tempo que se encarregou de dissecar essas brilhantes superfícies canônicas que eram as obras de arte até o século passado, e hoje a inteligência crítica ensina ao leitor, ao espectador, ao aluno médio que a instabilidade é talvez um dos condimentos mais importantes para a artisticidade da obra de arte, que só pode viver quando recebida por alguém preciso, individual, e daí instável, e não simplesmente fechada por uma interpretação, um valor, um sentido únicos, que almejam à estabilidade, à autoridade, à morte, em resumo.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

GALERIA: ADRIANA PELIANO (V)


UMA CONVERSA COM HORÁCIO COSTA (III)


CD: Quadragésimo (1999) traz peças inspiradas em episódios da revolução francesa, da cultura chinesa e de sua própria saga familiar. Nestas composições, habitadas por personagens como Marat e Wang Wei, há um sentimento de desconforto em relação à história, certa melancolia ou ceticismo em relação aos projetos utópicos. Ao mesmo tempo, celebra-se o corpo, a dimensão física do amor humano. Esta é a epifania possível, numa era de sombras?

Horácio: Sim, a história nos pesa com muito mais frequência do que o corpo, que nos permite escapar dela, vê-la, na explosão sensória dele, como um processo perfeitamente labiríntico. Na era das utopias, a história era não apenas redimível, mas também epifanável: caminhávamos para um mundo de liberdade, de felicidade universais, só que ele estava no futuro, e todos trabalhando sob a égide dos escolhidos — no mais das vezes, auto-escolhidos — para nos guiarem, pois, chegaríamos lá apesar dos tropeços. Esta narração ou este projeto, de origem fundamentalmente religiosa, ruiu aos poucos, e ainda está ruindo sob os nossos olhos. Hoje, funciona como catalisador de certos discursos para a, ou de, massa, sejam eles expressamente políticos ou não, e que têm o seu lugar no concerto da realidade tão difícil que vivemos para que, enfim, as coisas não descarrilhem de repente, como um tsunami de barbárie insalvável, o que pode parecer por certo algo imoral dizer, mas é fato. Não creio, entretanto, que a poesia contemporânea seja o melhor lugar para dar-lhes guarida. Pessoalmente tenho uma boa exposição a ruínas: sempre me senti congenial a elas, e de novo, se esta sensibilidade já existia para mim antes de sair do Brasil, que dizer do fato de ter vivido aos pés de civilizações desaparecidas ou mutadas?

Uma anedota: na primeira vez que fui a Nova Iorque, cheguei desde a Guatemala, horas depois de haver visitado Tikal, na selva do Petén. Em 1978. Quando vi pela primeira vez o skyline novaiorquino pensei: que belas ruínas não darão estes arranha-céus. Não quero parecer agoureiro, mas ao que tudo indica a nossa civilização, da qual Manhattan é, em muitos sentidos, o ícone máximo, está ferida de morte, porque somos muitos, porque não nos queremos, porque nossos recursos não são infinitos e porque o homem talvez não consiga não repetir grandes desastres periodicamente, para depois passar para uma melhor construção e percepção da realidade. Não prego o apocalipse, nem tenho certeza de que o que virá será apocalíptico no sentido bíblico ou no que se imaginava sucederia no contexto tão fantasmagórico da Guerra Fria; talvez simplesmente comecemos de fato a desacelerar globalmente e a entropia conquiste novos espaços, contra o projeto de um mundo organizado pela razão capitalista triunfante, que hoje está armada de uma arrogância totalmente descabida, se não francamente tanática.

Pois bem, o amor corpóreo, não o consumo do corpo alheio como produto de mercado mas o encontro físico e também espiritual entre os seres humanos, ainda oferece um bálsamo, mesmo que cercado das ameaças virais contemporâneas, contra esta erosão constante da realidade sob o império de um imaginário vinculado a valores de mercado. Nos últimos anos passei a valorizar cada vez mais o amor espiritual, e creio que devo dizer isso porque eu desconfiei dele por muito tempo, erroneamente considerando-o como um subproduto da cultura. Neste sentido, foi um crescimento, que veio com a experiência de mortes próximas, e talvez do amadurecimento que sofri em função do regresso ao Brasil. Mas a sensação de melancolia, tão própria da civilização ocidental, não pode abandonar a ninguém que observe o que está acontecendo nos mais diferentes quadrantes e culturas, dificultando a permanência da fé na capacidade da nossa civilização responder aos problemas que ela mesma criou. Agora, crer na vida é maior do que crer no humano e na nossa civilização precisa; esta é uma das certezas do, digamos, pós-humanismo atual. A vida não é nossa; nós somos dela, e ela é muito maior do que nós imaginamos, com as nossas meta-narrações encolhendo sobre nossos corpos como se roupas de aluguel debaixo da chuva e depois da festa. O corpo — e o espírito do corpo — ficará maravilhosamente exposto ao air-du-temps quando os ilhoses por fim arrebentarem.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

GALERIA: ADRIANA PELIANO (IV)


UMA CONVERSA COM HORÁCIO COSTA (II)

CD: Em Satori (1989), você apresenta poemas narrativos com fortes imagens metafóricas, que se aproximam de um barroco alucinado. Nestas peças, que dissolvem os limites entre prosa e poesia, há uma mescla de diferentes repertórios simbólicos e culturais. Essa lírica mestiça corresponde à visão de um mundo multipolar, sem fronteiras?

Horácio: O livro Satori tem um prólogo de Severo Sarduy, o grande teórico do barroco no universo hispano-americano contemporâneo. Este é um detalhe que convém frisar. O Severo foi generoso comigo, mas para que esta generosidade se desse, havia um terreno comum, o do sentimento do barroco, entre nós dois. Além de, claro está, o fato de ambos levarmos nossa homossexualidade muito a sério, e de que gostávamos — digo isso, porque já faz tempo que ele morreu — de ir a bares e cafés, em resumo, de estar na cidade. O "barroco alucinado" — gosto muito da expressão com que você fala de Satori —, sim, se dá. É um livro de abertura, de poeta-que-viaja, de homo viator. Mas que barrocamente vive em labirintos, que não vê o mundo pelo qual passa como uma sucessão de "fenômenos culturais", mas de "estações labirínticas". Uma coisa teria sido eu me encantar pela sucessão de países e culturas nas quais sucessivamente me perdia e me achava; outra foi o ter desenvolvido, ou procurado desenvolver, uma ótica própria sobre o homem e a história, que dá a pedra-de-toque à operação poética. Não saí por aí consumindo o mundo, mas observando-o.

CD: Você cria paisagens verbais com veia taumatúrgica, explorando o poder encantatório da palavra. No poema O Bar da Senhora Olvido, lemos: “ossos de ar esqueleto inflável em álcool / aquarelas noturnas dolorosas olhares anfíbios / a cidade é um mapa do céu”. Essa busca de novas realidades semânticas vem de uma leitura pessoal da tradição surrealista?

Horácio: O poema O Bar da Senhora Olvido foi escrito em Barcelona, em 1980, e o fato de, diante da magnificência da cultura espanhola que eu descobria — e da abundância que eu notava na sociedade catalã —, eu ter preferido escrever sobre os bêbados do Bairro Gótico, quer dizer algo. Aliás, o bar existia mesmo, e já não existe mais. No ano passado voltei àquele canto do Bairro Gótico, e àquela zona medieval, sórdida e lírica, que era um cruzamento de pessoas do mar do mundo todo, tinha dado origem a uma simpática, anódina pracinha pós-moderna. Eu ia às noites beber com os bêbados, com o meu amigo Rafael Bernis, um fotógrafo catalão. Muitos dos versos se referem às falas alucinadas daquelas personagens que desapareceram do mapa, na burguesíssima Barcelona de hoje. Foi um pouco procurar preservar aquelas falas o que dá este tom que parece surrealista ao poema.

Eu morava no bairro de Gracia, num grande apartamento sem mobília, e forrei todas as paredes de papel kraft e escrevia em pedaços de papel, frases, versos, montagens, e ia fazendo colagens pelo corredor, pela sala, etc. numa atitude própria de um ex-arquiteto, não? Senti freqüentes epifanias enquanto escrevia, sempre de noite. Por isso o poema é muito fragmentário. Eu tinha começado a escrevê-lo em São Paulo, mas foi nesse período barcelonês que ele veio à luz, e te garanto que foi em Barcelona, em 1980, aos 25 anos, que de mim para mim mesmo me assumi como poeta. Em resumo. O livro não tem nada que ver com surrealismo. Tem a ver com a postura documentacional do escritor naturalista, se você quiser, com o catador de papéis ou de palavras, com o filólogo itinerante que juntava lendas e fonemas em Trás-os-Montes ou Minas Gerais, com um Guerra Junqueiro ou um Guimarães Rosa, não com um surrealista de salão, e ainda por cima de segunda mão, que alguém afeto ao surrealismo necessariamente seria em 1980, a cinqüenta anos da fundação do movimento. Aliás, eu não gosto do surrealismo. Tenho bronca dele porque falseia o delírio e porque Breton nunca acreditou no amor homossexual. E bem, já que estou falando nisso, pois os hispano-americanos e os brasileiros aqui temos uma de nossas maiores diferenças, já que muitos hispanos adoram o surrealismo, e nós somos mais dadaístas, ou como dizia o Oswald, et pour cause, "concretistas".

CD: O Livro dos Fracta (1990) é um monólogo em fragmentos onde notamos a forte visualidade dos versos, que recordam planos de cinema, e a busca de sonoridades pela insólita associação de palavras (“veste-me a tua presença ao íbis bisonte jaguar”), com um humor sutil, mais próximo da ironia que da sátira. Como foi o processo de criação deste poemário?

Horácio: O Livro dos Fracta nasceu de uma inquietação minha diante do computador e da ciência contemporânea, especialmente a cosmologia. Ainda aqui, a presença de Severo: ele foi quem me ensinou que literatura e cosmologia se tocam na pós-modernidade. Por isso o livro está dedicado a ele e a François Wahl, o seu marido. Pois bem, eu tinha comprado um Apple Macintosh Classic e estava apaixonado pela máquina, e sempre fui um leitor amador de revistas científicas. Foi através delas que eu estabeleci contacto com a teoria da geometria fractal, de Benoît Mandelbrot, então resolvi duas coisas: uma, que ia me inventar uma "métrica" nova, isto é, uma regra perfeitamente informática para contar uma história, e que ia observar certas relações de simpatia para com a teoria de Mandelbrot. Então, resolvi comprimir os fragmentos a três linhas do visor do computador Apple, utilizando-se do tipo Times New Roman, e que ia repetir aleatoriamente os títulos de alguns dos fragmentos, para recordar o leitor que havia uma história que estava sendo des-contada lá. Acresce-se a isso o fato de que eu inventei uma personagem, o Legionário, um romano que atravessa os tempos e os espaços, e mesmo o cosmos, do Big Bang até hoje, e vê, no sentido de "ver" como alucinar ou de presenciar, coisas, relativas ou não ao mim, ao Brasil e ao mundo do final do século XX. Então, também há um narrador, que diz que a natureza e a história obedecem a um princípio de similaridade, de homotetia ("O alvéolo imita a árvore,/ em Bangui, Bokassa a Napoleão./ Isto é uma novela", diz o Fracta nº I), e o resto, pois, o resto é bem fragmentado mesmo, irrecuperável, não tem uma "maquete" à qual se remeter, não tem como reconstruir a "verdadeira" — final, precisa, certa, teleologicamente única e uma — história de O Livro dos Fracta.
O título parodia muitos outros, a começar pelo Livro dos Provérbios da Bíblia. Eu avanço milimetricamente, e sim, com um milimétrico uso da ironia, botando (quase) tudo no avesso. A operação retórica central dos fracta e das Very Short Stories é a alegoria sem fim, a alegorésis, um termo que eu tomei a liberdade de tomar emprestado e mutado aos estudos da retórica. Não se esqueça de que em Yale eu tive aulas ou estive próximo a gente muito boa, em termos literário-críticos: Bloom, Derrida, Hillis Miller. Pois bem, algorésis, como o meu alter ego Ernesto de León fala nas VSS. Para dar conta deste recado literário-crítico, inventei uma palavra invariável —"fracta"— que não tem plural nem gênero. Um pouco, em resumo, como o poeta.

terça-feira, 6 de julho de 2010

UMA CONVERSA COM HORÁCIO COSTA (I)





CD: Você viveu muitos anos no México, onde lecionou na UNAM e travou conhecimento com autores como Octavio Paz, Manuel Ullacia e Eduardo Milán. O que essa convivência com o ambiente cultural da América Hispânica trouxe para sua poesia e para a sua formação?

Horácio: A primeira parte da resposta é, sob todos os pontos de vista, previsível: a minha longa estada no México foi importante em todos os aspectos da minha vida, dos literários aos não-literários. Em poucas palavras, estive na iminência de virar mexicano, de solicitar uma segunda nacionalidade. Também nos Estados Unidos, onde vivi antes de ir dar ao México e por um longo período entre as minhas duas permanências no México, senti num dado momento que podia virar americano. Nas duas vezes, nos USA primeiro e no México depois, me deu uma vertigem, uma sensação de estar na frente de um abismo, e nas duas vezes eu literalmente dei para trás: era possível essa experiência, devido aos aspectos eminentemente burocráticos de quem permanece tanto em outro país, porém ela me parecia subjetivamente impossível.

Quando saí do Brasil, em 1981, para estudar em Nova Iorque, queria poder me dar o direito de escrever a minha obra no exterior. Pois bem, pude; e inclusive convivi intelectualmente com muita gente boa. Nos Estados Unidos, com Emír Rodríguez Monegal, que foi meu professor na USP e que me incentivou a sair do país; ao longo da minha permanência fora, com o Manuel Ullacia, com quem estive casado por dezessete anos, e no México, claro, estava o Paz, uma figura solar, que me recebeu muito bem e com quem por anos convivi cordialmente, até que deixei de fazê-lo, pouco antes de sua morte e do meu regresso ao Brasil. Ao redor de Vuelta reunia-se um grupo de jovens intelectuais de várias origens e idiossincrasias, foi assim que desenvolvi uma amizade literária profunda com o Milán, que era estrangeiro e sul-americano como eu, e que ironizava a organização um tanto piramidal da vida literária mexicana, mas também com outros mexicanos e hispano-americanos. Mas isso tudo você já sabe, é parte da minha biografia pública, digamos.

A segunda parte da resposta é menos previsível porque o mundo mudou e quase não nos lembramos mais de como as coisas eram nos anos setenta. Eu fui para o México porque tive uma formação latino-americanista na USP, na FAU principalmente — sim, eu estudei arquitetura e urbanismo e trabalhei no Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo antes de sair do Brasil. Lá tive aulas com Aracy Amaral e Renina Katz, que falavam entusiasticamente do México, e com Irlemar Chiampi e Jorge Schwartz, na Letras, bem como com o filósofo mexicano Leopoldo Zea, na História. Nos anos 70, a América Latina era um espaço imaginário de contestação política e cultural; sob os nossos militares, sonhávamos com a integração continental. Lembro-me que o Milton Hatoum e eu, numa casinha que compartilhávamos na rua Isabel de Castela — o nome sempre nos pareceu emblemático — compramos uma biblioteca de escritores hispano-americanos, e líamos Borges e Paz, Carpentier e Cortázar, e historiadores da América Hispânica. Foi muito bonito.

Pois bem, nos Estados Unidos eu me dei conta de que sim, eu poderia tornar-me um norte-americano se quisesse, mas nunca seria um americano completo se a experiência hispânica não se realizasse; parece simples como enunciado, mas foi um problemão logístico poder realizar este insight. Nos anos 70 ia-se via de regra estudar em Paris, no mais das vezes, no máximo nos USA, mas ninguém pensava em ir estudar e viver e escrever no México; isso era coisa de exilados políticos à la Francisco Julião, mas não de um jovem intelectual burguês ainda em formação. Então, ter ido ao México para ficar tem um sabor de realização de um projeto geracional para mim, que eu nunca olvidei e que ainda norteia a minha vida intelectual e a minha produção poética. Cresci intelectualmente under the volcano, foi lá que vi o Brasil a distância, e foi de lá que eu resolvi voltar para cá.

(Trechos da entrevista que fiz com Horácio Costa, publicada na revista argentina Tsé Tsé em 2004.)

UM POEMA DE AUGUSTO DE CAMPOS


UMA CONVERSA COM AUGUSTO DE CAMPOS (III)

CD: Em sua arqueologia das poéticas de invenção, vários autores foram resgatados de um injusto esquecimento, como Sousândrade e Kilkerry. Que outros poetas, em sua opinião, merecem ser resgatados para o repertório de alto padrão da poesia brasileira?

Augusto: Continuo achando que os casos de Sousândrade e Kilkerry são os mais significativos, considerando que os demais poetas não-canônicos relevantes, como Gregório, por muito tempo censurado e marginalizado, têm hoje boa divulgação. Não se pode "descobrir" poetas de alto padrão a todo momento. E mesmo em relação àqueles dois grandes poetas encontramos dificuldades enormes para sua difusão. Basta que se diga que os dois livros com o "corpus" essencial de suas obras, Re-Visão de Sousândrade e Re-Visão de Kilkerry, estão há muito esgotados, subsistindo, de Sousândrade, apenas a pequena antologia que Haroldo e eu fizemos para a Agir (em segunda edição, atualizada).

CD: Qual é a sua opinião sobre dois movimentos estéticos recentes, o Neobarroco e a Language poetry?

Augusto: A meu ver, nem o "Neobarroco" nem a "Language poetry" constituem propriamente movimentos. A expressão "neobarroco" caracteriza antes uma interpretação de certos aspectos estilísticos da linguagem literária do nosso tempo, especialmente da América Latina de língua espanhola. Mas, se se quiser, poder-se-á encontrar estilemas barrocos em Joyce e até na poesia concreta. O grupo da "Language poetry" é mais definido, por ter se concentrado fisicamente em torno de uma revista, cujo primeiro número apareceu em 1978, mas não tem a envergadura de um movimento. Chamou a atenção para a materialidade da palavra, no contexto da poesia norte-americana, mas essa preocupação já fora explicitada, com maior nitidez e amplitude, em teoria e prática, pela poesia concreta, desde a década de 50. Acho a maioria dos poetas ligados à revista muito prejudicada pela opacidade da "escrita não-referencial", derivada dos "botões tenros" de Gertrude Stein, e muito ingurgitada de algaravia crítica. Ainda assim, a ênfase na materialidade do texto fez do grupo, no mínimo, um pólo de discussão relevante no âmbito da poesia norte-americana contemporânea.

CD: Tudo está dito? Ou ainda há o que dizer, em poesia?

Augusto: Tudo está dito. Tudo é infinito.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

GALERIA: ADRIANA PELIANO (III)


UMA CONVERSA COM AUGUSTO DE CAMPOS (II)

CD: Em Música de invenção, você fez uma ampla abordagem da música experimental do século XX. Aliás, sua preocupação nessa área está presente também em obras como O balanço da bossa, as traduções de Arnaut Daniel e do Pierrot Lunaire e as parcerias com Caetano Veloso. Qual é a importância da música para o seu trabalho poético?

Augusto: A importância da música é obviamente muito grande em meu trabalho, que começou sob o signo dela. Antes mesmo do lançamento oficial da poesia concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956, três poemas do Poetamenos foram apresentados no Teatro de Arena, num espetáculo que já levava o título de Música e Poesia Concreta, ao lado de Machaut e Webern, em 1955. O trabalho com Cid Campos, no CD Poesia é risco e nos espetáculos do mesmo nome testemunham a continuidade da presença da música em minha atuação poética. Assim como o recente Música de invenção, que tenta alertar para a grande lacuna cultural deste fim de século, que é a paradoxal marginalização da música erudita moderna, da "música contemporânea", uma das mais fascinantes aventuras da criação artística do nosso tempo.

CD: Você publicou uma nova edição, ampliada, dos poemas de cummings, autor que vem traduzindo desde os anos 50. A seu ver, a contribuição de cummings já está esgotada, ou ainda é possível aprender algo de novo com ele?

Augusto: cummings está mais vivo que nunca. Sua poesia é mais nova e mais atual do que a maior parte da que se lê hoje, considerando-se que houve nos últimos tempos, a pretexto de "pós-moderno" (na verdade, antes "anti" ou "contra"' moderno, quase sempre) um retrocesso na linguagem poética. cummings concilia liberdade (desmembra e intercepta frases, palavras e sílabas, dinamizando o poema e multiplicando as direções e as dimensões da leitura) e rigor (suas estruturas poéticas obdecem a processos de organização que se opõem às facilidades verbais), o que é raro. Há muito que aprender e que degustar em sua poesia.

CD: Em Despoesia, há diversas referências ao cosmo, ao quasar e ao quark. A própria disposição espacial das palavras, em alguns poemas, recorda mapas celestes. De onde vem o seu namoro com a astronomia?

Augusto: No fundo, há, inelutavelmente, a sombra de Mallarmé e seu Lance de dados ("…exceto, talvez, uma constelação…"). Mas essa angústia ou inquietação cósmica é ao mesmo tempo muito humana e muito da nossa época, palco de tantos avanços na física e na cosmologia. Penso sempre nos poemas Pulsar e Quasar, de 1975, como mensagens numa garrafa cósmico-terrestre, à maneira daquela que foi enviada ao espaço, um ano antes, em sinais de rádio, do Observatório de Arecibo, ou daquela outra, que a sonda espacial Voyager levou, em 1977, num "disco interestelar" , à procura de um hipotético decifrador extraterreno. Não é essa uma boa metáfora para a poesia, sempre em busca de "vida inteligente", "alienígenas espertos", aqui mesmo na terra, e já agora no ciberespaço?