sexta-feira, 30 de abril de 2010

DIÁRIO DE UM VIAJANTE




Caros, estarei em Lisboa entre os dias 05 e 09 de maio, participando da 2ª. edição do Festival Tordesilhas, que terá a presença de poetas do Brasil, Portugal, Angola e Moçambique. O evento tem curadoria minha e da poeta Virna Teixeira. Em 2007, aconteceu a primeira edição do festival, em São Paulo, com a participação de poetas do Brasil, Espanha, Portugal e América Latina. Aguardem mais informações aqui na Pele de Lontra.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

GALERIA: ARTE JAPONESA (III)


HAICAIS DE CASIMIRO DE BRITO

Amo-te. Quero dizer,
não te conheço. Só te peço
umas cerejas

* * *
Gostava de amar-te
como se fosses uma árvore
tocada pelo vento

* * *
Amar-te, beber-te
ou, pelo menos, ser a tua
sombra

* * *
Olhas para mim
como se eu fosse um campo
de cerejeiras

* * *
Um certo desejo
como esse que o mar
deve ter do vento

* * *
O teu corpo nu
ao lado do meu corpo nu:
música ou silêncio?

* * *
Amar-te é antigo.
Nascem flores onde foram
campos de batalha

* * *
A concha obscura
não é um lugar vazio —
tantas estrelas!
(Leiam mais haicais de Casimiro de Brito, e também de Teruko Oda, Alfredo Fressia, José Kozer, Claudio Daniel e João Rasteiro, entre outros autores, na Zunái de maio.)

terça-feira, 27 de abril de 2010

GALERIA: ARTE JAPONESA (II)


UMA CONVERSA COM TERUKO ODA

Por Hilton Valeriano

Zunái: como ocorreu o seu contato inicial com o haicai?
Teruko Oda: conheci primeiro o haiku (poema escrito em japonês), ainda na infância. Meu pai foi discípulo de Nenpuku Sato (imigrante japonês que veio ao Brasil com a missão de “plantar um país de haicai”). Sato foi um mestre itinerante – as reuniões eram realizadas nas casas oferecidas pelos praticantes. Em muitas ocasiões, tive a oportunidade de ajudar minha mãe na tarefa de preparar e servir chá verde e doces caseiros aos amigos de meu pai. São experiências que marcaram a minha infância. Nessa época, eu nem imaginava que o haiku poderia ser escrito em português. Descobri essa possibilidade anos mais tarde, por meio dos textos de Millôr Fernandes publicados na revista O Cruzeiro. Comecei a escrevê-los de forma sistemática entre os anos de 1988/89, a convite de Mestre Goga, ocasião em que passei a frequentar as reuniões do recém-fundado Grêmio Ipê em São Paulo.

Zunái: quais são as principais características do haicai?
Teruko Oda: regra geral, definimos o haicai como a menor forma poética do mundo. Composto por dezessete sílabas (ou próximo disso) distribuídas em três versos, seu conteúdo deve estar relacionado com uma das estações do ano. De acordo com as orientações da escola dita tradicional, da qual sou seguidora, eu diria que, na prática, o haicai é uma breve anotação sobre um acontecimento natural: um terceto cujo diferencial reside no modo como o autor registra sua experiência poética. Pela voluntária atitude em ater-se ao essencial, o poeta não explicita os detalhes da emoção ou da sensação vivenciada. Pelo contrário, o autor e seus sentimentos deixam de ser o assunto central do poema para dar lugar ao efêmero, ao transitório, ao que está acontecendo aqui e agora representado pelo kigo (palavra ou termo de estação). Penso que o registro limpo e objetivo de uma sensação muito intensa em que fugacidade e eternidade se entrelaçam ao mesmo tempo forte e frágil, e cujo ecoar nas cordas da sensibilidade nos conduz à percepção mais ampla de que “o tempo passa”, é uma das principais características do haicai.
Zunái: como você vê a posição do haicai na poesia brasileira? Qual seria sua contribuição?
Teruko Oda: nesta nossa era globalizada, os meios de comunicação parecem estar sempre presentes no local exato do acontecimento, antes mesmo que o fato ocorra, tamanha a rapidez com que as notícias se tornam universalmente acessíveis. Se por um lado esse avanço tecnológico favorece nossa inserção no disputado mundo dos homens bem-sucedidos, por outro, favorece também as bruscas mudanças que atropelam os rumos e os interesses dessa mesma sociedade antropofágica em que nos transformamos. Essa necessidade quase compulsória de nos robotizarmos, de nos superarmos em prol de nossa própria sobrevivência, de certo modo nos torna mais frágeis, mais vulneráveis, e nos obriga a repensar valores, a buscar o essencial. O haicai é exatamente isso – uma poesia que vem de encontro às nossas necessidades atuais: despojada, simples e objetiva que se vale apenas do suficiente. Nesse contexto, parece-me que o haicai é um novo caminho. Uma opção através da qual nos recusamos a continuar inserindo nas três linhas do poema um discurso lírico recheado de sentimentalismo e “enfeites poéticos”. Entendo que haicai não é um poema que se resolve por si, isto é, não é apenas produto final. Seu recado vai muito além: é despojamento, atitude consciente de negação do ego, filosofia de vida, valorização do essencial. Não será a busca por esse novo jeito de ser e de estar no mundo, aliada a uma nova linguagem, um grande acréscimo à poesia brasileira? Por outro lado, para compor haicai não é necessário ter nascido poeta, mas é fundamental amar a natureza. Aí sim, está uma das grandes contribuições do haicai, não só para a poesia brasileira, como também para o planeta Terra. Acredito que este tipo de texto, breve e conciso, favorece o despertar do interesse pela leitura e pela poesia, principalmente entre as crianças.
(Leiam a íntegra da entrevista no caderno especial sobre o haicai na edição de maio da Zunái.)

GALERIA: ARTE JAPONESA (I)


FLORES DE CEREJEIRA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O HAIKAI NO BRASIL

Gustavo Felicíssimo

O Kasato Maru, primeiro navio a aportar no Brasil com imigrantes japoneses, segunda a historiografia oficial em 18 de junho de 1908, trouxe consigo 165 famílias que vinham trabalhar nas fazendas de café no oeste paulista, mas não há registros que confirmem que tenham trazido para o Brasil a pedra fundamental do haikai em português.

É sabido que o haikai é uma forma poética tipicamente japonesa muito cultivada no mundo todo. O haijin (poeta que escreve haikai) mais conhecido é Matsuo Bashô (1644 – 1694), ou simplesmente Bashô. Foi ele quem codificou e estabeleceu os cânones do tradicional haikai japonês. Mas como veremos, a influência sofrida pelo primeiro escritor brasileiro a fazer referência ao haikai não foi de origem japonesa.

H. Masuda Goga[1], haikaísta e pesquisador japonês radicado no Brasil, afirma que a primeira publicação sobre haikai na literatura brasileira ocorreu em 1919, no prefácio do livro Trovas Populares, onde Afrânio Peixoto, poeta, romancista, crítico literário, ensaísta e historiador baiano, natural de Lençóis, Chapada Diamantina, além de apresentar o haikai comenta[2]:

Os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda que a nossa trova popular: é o haikai, palavra que nós ocidentais não sabemos traduzir senão com ênfase, é o epigrama lírico. São tercetos breves, versos de cinco, sete e cinco pés, ao todo dezessete sílabas. Nesses moldes vazam, entretanto, emoções, imagens, comparações, sugestões, suspiros, desejos, sonhos... de encanto intraduzível.

No citado texto Afrânio Peixoto faz referência direta ao escritor P. L. Couchoud[3], por isso Goga toma por esclarecida a influência de origem francesa sobre o primeiro autor a fazer referência ao haikai no Brasil. Nele, Afrânio Peixoto ainda traz alguns exemplos para a melhor compreensão do leitor. Vejamos dois:

Deste lado só
Está batendo o pulso
O ramo floriu!

***

Pensei que nevava
Lírios... Minha branca amada
Vinha aparecendo...

A importância de Afrânio é tão grande para o nosso haikai que a capa de O Haicai no Brasil traz uma imagem sua, reproduzida por Marcos Morita, a partir de um retrato do autor baiano. Mas ela não cessa aí, pois Afrânio, como veremos mais adiante, também pode ser considerado o primeiro escritor brasileiro a publicar um livro de haikai.

Em que pese esses apontamentos históricos, não podemos deixar de reconhecer que o empenho de Guilherme de Almeida foi muito importante para se conseguir popularizar o haikai no Brasil. Seu ensaio Os meus haicais, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 28 de fevereiro de 1937, onde o poeta procura defender sua formulação poética é bastante conhecido entre os estudiosos e cultores brasileiros de haikai. Propositalmente, em seu livro Poesia Vária[4], um dos capítulos, o segundo, que é de haikai, traz o mesmo título do artigo.

Vale lembrar que para muitos estudiosos do haikai a forma proposta por Guilherme de Almeida, que veremos a seguir, é tratada por uma série de aspectos como parnasiana.

Para efeito de discussão e análise, o haikaísta e estudioso Paulo Franccheti afirma[5] que no Brasil

o haikai só vai ter importância teórica para a reflexão sobre a nossa literatura a partir do movimento de Poesia Concreta. (...) quando Augusto de Campos utiliza o termo ideograma para definir o inovador processo de composição que caracteriza a nova poesia.

Como se pode perceber o haikai não foi assimilado pelo mundo literário brasileiro diretamente da literatura japonesa. Entretanto, sua forma original teve como introdutores os imigrantes japoneses. Transcrevemos abaixo algumas passagens relevantes do livro O haicai no Brasil, de Masuda Goda, onde o autor discorre com clareza sobre o assunto[6]. Diz ele:

essa introdução começou juntamente com a chegada da primeira leva de imigrantes. Temos o registro de que Shuhei Uetsuka (1876-1935) – encarregado de conduzir os primeiros imigrantes pelo hoje histórico Kasato Maru, chegado ao porto de Santos em 18 de junho de 1908 – foi um bom poeta de haiku. Ele usava o haimei[7] (nome literário de poeta de haiku) de Hyôkotsu.

Consta que Shuhei Uetsuka compôs o seguinte haiku momentos antes da atracação no Porto de Santos[8]:

A nau imigrante
chegando: vê-se lá do alto
a cascata seca[9].

Goga ainda justifica o fato de o intercâmbio entre haikaístas japoneses e brasileiros não ter acontecido desde o primeiro momento da chegado dos imigrantes, dizendo:

Entretanto, os homens que migravam na condição de trabalhadores contratados levavam vida apertadíssima, não tinham tempo “sequer de pensar em haiku”. Era essa a realidade dos primeiros dos imigrantes. Posteriormente, quando a vida do imigrante começa a apresentar alguma folga, mais precisamente em 1926, ingressa no núcleo colonial Aliança, Estado de São Paulo, Kan-ichiro Kimura, cujo nome haicaístico era Keiseki ( 1867-1938) e no ano seguinte Kenjiro Sato, de nome haikaístico Nempuku (1898-1979). Eles lideraram o movimento de cultivo e de difusão do haiku tradicional, construindo os alicerces do atual “mundo haikuísta” da colônia que conta com cerca de mil aficcionados.

E na década de 30 começa o intercâmbio entre os discípulos destacados dos mestres citados e os haicaístas brasileiros.

Dessa maneira, através dos imigrantes japoneses, paralelamente ao caminho ocidental, é aberto um novo caminho por onde ingressam informações acerca do haikai no Brasil.


As quatro formas de haikai praticadas no Brasil

As transformações havidas no Japão e no mundo ampliaram o horizonte do haikai, tornando sua estrutura adaptável. Como veremos, o haikai foi utilizado à maneira que melhor se adequou à necessidade de cada autor e lugar.

Todavia, teorizar demais sobre o haikai é ao mesmo tempo perdê-lo, sendo suficiente dizer que a ele devemos nos amalgamar, como se acompanhássemos naturalmente o fluir do tempo, o curso de um rio que se transforma em algo diverso quando encontra o mar. Assim também é o haikai quando buscamos capturar um instante, uma ação, e representá-la com palavras. Entretanto se faz necessário registrar as formas de haikai produzidas no Brasil ao longo do tempo, que são quatro no total.

O modelo trazido por Afrânio Peixoto

Para Carlos Verçosa[10], autor de Oku: viajando com Bashô[11], coube a Afrânio Peixoto não apenas o mérito pioneiro de introduzir e divulgar o haikai no Brasil, em 1919, apresentando o haikai como “epigrama lírico”, em Trovas Brasileiras. Peixoto também teria sido o nosso primeiro poeta a publicar um livro de haikai.

Em Missangas[12], no capítulo X[13], após o ensaio O haikai japonês ou epigrama lírico, Peixoto traz 52 haikais de sua autoria. Diz Verçosa que se trata de um autêntico livro inserido em um outro livro. Desse modo, o poeta baiano não só pode ser considerado o precursor do haikai no Brasil, como também o primeiro poeta a publicar um livro de haikai no nosso país. São 52 haikais com título e métrica (5/7/5 sílabas), como os que seguem:


COMO OS CÃES DA RUA

Na lata de lixo,
Coitadinho, procurava
Um naco de pão...


COMPARAÇÃO

Um aeroplano
Em busca de combustível...
Oh! é um mosquito.


A BELEZA ETERNA


O sabiá canta,
Sempre uma mesma canção:
O belo não cansa.

O haikai guilhermino

Guilherme de Almeida, no início do período de desenvolvimento do haikai no Brasil, procurando nacionalizá-lo, dotou-o de uma estrutura formal rígida. Além do título e da métrica que já haviam, ele utiliza a rima. No esquema proposto o primeiro verso rima com o terceiro, ambos possuem cinco sílabas métricas. No segundo verso, que possui sete sílabas, há uma rima interna que acontece entre a segunda e a sétima sílaba, como nestes:

VENTO DE MAIO

Risco branco e teso
que eu traço a giz, quando passo.
Meu cigarro aceso.

CARIDADE

Desfolha-se a rosa:
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.

O HAIKAI

Lava, escorre, agita
a areia. E enfim, na bateia,
fica uma pepita.

O haikai de origem japonesa ou tradicional


Podemos definir o haikai japonês, tradicional, como aquele que melhor valoriza os elementos da natureza, que nega o ego humano e procura registrar um acontecimento particular, uma paisagem, referindo-se ao seu agora, de forma simples e com sentido completo. Tudo em apenas três versos, sem título ou rima.

Neste modo de composição deve-se introduzir no haikai um kigo, que nada mais é que um termo (nome de animal, mês, planta) que o escritor inclui para dar ao leitor uma noção da estação do ano em que foi escrito. Nele há um sentido de transitoriedade que simbolicamente reconhecemos no transcurso do tempo. Assim, entre muitos exemplos possíveis, um haikai de primavera deve conter termos como os que indiquem alegria, flores, renovação; os de verão calor, animação, liberdade; os de outono; melancolia, nostalgia, colheita; e inverno, festa junina, reclusão, frio.

Há muita diferença entre o haikai tradicional e o poema como entendemos no ocidente. Um dos motivos, aponta Sato Hiroaki, se deve por sua frequente inabilidade de se sustentar sozinho como algo completo[14]. Talvez por isso não seja raro encontrarmos textos que afirmam não ser o haikai um poema em si, ou que para sua prática não é sequer necessário ser poeta.

Bons exemplos para este exemplo são os haikais de Teruko Oda. Vejamos alguns[15]:

Na beira da estrada
com as abelhas divido
meu caldo de cana.

Chega com o vento
um insistente chamado –
Cigarra de outono.

Um quê de leveza
no roçado ainda seco –
Canta o curió.

Contracultura e haikai


A vertente mais nova do haikai é aquela que coincidentemente mais foi divulgada e cultuada entre nós a partir dos anos 60. Deve-se muito a Millôr Fernandes o seu desenvolvimento a partir das suas tiradas humorísticas nas revistas O Cruzeiro, primeiramente, e depois na Veja. Millôr deu um ar descontraído ao haikai, aproximando-o do poema-piada, eliminando a métrica, título e referências às estações do ano, contribuindo para o aparecimento de jovens poetas. Esse formato foi muito difundido no mundo, inclusive no Japão. Este formato é também conhecido por Senryu por tratar de questões unicamente humanas, em tom irônico ou satírico.

Em seu livro Hai kais[16], em breve introdução à obra, Millôr afirma ver o haikai como uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística. E assim compôs e publicou-os acompanhados por ilustração que acentua o sentido cômico dos seus versos.

Também não se pode descartar a importância de poetas concretistas como Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari que a partir da segunda metade do século passado buscaram traduzir ou transcrever o haikai japonês para o nosso idioma.

Entretanto, quando falamos de haikai no Brasil, o nome de Paulo Leminski surge invariavelmente em primeiro plano. Sabe-se que já no início da década de 60 ele começou a estudar japonês, cujo interesse teria surgido na academia de judô em que treinava. Alinhado aos valores contraculturais e libertários dos anos sessenta, Leminski produziu uma obra tensa, densa e provocadora como sua própria personalidade. E como Millôr, também produziu uma obra livre de amarras, cheia de sacadas, clicks, como ele dizia. São de sua lavra os seguintes haikais[17]:

passa e volta
a cada gole
uma revolta

***

esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem

***

nu como um grego
ouço um músico negro
e me desagrego

O título no haikai

Para finalizar, vale ressaltar que aderimos ao pensamento de Paulo Franchetti quando afirma em estudo[18] que os haikais com título parecem fracassar como haicais não pela rima, nem pela métrica, mas pela atitude que se explica quando os lemos com o título. Para exemplificarmos a questão recorremos a uma interpretação de Cid Seixas[19] sobre o assunto. Na página 31 do livro Gravuras ao Vento[20], de Oldegar Franco Vieira, há um haikai que nos permite dois níveis de interpretação. Vejamos:

Não mais florescentes,
no lixo largadas, são
flores – defloradas.

Em “Triste Bahia, Oh! Quão dessemelhante[21]” o crítico observa que

na suave tradição oriental de cantar a natureza, este haicai fala apenas em flores arrancadas do jardim que, depois de ornamentar a casa, jazem no lixo, despidas da sua beleza natural. Num outro plano, social, evocando a miséria da nossa terra, ou (universalmente) de qualquer lugar, o poeta em sua síntese retrata o destino das meninas prostituídas. Apesar da sua idade primaveril “não mais florescentes”, mas habitando a boca do lixo da cidade, onde tristes são defloradas.

Dando um título ao haikai tomado como exemplo, o poeta acabaria por determinar o seu entendimento, fazendo com que seu poema perdesse aquilo que no Japão é chamado de haimi, a combinação de elementos como espontaneidade, mistério e leveza, tão necessários ao haikai tradicional.

Considerações finais

Esse texto serve como prólogo para o nosso estudo sobre o haikai na Bahia, Dendê no Haikai, que em breve será publicado pela editora Via Litterarm. Como nosso objetivo é focar atenção maior no haikai produzido na Bahia, sugerimos, para quem quiser maiores informações sobre o haikai no Brasil, consultar os seguintes livros: “Oku – viajando com Bashô”, de Carlos Verçosa, Salvador, 1996 - Secretaria de Cultura e Turismo do Governo do Estado da Bahia - 570 páginas; “HAIKAI”, Paulo Franchetti (org.), Campinas, 1990 - Editora da UNICAMP, 244 páginas; “NATUREZA - BERÇO DO HAICAI”, de H. Masuda Goga e Teruko Oda, São Paulo, 1996 - Empresa Jornalística Diário Nip

[1] Autor de O haicai no Brasil, Editora Oriento, 1988
[2] A edição que possuímos é de 1947. Editado por W. M. Jackson, Inc. Editores. O referido texto se encontra entre as páginas 13 e 14.
[3] Autor de “Sages ET Poètes d’Asie”, Paris, 1918
[4] 3ª edição, editora Cultrix, 1977
[5] Haikai, 3ª Edição, Editora da Unicamp, 1996.
[6] O haicai no Brasil, H. Masuda Goga, Editra Oriento, São Paulo, 1988, páginas 30 a 34.
[7] Equivalente ao nosso pseudônimo.
[8] Segundo Shoichi Kodama (1950 apud GOGA, 1988, p. 33)
[9] Trad. Por Masuda Goga
[10] Escritor paranaense radicado na Bahia há mais de 30 anos.
[11] Secretaria de Cultura e turismo do Governo do Estado da Bahia, 1996. Uma das mais importantes obras sobre o haikai no Brasil.
[12] Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1931.
[13] Idem. p. 233 a 248.
[14] Segundo o autor (Franchetti, 1996 apud Observations on Haiku (publicado em Chanoyu – Quaterly (Tea and the Arts of Japan), nº 18, 1977, PP.21-27.
[15] Retirados do livro Flauta de Vento, Escrituras, São Paulo, 2005.
[16] Editora Senzala, 1968
[17] Melhores poemas de Paulo Leminski, Seleção de Fred Góes e Álvaro Martins, 7ª edição, Editora Gaia, 2006
[18] Franchetti, Paulo. O Haicai no Brasil. Alea, Dez 2008, vol.10, no.2, p.256-269.
[19] Crítico literário e poeta baiano.
[20] Massao Ohno Editor, São Paulo, 1994.
[21] Notas sobre a literatura da Bahia, Salvador, EBGE, 1996.

(Texto de apresentação ao caderno especial sobre o haicai, que será publicado na Zunái de maio.)

domingo, 25 de abril de 2010

GALERIA: ARTE PERSA (III)


UMA CONVERSA COM JOÃO MAIMONA

“O traço fundamental de um inventário possível reside no uso de uma linguagem que resulta das formulações fragmentadas da língua diária. (...) Pode assim dizer-se que poesia é o espaço privilegiado para redimensionar o diálogo com o mundo. É o único espaço onde é visível a dimensão interior da palavra.” João Maimona, uma das vozes mais inventivas da poesia contemporânea em Angola e uma das referências mais fortes para os autores que estrearam a partir da década de 1990, conversa com Abreu Paxe sobre o seu processo criativo, sua mitologia pessoal, suas leituras e o ambiente literário no país africano, que hoje desenvolve uma das literaturas mais expressivas da língua portuguesa. João Maimona é médico veterinário, professor, poeta, militante político e parlamentar. Sua formação literária e cultural, como observa Paxe, mescla influências europeias, e em especial portuguesas, francesas e belgas, com a herança bantu. É um poeta “da fronteira”, que consolida, conforme a definição precisa de Gilbert Durand, “as estruturas antropológicas do imaginário”. Em livros como Idade das palavras (1997), Festa de monarquia (2001) e Lugar e origem da beleza (2003), o poeta cria um fascinante idioma particular, em que as imagens, metáforas e sua dicção única alteram o sentido habitual das palavras e sua relação com o mundo, explorando novas dimensões da sensibilidade e da imaginação e criando novas realidades poéticas.

Zunái: Ao olharmos para os títulos de seus livros, incluindo o de teatro, temos a sensação de que você busca a mudança, de que algo precisa ser reiventado, transformado, alinhado. Você dá nomes novos aos sentidos que perceberíamos da mesma forma; são os casos de Trajectória obliterada, Traço de união, Diálogo com a peripécia, As abelhas do dia, Quando se ouvir o sino das sementes, Idade das palavras, No útero da noite, Festa de monarquia, Lugar e origem da beleza, O sentido do regresso e a alma do barco. Fale-nos da textura desses títulos, que estruturam, sem obliteração, a sua obra artística.

João Maimona: Entrei no mundo da literatura com um sinal de esperança no rosto propondo o título TRAJECTÓRIA OBLITERADA. Com esta coletânea de textos acabava de iniciar uma digressão que considero, hoje, suficientemente maravilhosa com sentido de rigor e perspectiva crítica; pude reunir uma dezena de títulos que apresentam um conjunto paisagístico com pormenores de mensagens… Da realidade de construção/destruição ao tecido de alegria /pessimismo, passando por instantes vazios/plenos e até de inesperadas congruências. Ao longo dessa viagem, procurei orientar os meus passos para a aquisição de instrumentos linguísticos em constante transformação. A magnitude da minha gramática da criação encontra seu suporte na intimidade que procuro manter com a imagem que vem do cotidiano, através de um olhar lúcido e sem ambiguidade. Uma boa parte dos textos que conformam estes títulos parece celebrar o capital que inventei. Para sustentar o que acabo de afirmar, tomo a liberdade transcrever na íntegra a nota do autor livro LUGAR E ORIGEM DA BELEZA:

Fidelidade gramatical oblige, procurei revisitar a minha obra poética. Na pequena história da arte moderna, o que ofereci à sociedade, descobri uma odisseia textual. Redescobri as vias e as árvores – paisagem que sugerem uma esperança crescente. Redescobri também a presença do véu.

A greve e o repouso dos navios. E veio o sentido da musicalidade. A multiplicidade de exemplos de adjetivação, patentes na minha obra, reafirmava o meu desejo de concretização de um projeto com função gramatical: homenagear, em percursos da expressão sugestiva da metáfora, da metonímia e do símbolo, um magnifico tempo verbal: o pretérito imperfeito do indicativo. E decidi oferecer à sociedade, por escrito e em universos poéticos, este LUGAR E ORIGEM DA BELEZA.

(...)
Zunái: Como falar de poesia ou o que é poesia? Qual das formas prefere, para tratar de um assunto tão sério como é a poesia, vista numa cultura em que com um traço de união ela se vai libertando gradativamente do papel?

João Maimona: Poesia: um quadro de fascínio. O fascínio da aventura no bom sentido. O ensejo de elucidar o dever de memória. Caminhos para uma tentativa de resposta. Pode assim dizer-se que poesia é o espaço privilegiado para redimensionar o diálogo com o mundo. É o único espaço onde é visível a dimensão interior da palavra. É o único espaço onde é palpável a hierarquia de estruturas verbais. Infelizmente, hoje em dia, pouca gente lê poesia. As editoras viraram as costas à poesia. As editoras africanas conseguem fazer a diferença. Os títulos felizes são divulgados com uma tiragem elevada: mais de mil exemplares; o que é raríssimo na Ocidente. Eu continuarei a afirmar que o futuro da poesia universal está em África. O continente negro aparece com propostas poéticas fascinantes.
(...)
Zunái: Como leitor, acredita que a poesia em Angola ainda acontece ou ela está parada no útero da noite e no propalado empobrecimento criativo evidente em parte nalguns poetas, ou pensa ainda que a quebra das tertúlias e a ausência de revistas literárias terá contribuido para tal situação? Que opinião tem sobre a poesia hoje?

João Maimona: Em Angola, existe uma paisagem poética que atrai simpatias de leitores de diversos horizontes. Conheço poetas que cultivam a vontade de compromisso com a estética. São poetas portadores de textos que estão à altura dos novos tempos. Têm a preocupação de reinventar a palavra. A insuficiência de culto na produção literária traduz apenas uma parte da realidade de animação cultural no país. Todos aqueles que assumem a relação com a literatura devem optar por uma inversão de percurso. Isto é sair de um percurso de apatia, um percurso de inércia para um percurso de participação ativa, um percurso de combate no universo de animação cultural. Acredito plenamente na inversão de percurso. Em breve, teremos espaço para a divulgação da literatura de ideias.
Zunái: Será que a poesia em Angola e a literatura, de uma maneira geral, tem espaços para a sua divulgação? O que pode falar da relação, por um lado, poesia e ensino e, por outro, poesia e media, esta última agravada com a atitude da atual direção do Jornal de Angola de suprimir o suplemento Vida cultural?

João Maimona: A poesia em Angola faz parte das mais belas manifestações do registo histórico do olhar. Reconhece-se um sentido de divulgação da poesia. Reconhece-se um sentido de crescimento em termos de produção. Reconhece-se um sentido de vontade de desenhar uma nova geometria, uma nova história: a ruptura com traços convencionais. O instante é de inovação. Lamentável é o fato de a intellegentia angolana não dispor de espaços para a divulgação da literatura de ideias. Desapareceu o suplemento cultural do Jornal de Angola que aparecia como um autêntico vetor de comunicação. Um elemento unificador no universo das diferentes formas do comportamento social.

Zunái: Sente-se realizado como poeta, ou será que depois desse edificio poético que ostenta só atingiu o zero (A. Neto), para começar a celebrar o lugar e a origem da beleza?

João Maimona: Uma pergunta simpática que me leva a falar do meu percurso. É uma história que se inicia com as leituras de Paul Claudel, Saint Jonh – Perse, René Char, Eugénio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Tchicaya U Tam Si e António Jacinto. Leituras que fizeram com que eu adquirisse um choque poético. É na decada de 70 que começo a dialogar com a palavra poética. Assim fui andando, conciliando os estudos de medicina veterinária, a atividade profissional e o trabalho de pensamento. Eu diria que me sinto feliz. Por ser uma referência obrigatória da literatura angolana. Por ser um expoente da poesia elegíaca. Por ter sido considerado o melhor poeta surgido no pós–independência. Por ser uma voz nova, uma nova postura, uma nova visão que entraram direito na poesia angolana. Fui falando e retomando palavras de outras vozes sobre a minha obra poética. Agora diria que me sinto feliz por ser criador de palavras e imagens que apaixonam. Graças à poesia, sinto-me colocado numa estrada que me permite olhar para o mundo e para os homens que o constroem.
(Trechos da entrevista que Abreu Paxe fez com João Maimona para a edição de maio da Zunái, aguardem!)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

GALERIA: ARTE PERSA (II)




POETAS DO PARÁ: ANTÔNIO MOURA

MONUMENTO A PASCAL

I

Nunca buscamos as coisas,
mas sim a busca das coisas.
O rei está rodeado de gente
que não pensa senão em divertir o rei
e impedi-lo de pensar em si mesmo.
Com o coração oco
e cheio de imundície
corremos despreocupados
para o abismo – o último ato,
sempre sangrento, por mais belo
que tenha sido o resto da comédia.

II

Três graus de latitude alteram
toda a jurisprudência:
Um meridiano decide a verdade.
Curiosa justiça que um rio delimita.
Do outro lado do mar, um homem
se dá o direito de me matar,
só porque o seu príncipe tem
uma disputa com o meu,
embora, eu, contra ele, nada tenha.

Meu e Teu – eis o começo e a imagem
da usurpação de toda a terra.


III

Quantos reinos nos ignoram.
Abismado na infinita imensidão
dos espaços que ignoro e me ignoram,
não vejo – como uma sombra
que dura um instante irreversível –, senão
infinidades por todos os lados,
visivelmente perdido e caído
nas trevas impenetráveis
do Universo que me encerram.
Uma esfera infinita, cujo centro
está em toda a parte e a circunferência
em parte alguma.

Deus é um Deus escondido.

IV

Nunca nos detemos no presente.
E nada se detém para nós – rio de Babilônia.
Não procuremos, pois, segurança
nem firmeza.
De nada me adianta possuir terras.
Pelo espaço, o Universo compreende-me
e absorve-me como um ponto.
Pelo pensamento, sou eu
que o compreendo.


V

A medida que aumentam as luzes
aumentam grandeza e miséria,
desde a presunção desmedida
ao mais horrível abatimento.
A natureza do homem, bambu pensante,
não é ir sempre, tem suas idas
e vindas.
Monstro incompreensível, não é anjo
nem besta e, desgraçadamente,
quando quer ser anjo
acaba por ser besta.

O frio é agradável
para podermos aquecer-nos.
Tenho dentro de mim
o tempo bom e os nevoeiros.


VI

Dirigimos o olhar para o céu,
mas firmamo-nos na areia.
Um princípio de tudo.
Tudo por Ele,
Tudo para Ele.
Incapazes de ignorar totalmente
e de saber com certeza,
temos uma imagem da verdade
e possuímos a mentira.
Glória e refugo do universo.


VII

O menor movimento importa à natureza.
O mar inteiro muda por causa de uma pedra.
Nenhum abatimento incapaz do bem.
Nenhuma santidade isenta do mal.
Esplêndida maneira de receber
a vida e a morte, os bens e os males.

Paris, verão de 2004

(Leiam mais poetas do Pará na antologia organizada por Nilson de Oliveira para a Zunái de maio.)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

GALERIA: ARTE PERSA (I)


POETAS DA PÉRSIA: OMAR KHAYYAM

No céu, a mão esquerda da alvorada: eu sonho.

Na taverna, uma voz escuto na algazarra

Despertai meu pequenos, e enchei bem o copo

Antes que seque o vinho da vida em sua jarra.

Ah enche o copo! De que serve repetir

Que o tempo sob os nossos pés já vai fugindo?

O amanhã não nasceu e o ontem já morreu,

Por que me hei de importar se o dia de hoje é lindo?

E ao côncavo invertido que se chama o céu,

Sob o qual rastejaram o vivo e o que morreu,

Não erga tuas mãos, tu que oras. Ele é impotente

No seu guiar, tal qual o somos tu e eu.

O dedo que se move escreve, e tendo escrito,

Se vai. E toda argúcia e piedade, entretanto,

Não o trarão de volta a mudar meia linha,

Nem as palavras podes apagar com o pranto.

E se o vinho que bebes, o lábio que beijas

Finda nesse nada que a tudo dá sumiço,

Imagina, então, que és; não podes ser senão

O que hás de ser – Nada! Não serás menos que isso.

Tradução: Alexandre S. Rocha

(Leiam outros poetas persas na edição de maio da Zunái.)

GALERIA: FRANCISCO FARIA (VI)




POEMAS DE ARIANE ALVES DOS SANTOS

PRISÃO DO AR

As sílabas se dissolvem na saliva
Trespassa a agulha
Cravada na gengiva.

Flutua a fratura do silêncio.

Sou esse sopro
Naufrágio de pássaros
Canto que transmigra em tremores

Um marujo no útero da terra.


MIRANTE DOS SONHOS

Olhos alados na curva do tempo
Absorto na fechadura das parábolas
Arrasto o pedúnculo da memória.

Pelos declives de ipês pranteados
Dedos de lâminas trançadas
Acariciam a aurora
Nasce o susto.

Expira
Fragmentos de mica
Constroem o céu
Inspira
O halo ambarado pousa na pele

Descanso com os pés imersos à vida.

DISSOLUÇÃO

As paredes debulham
Um pranto espesso

Um sono de arsênico
Apaga as sombras
E o corpo é uma residência
Bombardeada - projétil apontado para
O deserto.

Tudo se faz ilha
Beira-mar de chumbo

Olhos raptam um manto cinza
As pupilas resistem
E cristalizam uma faísca
Indomável de vida

Os faróis dançam na tormenta
O crânio solda o peso do dia - coral flutuando
Nas mãos do martelo

Teu abraço tudo dissolve.


SEM TÍTULO

I

Ele é um homem
que arrasta os dedos
nos bolsos
Guarda violinos
nas costas
Perfura subterrâneos
de desordem
Descansa em casas
vazias
Constrói vitrais
no mar
Oferece minuetos
aos pés
Percorre a via férrea
da velhice
E jura a vida
diante da rocha.

II

Circularmente
as lâminas resvalam o maxilar

Há dias carcomidos
em que o esqueleto
não suporta o mais leve
sobressalto
Há dias
em que o sol é uma úlcera
cerrando os olhos
E o abismo um feixe
de âmbar e sal

É o homem
que apunhala as raízes
dos cadáveres

Não há retorno

Você
Fratura o percurso ígneo
da noite taciturna de braços em riste.
Recriando
os oceanos dos cabelos dos loucos.

(Leiam mais poemas da Ariane na edição de maio da Zunái.)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

GALERIA: FRANCISCO FARIA (V)


POEMAS DE NORMA COLE


CORRENTEZA

Há uma sombra sobre a cidade
a luz, como sempre evidenciando e apagando

Diga apenas que
sonha incêndios toda
noite suavizando toda
página que colapsa da

garganta falando
numa série
de medidas no
meio do deserto

a vida perfeita
numa série
de gestos medidos
um convite para

ver o mundo
de uma ponte
que queima na
noite seguinte


SUMOUD

Uma vez vi uma noiva andando na areia…
– JEAN SAID MAKDISI, Beirut Fragments

Pó sobre as reguas . Um ferreiro batendo numa bigorna. Ensaio da situação da cidade.

A ideia era não partir. Fios do meu cabelo colados no seu rosto, um interior ultracompacto com áreas de água fresca no fundo. Escrever era dar significado, concentração poderia significar resistência.

Um estranho para mim, ele derramou a própria bebida. Vi como um sinal. Minha vila foi apagada do mapa.

Alguém atravessa a rua perto do porto. Depois da viagem, pão quente com tomilho e azeite de oliva.

Desfaz as regras do jogo, a linha verde que é o cruzamento. As crianças estão amarradas às camas para não pisarem no vidro estilhaçado com os pés descalços.

Devolve a informação, um campo de nós coloridos. Sumários em lugar algum. Escolha ou a ilusão da escolha. A boa notícia, ele não ficará cego.

Traduções: Flávia Rocha

(Leia mais poemas de Norma Cole na edição de maio da Zunái.)

domingo, 18 de abril de 2010

GALERIA: FRANCISCO FARIA (IV)


POEMAS DE SHU WANG

UMA VELHA HISTÓRIA

Desde que Pan Gu criou o mundo
Só deixou um punhado de loess infértil
À mãe que com o seu seio mirrado
Aleitou a cultura do dragão
Ao longo do Rio Amarelo
Vagas ressequidas vão para Ocidente
Ainda abandonam no deserto de Gobi
Alucinados camelos sequiosos
Que parecem ter visto demônios
Dunas que esboçam cinturas nuas
O sol exausto já não pode puxar a roda
Apenas a serpente, gárrula e erudita
Faz perguntas de assombrar, uma após outra
Pregando incessantemente para o deserto
A história antiga ao fio dos séculos repetida.

TERRA NATAL

Um corvo em ferro fundido de olhos cegos
Voando sobre o lúgubre rio lodoso

Um caule quebrado de artemísia absinto
Caindo na fenda da húmida falésia

Um velho, carregando o seu declínio
Arquejante sobe a íngreme encosta de loess

No seu peito aberto sopra o seco vento Noroeste
De súbito ignora o sonolento sol poente e grita:

“Oh, eh! ………ai!!! Minha terra!
Minha terra natal, onde é que isso fica?”

NOITE EM DUNHUANG

Do nicho escuro da Gruta de Mogao
Eis o bosque tremulante de faias negras
Véus que esvoaçam sobre espáduas
Varrendo as dunas nuas ondulantes
Leves como sementes de dente-de-leão
Deixam um feixe brilhante de rabos-de-égua
Em silêncio pespontam a quietude do ermo
O vento no planalto rezinga como um alaúde
Incita a branca lua a derramar o seu ímpeto
A deusa da liberdade nada tem que temer
Do alto céu ela mergulha no rio do amor
Inebria-se na luz esplêndida das estrelas
Canta e dança arrebatada pelo sonho
Enche o mundo inteiro de ternas emoções
Como água pura fluindo suavemente.

Tradução: Fernanda Dias

(Leia mais poemas de Shu Wang na edição de maio da Zunái.)

sábado, 17 de abril de 2010

GALERIA: FRANCISCO FARIA (III)


POEMAS DE YAO FENG

SILÊNCIO

Ao cabo
pusemos o silêncio no centro,
como se põe a mesa,
para a qual nada foi servido.

O banquete tinha já acabado
E, nunca mais, a mesa,
deixaremos florir a língua.

Silêncio. Apenas o canto eventual
o desperta.
O que murmuram os pássaros
nos ramos do sonho?
Não sonhamos de novo,
nesta noite menos nossa.
Ainda o silêncio. O vento sopra
a abundância do teu cabelo:
o grito, o uivo

VIAGEM

Torci a sombra atrás de mim
para fazer uma corda.
Caminho em silêncio
levando a corda a estrada, este cavalo velho.

Todos os dias o pôr-do-sol é um aborto
e o relógio tem em si a suficiência do tempo.
No fundo da noite, não há direcção
só o redor, o além.

Um por um, tiro do corpo os fósforos
cuja cabeça encarnada
rompe com o muro do escuro.

(Leiam mais poemas desse autor chinês de expressão portuguesa na edição de maio da Zunái.)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Caros, acabou de sair o n. 20 da Coyote, uma das revistas literárias mais importantes do país, editada há oito anos por Ademir Assunção, Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Losnak. Neste número, que tem capas do fotógrafo Egberto Nogueira, destacam-se os poemas de Bob Kaufmann, o diário de sonhos de Ana Hatherly, um conto de Delmore Schwartz, além de textos de Mário Bortolotto, Mitiyo Sugimoto, Samantha Abreu e Luis Felipe Leprevost, entre outros autores. A revista pode ser comprada no site da editora Iluminuras, http://www.iluminuras.com.br/. Mais informações sobre a Coyote no blog Estúdio Realidade, http://estudiorealidade.blogspot.com/

GALERIA: FRANCISCO FARIA (II)


POEMAS DE MALCOLM DE CHAZAL

A luz
Com
Cada cor
Muda
De
Pele.

O amor
Sem
Meta
É
A fonte
De
Todos
Os ódios.

As cifras
Sempre
Se
Enganaram
Por causa
Do zero.

As palavras
Desde
Tempos
Imemoriais
Procuram
Sua
Significação.

O espelho
Conhece
Apenas
Suas costas.

Deus
E
Diabo
Reunidos
Dão
Histeria.

* * *

Os barcos
São
Femininos
Nos
Portos
E
Machos
No mar.

O nascido-cego

As cores
Dos
Sentimentos.

* * *

A lógica
Nunca
Se
Raciocinou.

O pássaro
Que
Tem medo
Se sente
Na gaiola.

Quando
Uma rocha
Morre
Ela não
Precisa
Se enterrar

O fio
É
Uma linha
De ruptura.

Tradução: Éclair Antonio Almeida Filho

(Leiam mais poemas do autor na edição de maio da Zunái.)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

GALERIA: FRANCISCO FARIA (I)


POEMAS DE JOYCE MANSOUR

Receba minhas preces.
Engula meus pensamentos poluídos.
Purifique-me: que meus olhos se abram
Vejam o sorriso interior dos assassinos.
E uma vez pura
Judas crucifique-me.

* * *

Era ontem.
O primeiro poeta urinava seu amor
Seu sexo em luto cantava ruidosamente
As canções guturais
Das montanhas
O primeiro deus ereto sobre seu halo
Anunciava sua vinda sobre a terra esvaída
Era amanhã.
Mas os homens com cabeça de gato
Comiam seus olhos embaraçados
Sem notar suas igrejas que queimavam
Sem salvar suas almas que fugiam
Sem saudar seus deuses que morriam
Era a guerra.

* * *

O APELO AMARGO DE UM SOLUÇO

Venham mulheres de seios febris
Escutar em silêncio o grito da víbora
E sondar comigo o baixo nevoeiro ruivo
Que infla de súbito a voz do amigo
O rio é fresco em torno do corpo dele
Sua camisa flutua branca como o fim de um discurso
No ar substancial avaro de conchas
Inclinem-se moças intempestivas
Abandonem seus pensamentos de chapeuzinho
Suas imbecis molhadelas suas botas rápidas
Um redemoinho se produziu na vegetação
E o homem se afogou no licor

Tradução: Éclair Antonio Almeida Filho

(Leiam mais poemas da autora na edição de maio da Zunái.)

terça-feira, 13 de abril de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (XIII)


CÂNONE E ANTICÂNONE (X)

Antero de Quental diz ainda, em A Dignidade das Letras:

"Não, meus senhores. Eu não tomei nas mãos o pendão só pelo amor da destruição.

Menos, a presunção orgulhosa de gladiador novo, cuja audácia impaciente não conhece prudência e procura os mais robustos e aguerridos para o desafio e o combate. Menos ainda, o escândalo. Não, meus amigos. Não vale realmente a pena comover-se a gente quase até a veemência, indignar-se quase até ao sofrimento, chamar a sua inteligência e o seu coração, só para responder com grandes frases a pequenos golpes de gente ainda mais ignorante do que malévola.

(...)

Não foi por isso, pois, que eu intentei fazer desacatando a venerabilidade sacerdotal do sr. Castilho. Não foi defender uma escola, um grupo, uns homens. Foi só defender a liberdade e dignidade do pensamento, que nesse momento se ofendiam na chamada escola de Coimbra, no trabalho de alguns homens (bom ou mau, não curei de o saber) mas trabalho livre, independente, trabalho santo pois, e digno de respeito.

(...)

Sem espírito não há liberdade; sem liberdade, não há espírito. Ora, esta é a alma, a vida, a essência das literaturas, da poesia, da arte, de todo o trabalho do pensamento e da inspiração. Literatura que respeita mais os homens do que a santidade do pensamento, a independência da inspiração; que pede conselho às autoridades encantadas; que depende de um aceno de cabeça dos vizires acadêmicos; essa literatura não é livre – ubi liber tus ibi spiritus – não tem, logo, espírito, não é viva e poética... não existe pois como coisa alta e ideal, isto é, não existe, porque só ideal e alta se concebe literatura e poesia. Bastava-me isto só para condenar o sr. Castilho, as suas doutrinas, o seu procedimento. Se isto é verdade, se não há verdadeira poesia fora desta alta e digna independência, o sr. Castilho é o maior inimigo da poesia portuguesa, porque quer matar nela aquilo que é a sua essência, a sua força, a sua vida.

(...)

O escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, intemerato e incorruptível. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras.

(...)

Ora concebe-se, já não digo o grande homem, que nem todos podem ser, mas o homem de bem, que todos têm obrigação de ser, pedindo o auxílio de uma autoridade qualquer para pensar, consultando o termômetro da conveniência e aprovação dos mestres para falar, recebendo o santo e a senha como um soldado disciplinado, feito autômato e escravo na coisa espontânea e individual por excelência, o pensamento? Um homem de bem não faz isto: e toda a literatura que o faz é uma desonesta literatura.
(...)

Se a tirania da moda e da opinião é insuportável, não o é menos a dos mestres e das reputações opressivas e orgulhosas; que tendo-se em vista dizer alguma coisa nova, descobrir, não copiar e repetir, bom é que haja liberdade de procurar, que não se perturbe nunca o pesquisador de bem e de verdade, ainda aquele que a pretende encontrarnos desvios mais arredados e estranhos; que se creia no possível e se respeite ainda o erro quando for filho de um desejo tão sincero e de um tão honroso empenho. Ora isto é que não fazem as literaturas oficiais. Não concebem salvação fora do grêmio estreito de suas igrejas, para não dizer capelas e oratórios. Não entendem outras palavras senão as poucas do seu dicionário incompleto e mutilado. Acham que o mundo está todo explorado, todas as ideias, todos os sentimentos, todas as formas, e que tudo isso o têm eles nas suas gavetas e nas suas pastas.

(...)

Isso assim pode ser que seja útil, fácil, vantajoso; pode ser que assim se conquiste a opinião das maiorias boçais, que dão a fama, ou o favor, das minorias inteligentes, que dão alguma coisa melhor do que a fama, que dão a importância, o interesse e o poder. Pode ser que seja hábil isto e até profundo – só não é nem digno nem verdadeiro.

Mas são assim as literaturas oficiais, governamentais, subsidiadas, pensionadas, rendosas, para quem o pensamento é um ínfimo meio e não um fim grande e exclusivo; para quem as ideias são uns instrumentos de fortuna mundana, uma ocasião mais de sacrificar as pequenas ou más paixões, em vez de serem uma fortaleza onde se guardem do contato das impurezas e das misérias; para quem esta santa tribuna da palavra não passa de um marco donde lancem o pregão de vergonhosos leilões; para quem a glória é uma especulação feliz, não uma sagrada palma que épreciso colher com mãos puras; para quem, enfim, nobreza, desinteresse, ideal, sinceridade, sacrifício, são apenas boas e sonoras palavras.

(...)

São assim as literaturas oficiais; e o que mais, podem ser doutro modo?

(...)

Como não buscam a verdade pela verdade, a beleza pela beleza, mas só a verdade pelo prêmio e a beleza pelo aplauso, têm de as renegar tantas vezes quantas a beleza não agradar aos olhos embaciados da turba que aplaude, e a verdade ofender os senhores que premeiam e recompensam.”

segunda-feira, 12 de abril de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (XII)


CÂNONE E ANTICÂNONE (IX)

Antero de Quental publicou em 1865 A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, texto de polêmica com Antônio Feliciano de Castilho que mantém plena atualidade, não apenas pela força das ideias, mas sobretudo pela atitude ética do poeta português. Transcrevemos aqui alguns trechos, mas vale a pena ler o texto na íntegra.

“Devo estas explicações ao público e a mim mesmo sobretudo.

Sim: sobretudo a mim, à minha própria dignidade moral. Na hora em que eu não pudesse confessar sem receio ou vergonha, a esse severo juiz que temos dentro, os motivos de uma opinião, de uma frase, de uma palavra sequer proferida numa ocasião grave, na hora em que me visse obrigado a ocultar a consciência, que julga e sentencia, um só ato da inteligência, que pensa e determina – fosse embora aquela frase brilhante e aplaudida, fosse aquela determinação atrevida e admirada – eu é que não poderia nessa hora sentir nos lábios as doçuras do triunfo, mas só no coração todas as amarguras de uma consciência perturbada, o fel da baixeza e da injustiça própria.

O público, esse, tem direito a perguntar-me por que me levanto contra as imagens gloriosas ante que ele se inclina; por que não admiro o que ele ama; por que não respeito o que ele adora; por que me atrevo contra o voto das gentes e a opinião comum.

Estranho desacato, com efeito! Na pessoa de um dos seus escolhidos, ofendi eu toda a opinião, o juízo, o gosto, o sentir de quantos o tenham levantado sobre os braços e sentado na cadeira da autoridade e da glória. Reputam-lhe merecimentos dignos de admiração e respeito. Eu, revoltando-me, é como se dissesse ao respeito e à admiração pública: ‘Sois cegos e insensatos; enganai-vos; o que a todos vos enleva e faz pasmar não é grande gigante, é só nuvem e fumo mentiroso’.

Isto é grave. É preciso firmar-se quem disser isto em boas e sólidas razões, porque se não contradiz tanta gente só pelo gosto de contradizer. Ao público devemos-lhe isto: de lhe não falar, senão em nome de alguma coisa alta, de algum bom princípio, de alguma razão inabalável.

É o que a mim me acontece.

Se ao público e à consciência que me interrogam pelos motivos de uma ação grave por mim praticada eu não tivesse para responder senão paixões, capricho, vaidades, eu seria então, para aquele, quando muito, um iconoclasta atrevido mas sem nobreza nem razão, e o que é pior, para esta um espírito escurecido, sem clarão de justiça, sem luz moral.

Nada disto acontece, porém. Interrogo-me na austera serenidade do meu trabalho interior e acho-me limpo e inocente. Não sacrifiquei ao orgulho, ao interesse, ao egoísmo da mais pequenina das vaidades — a vaidade literária. Nada disso. Falei verdade: e esta só palavra explica o silêncio, ou os desconcertos, piores ainda que o silêncio, daqueles a quem me dirigi; e por outro lado, explica a serena constância com que me levanto de novo para sustentar, para confirmar os sentimentos, as idéias e as palavras que esse amor da justiça e da razão me inspirara.”

O texto de Antero de Quental é enorme, e com certeza não cabe no espaço de um blog, mas irei divulgando aqui alguns trechos mais contundentes.

A Dignidade das Letras um exemplo de manifesto polêmico, apaixonado, mas ao mesmo tempo com embasamento intelectual e ético, o que faz tanta falta às discussões literárias hoje em dia.

domingo, 11 de abril de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (XI)


PAPEL DE RISCOS


TELA BRANCA

Sob o branco
a luz
sombras e curvas
cinema
grafo de peles
e poros
tela branca
nódoas
promessas
girassóis.

Sob a trama
olhospestanas
pele em ondas
e sua voz sob a sombra
cega
ceifa
meus girassóis.

COMO SE E NADA FOSSE

Sob a luz
como se
sumisse
como se
a luz
submissa sentisse.

E este silêncio...

(como se dissesse tudo
e nada fosse)

amortece
como se
uma sonda
emigrasse
sob a luz sua sede
e sonhasse
no vazio da mira
a sombra
do impasse.

* * *

DISSONÂNCIAS

Para o Lau,
um poeta que se desnuda
olhando a lua
em noites de lua
nova.

e esse encanto
a lápis desenhado
cada nota
na pauta
é como se
a falta
ecoasse um lá
num dó
em desacordes
de mim.

(Poemas de Susanna Busato. Leiam mais no blog http://www.meupapelderiscos.blogspot.com/)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (X)


NIGRA SED PULCHRA


venus amoris: bela, aphrodisea, labial, naturalis, divinal, imagini magi: perversa, polimorfa, bárbara arcana, gótica picatrix, putana: poma floresque in manu dextra (occulta) & in sinistra erecti ignem flores: faminta, ofídica, felídea, curvilínea, bestia domina, encantatrix, bruxuleante: Alucinógena Máxima: plutônica, úmida, cálida fenestra: arrogante, amorosa, barroca virgo violata: vagabunda, adorada, phoecunda: venérea venerada
* * *

TESSERA: DUPLO RAPTO

Era um escândalo que estivessem no Pai sem percebê-Lo

Estamos entrando agora na zona de sombra (estriada) do Estranhamente Outro, / dos velhos vinhos do inverno quando os jardins sibilam lentos & iniciam seus incêndios / & a cauda do pavão se agita & repousa sobre estas pálpebras de citrino / na febre africana das estrelas que estremecem nas bordas do zodíaco & desabam / sobre as afinidades eletivas destes rastros entre brasas novamente recicladas / nas órbitas excêntricas da alta pirataria do pensamento cósmico-planetário, / nas chamas xamânicas das palavras repetidamente iluminadas & obscurecidas / (ó lábio carnal da realidade que bebe meu sangue & retorna) / com todas as suas penas & garras de ave de rapina & suas escamas & línguas bifurcadas de serpente / o Grande Espírito / dançou / seus lentos milênios de cópulas, de mundos que se desintegram / & refazem: chamem seus animais, chamem suas fêmeas para presentear a Presença: poções, /ó veneno/ abrindo tuas entranhas com estes outonos de Sol, turvos & turbulentos, / enquanto meu tato toca peles pintadas de panteras & o elétrico veludo das negras arraias / entre as estranhas mutações desta crisálida, entre novos objetos & animais em vias de extinção, / devastando o vasto banquete do universo & todas estas orgias & tragédias / (ó lábio carnal de ninfeta que bebe meu sangue & retorna): / nós pagãos seríamos chamados a sonhar juntos, hereges de uma outra linhagem, a Ausência Ardente, / & exposto assim à verdade vertical do absoluto o verão vem terminar sua viagem / no grande trígono astrológico do amor (sublime), da baderna & da beleza (bárbara) / & quando a primavera novamente menstruada regressar com a morte entre as pernas & estes alegres carnavais cruéis / eu estarei Silencioso & Louco //(repito literalmente & em todos os sentidos minhas verdes alucinações de ervas, nossas Línguas Ébrias / & lúcidas). // A outra voz vem da vertigem.

S. Paulo, 1980 - Visconde de Mauá, 1982 - S. Paulo, 1992

(Poemas de Rubens Zárate. Leiam outros textos do autor no blog http://nigrasedpulchra.blogspot.com/)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (IX)




CHOCOLATE AMARGO

PORÉM

A noite está calma calma calma calma.
Porém, o trompete está nervoso.
A melancólica, porém doce lembrança
de quando acordou apenas com as pérolas
no bar dos marinheiros.
A metálica, porém fosca cobrança
de quem deixou as sandálias
na rua dos salgueiros.
Tudo está bem agora.
Está tudo certo.
A noite está calma calma calma.
Porém, o escuro está inquieto.

ANOS LOUCOS — A ERA DO JAZZ

Anos loucos
Ela murmurava dormindo
Anos loucos
Ela sonhava ronronando
Imaginando ser Zelda Fitzgerald
Uma gata dormiu esperando a dona
Cujo colo é adornado por um pequeno crânio de prata.
Anos loucos para as duas
Que o anjo de Rolls Royce amarelo sempre as acompanhe
Vida de jazz, amor e champanhe

* * *
Uma moça com cheiro de curry e gengibre nas mãos não é coisa fraca.
Pode acreditar.
E se ela estiver ouvindo Piazzolla, é pior ainda.

(Poemas de Greta Benitez. Leiam mais no blog http://gretabenitez.blog.uol.com.br/)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (VIII)




O LIVRO DOS VENTOS


O mundo faz-se do olhar
espaços sugeridos pela diagonal
planos sem volume
dissolvem-se na memória

As mãos lentamente
erguem a escritura das ondas

O olhar afoga-se
por entre o anil do céu
e o musgo das árvores
compõe-se o quadro dos amantes
navega-se sobre as águas do ar
plumas semeadas de olhos

O navio alça-se pássaro
lança-se em águas etéreas
a âncora faz-se ânfora
os corpos entrelaçam-se
na trilogia do sonoro do diáfano do móbil
na ânsia do toque
os olhos
mergulha-os no aquário
com peixes vermelhos

* * *

no branco-lírio dos olhos
é noite
primavera de astros

firo os pés em estrela marinha
flor de pedra
vermelho coágulo

sangro fome de pássaros

* * *

o vento cobre o barro
o oleiro faz do vaso o vazio
opala derramada
sobre o negro dos olhos

o barro cobre o vento
o oleiro faz do vazio o vaso
a mesa outonal desfaz-se em folhas

(Poemas de Jacineide Travassos. Leia mais no blog http://aodisseiadepenelope.blogspot.com/)

sábado, 3 de abril de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (VII)


NAUTIKKON

Eu sou uma criança incorrigível: não há mais saída pra mim.

Eu creio em cavalo azul que respira música pelas narinas.

Sou anacrônico, talvez; eu creio em mulheres de vento que dançam tango rente às águas e mergulham nas águas pra colher anêmonas no fundo do mar.

É óbvio que a poesia é algo pra depois da morte física. Somos urdidos com milhões de fótons. Fóton: unidade de energia luminosa: a menor partícula possível da matéria.

Não é possível ver um fóton a olho nu; então estamos falando do invisível, que é um excesso de não ser.

O que em nós é invisível ressuscita: a música é invisível; a voz é invisível; o perfume é invisível.

A palavra, que guarda em si resquícios de um hálito, é igualmente invisível.

Niels Bohr diz textualmente: "Num pingo que faço, com a caneta, nessa folha de papel, há 10 milhões de átomos e 100 milhões de fótons".

Eu creio num fogo nas caves do pulmão; eu creio na barca da palavra, no sopro do abismo; eu creio, sim, na ressurreição, não do corpo, mas de nossa Tocata e Fuga visceral.

* * *

Sonho, ao amanhecer, já separado e longe, que estou pendurado na beira daquele terraço da Sunset Boulevard, com apenas uma das mãos, e se caio daqui, se não sei voar, mergulho nesta piscina que podia ter sido outra.

Estou condenado ao desespero – atravesso o deserto com uma pedra no bolso – arrasto encardidos pés pelas arborizadas, as ruas.

Carrego o coração vazio e uma palmeira na mente.

* * *

Coisa: aquilo que de algum modo é: assim coisa pode ser o Deus, uma linha de Paul Klee, um piano de Thelonius Monk, o areal, a xícara, o pão, o medo, o ventilador, a moeda persa, a clavícula, o aqueduto, a música de Mozart, o calabouço, o demônio, o vento, o abismo, a salgada branca espuma, o mantra, o astrolábio, o senhor Buddha. Nenhuma coisa é quando falta a palavra. Somente quando se encontra a palavra para a coisa, a coisa é coisa. Não será essa coisa, o que e como ela é, algo em nome de seu nome? Não se trata de agarrar com a palavra o que já está vigorando, nem de a palavra ser instrumento para a apresentação do que é dado. A palavra nasce no instante em que está sendo respirada: o uso é sua respiração. A coisa: o Deus, uma linha de Paul Klee, um piano de Thelonius Monk, o areal, a xícara, o pão, o medo, o ventilador, a moeda persa, a clavícula, o aqueduto, a música de Mozart, o calabouço, o demônio, o vento, o abismo, a salgada branca espuma, o mantra, o astrolábio, o senhor Buddha: só começa a respirar quando usamos a palavra. A palavra é que dá viço à coisa que, de algum modo, é. A pedra preciosa e delicada da palavra some quando a palavra falta. A palavra é um nada e esse nada é a voz do silêncio: a voz insonora. A voz do silêncio: aquilo que se ouve e não tem som. Aquilo que se ouve e não tem som, o que é? É nossa alma contruída durante o tempo: e alma é dessa matéria indizível: diamante sonoro ou perfume de mulher.

(Poemas de Fernando Karl. Leiam mais no blog http://www.nautikkon.blogspot.com/)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (VI)


NOZ-MOTIM


sapos circenses explodem na maquete citadina, muita gente assiste a morte dos anfíbios. um homem que diz ser cristo, o verdadeiro, sobe na mesa onde está a maquete e começa a latir enquanto o cheiro de enxofre sai da fumaça esverdeada. todos se dispersam com as mãos no rosto, inclusive ele, o cristo que vive no corpo daquele homem com alma canídea, atravessa a rua ao farejar um outro jesus e, mostrando-se superior na escala hierárquica da fraude, ataca, com sagrada inquietude, a face da segunda representação.

* * *

cavalos de chuva caem no mar, depois do estrondo o mar assemelha-se ao deserto. vê-se o rosto de sal e areia da mulher sem olhos, há um pensamento que compreende os efeitos da miragem. por vezes o rosto some, mas a imagem volúvel sempre retorna à memória silenciosa.


* * *

a madrugada é a continuação do primeiro caos. silício na atmosfera rompida, insolentemente, pelas estrelas. olhos rolaram pelos montes e sísifo-escaravelho-cansado não os levará de volta ao rosto. estão tateando o tempo, eventualmente prego nas mãos. o sangue que circula não é sentido com a mesma intensidade de quando escorre. numa mesa de operação ao ar livre, o nome sedado e aberto, dentro dele um rio escarlate e a inédita fúria do peixe que bate a cabeça contra as vísceras - margem do corpo.

* * *

ciclo alegórico, espelho planetário, branco portal de ativação. na lua o coelho dos ascetas respira no ritmo dos calendários maias, avista todas as construções e ruínas, dorme na cratera elevada. o sol nasce no canto do céu e logo o céu inteiro é um mar laranja, ondas nuvens, estradas rios. estamos afogados nos ecos dos nossos corpos, dos outros corpos, dos que nem sabemos a existência. conexão líquida, orgânica, perceptiva, invisível fluxo por onde tudo passa e nada se mantém intacto - do início ao fim as calopsitas atravessam os espaços, gritam alguma coisa e somem. estratégias amplificadoras de silêncios - as cascas de ovo, perfuradas, igualam-se aos abismos.


* * *

sair ao acaso é submeter-se à imprevisibilidade das circunstâncias. mas o acaso, ainda que até certo ponto, pode ser boicotado pelo modus operandi do raciocínio. as probabilidades de encontrar pessoas barulhentas em ruas silenciosas são mínimas, por isso escolher ruas silenciosas é diminuir a cota de azar do dia quando se preza o silêncio, o vazio e os espelhos que se formam por cima das poças assim que a chuva para. cães seguem precariamente iluminados, cães de rua raquíticos, sôfregos que, ao lado dos retirantes de Portinari, não destoariam, ao contrário, seriam novos elementos corroídos pela mesma insignificância que o vasto campo da desolação impõe. o sopro da morte não vem de longe, espectros em meio à travessia, por um instante, todo mundo quer morrer, ficam os que aguentam pela fé, pela loucura ou, abandonada toda a razão, sufocado todo o sentir, pelo automatismo apático da sobrevivência, quando já não há muitas escolhas a fazer. farelos, menos densos do que as cinzas da fênix. a renovação de tudo começa quando tudo acaba, o resto é gradativo como o eclipse. as horas, os minutos, os segundos, os milésimos de segundo enquanto estou, estás, estamos desenhando o círculo.

(Poemas de Camila Vardarac. Leiam mais no blog http://noz-motim.blogspot.com/)