quarta-feira, 31 de março de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (V)


O HÁBITO ESCARLATE

TABACARIA DE HIGÉIA

trago a peste para dentro do corpo
a um só gole do vinho encefálico

traga o meu olho queimado
(queimado da peste que trago)
corredor de olhos amputados

trago-te
fumaça anestesiada de dias,
teu corpo de véus em luz mortiça
nas medulas de cortiça
dos alvéolos tragados

cordões umbilicais ressecados
na lua da boca das crianças
tragando o leite ausente, falho

tudo isto caminho e trago
para dentro do olho calvo
o metálico sangue no altar de plástico
abraça a mão de morfina do sol
injetando ouro inventado
sobre a ciranda de chagas

corro com a víscera tragada
de palhas, agulhas, mortalhas
máscara de nervo sádico,
trago-te
transplantado ícone de barro

um omulu esquartejado
no peito aberto
rasgo

pudera tragar o queimado
destes minúsculos moldes enjaulados

centauro envenenado
incendiaria de fantasmas
meus dois olhos extraviados
de vez

mas há balsâmico e visionário miasma
no aroma medicinal destes tragados ventres

de tudo do pouco tragam
do circo de horror doente
um parto de esperança, na esfumaçada tez
e me tragam, o olho sadio, antes de escurecer


TAXIDERMIA

com olhos de ocelot
pinça o gato escarlate
pela digital

sonha
plenilúnio

a espinha do felino
no éter da palma
exposta

no ossário enluarado
três miados rajam
a sala cirúrgica de memórias

(Poemas de Andréia Carvalho. Leiam mais no blog http://habitoescarlate.blogspot.com/)

GALERIA: JAN SAUDEK (IV)


LOJINHA DO TURCO

Caros, em 2004 fui conselheiro editorial da Lamparina, que publicou livros de autores brasileiros contemporâneos, entre eles O Livro de Zenóbia, de Maria Esther Maciel, Pequeno Dicionário de Percevejos, de Nelson de Oliveira, A Consciência do Zero, de Frederico Barbosa, Nômada, de Rodrigo Garcia Lopes, Estranhas Experiências, de Claudio Willer, e Pegadas Noturnas, de Glauco Mattoso. É muito dificil encontrar essas obras em livrarias, mas é possível encomendá-las via internet, no site Estante Virtual, http://www.estantevirtual.com.br/.

segunda-feira, 29 de março de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (III)


CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS

Fera Bifronte é uma metáfora da morte. Remete à imagem do cão Cérbero, que guardava a entrada do inferno, na mitologia grega (embora, no mito original, esse animal tenha três cabeças; eu reduzi para duas, talvez para introduzir um outro sentido, o da dualidade, divisão, conflito). O primeiro poema do livro chama-se Fera; o último, também (como se o livro tivesse início com uma de suas faces, e terminasse com a outra). No primeiro poema, a relação entre o animal e a morte é dada já no verso inicial: "Animal metafísico desliza aspereza até abolição de vocábulos", abolição que é o silêncio do aniquilamento. A descrição física da criatura, que salienta "fileiras assimétricas de vértebras", "Flora esquelética no pelame", explicita a imagem cadavérica; já o verso "Sequência numérica tatua seu dorso" remete à inscrição na pele dos prisioneiros dos campos de concentração (embora nesses últimos os números fossem gravados no braço, não no dorso). As imagens cruéis do poema associam-se a referências sexuais, de uma eroticidade macabra: "Em branco aniquilar / sua mandíbula / aberta como fenda sexual / interrogante". A dualidade Eros / Thanatos é um dos temas centrais do livro, e se torna mais explícita no último poema, também chamado Fera: "... que mutila ao lamber / nossos lábios. / Devassa da noite e seu dramatismo, / da noite e seus jogos / marsupiais, / faz do breu uma erótica de lâminas". Neste poema, a alegoria da morte assume outra imagem, mais carnavalizada: a cadela esquelética "exibe seus múltiplos ornatos, / ao devorar a carne / dessangrada: / pingente de ouro numa teta, / argola de prata no lábio cinzento / de harpia", é uma "bicéfala dama-dragão", "ávida por envolver-me / em lascívia". O eu lírico aparece então como o fugitivo da fábula árabe, que tenta escapar à morte, disfarçado: "Se ela vier buscar-me / neste poema, / não encontrará /a carne tensa, palatável, / apenas a efígie / de um perpétuo fugitivo". Claro que há vários outros temas ao longo do livro, desde a guerra (Escrito em Osso) até o amor (Escrito em Flor) e a sociedade de consumo (Gabinete de Curiosidades), mas é o tema da morte que aproxima esse livro de meu poema longo Letra Negra: "estou morto e não-morto / vértebras ao inverso / letras tontas / de um nome incerto / vocábulo equívoco / desfeito em água / para a necessária / abolição de mim". Nesta composição, a morte ganha outros contornos: não se trata (apenas) da pulsão tanática individual, nem da devastação coletiva, como nas guerras do Oriente Médio ou nos campos de detenção, tortura e morte, como o de Sujiatun, na China (abordado em Fera Bifronte). A morte aqui ganha uma dimensão mais ampla: ela é a constante mutação da realidade, "campo de improváveis simulando pólipos"; "aqui um camaleão se / transforma em água, em peixe, em luz, em / nada", mutação que remete à paisagem externa e à angústia individual, traduzida como acúmulo de inumeráveis mortes simbólicas.

sábado, 27 de março de 2010

GALERIA: JAN SAUDEK (II)















Caros, leiam uma resenha de meu livro Fera Bifronte em Cronópios, escrita por Susanna Busato, na página http://www.cronopios.com.br/site/resenhas.asp?id=4473. A Germina, em sua última edição, também publicou uma resenha do livro, assinada pelo poeta e crítico André Dick, em http://www.germinaliteratura.com.br/2009/livros_cinemamental_por_andredick.htm

CÂNONE E ANTICÂNONE (VIII)

Augusto dos Anjos (1884-1914), em sua estética do escárnio, cantou a demência e a nevrose, o bolo fecal e os cristais de vômito, despoetizando a poesia para mostrar a verdade da Dor. O poeta do Engenho do Pau D'arco rompeu com a falsa lírica, retórica e sentimental, dos autores de seu tempo, fazendo do humor negro, da caricatura e do sarcasmo as pedras fundamentais da construção verbal.

O Eu (1912), único livro do poeta, publicado no Rio de Janeiro graças à ajuda de seu irmão, Odilon, é um conjunto de 58 peças em que predominam formas tradicionais, como o soneto e o verso decassílabo. O ritmo, porém, não obedece sempre a esquemas regulares, binários ou ternários; o autor adotou um livre fluxo de sílabas fortes e fracas, similar à prosa.

As rimas são inusitadas nessa alucinação de timbres: o poeta combinou termos do português e do latim (teto / senectus), verbos com no-mes próprios (amá-lo / Sardanapalo), palavras quase homófonas (singre-me / íngreme), verbos com letras do alfabeto (apodrece / s). Outras particularidades da bizarra arquitetura fônica do Eu são o uso freqüente do grau superlativo nos adjetivos (singularíssima, nervosíssimo), de advérbios (proficuamente, panteisticamente), palavras com acentuação tônica (fêmea, abstêmia) e termos polissilábicos.

A insurgência sonora do Eu, que recorda os ritmos dissonantes de Cesár Vallejo em Trilce, ainda hoje causa estranhamento, pela novidade da informação estética. A força prosódica dessa lira delirante está centrada sobretudo em seu excêntrico vocabulário: o poeta paraibano incorporou termos das ciências naturais (pólipo, vibrião, monera), da filosofia (mônada, não-ser, ataraxia), do sânscrito (nirvana, samsara, Abhidarma), do grego e do latim (nous, pneuma, atrium), além de insólitos neologismos. O poeta dissecou as partículas léxicas e recombinou-as, formando termos como hoffmânicas, heliogabálica, arimânico, rembrandtescos, que recordam as invenções semânticas de Cruz e Sousa, como nirvânica, beethovínica, torcicolosamente.

O constructo sonoro de Augusto dos Anjos surpreende ainda pelo uso particular das figuras de linguagem tradicionais, como assonâncias e aliterações (“Assombrado com a minha sombra magra”, em Cismas do Destino) e anáforas: “E quando vi que aquilo vinha vindo/ Eu fui caindo como um sol caindo/ De declínio em declínio; e de declínio/ Em declínio, com a gula de uma fera,/ Quis ver o que era, e quando vi o que era/ Vi que era pó, vi que era esterquilínio” (do Poema Negro). A arte verbal do Poeta Sombrio não é melódica, cantabile, coral serafínico ou ária de harpas nivosas, mas um sherzo macabro, urdido em notas inauditas. Um bom exemplo dessa música estranha, que vai além das pautas parnaso-simbolistas e antecipa a poesia moderna é o conhecido soneto Psicologia de um Vencido:

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Esse ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas com os cabelos
Na frialdade inorgânica da terra!

O Eu não se confunde com a obra dos demais poetas brasileiros de seu tempo; o único paralelo possível é com o Livro de Cesário Verde. O “Doutor Tristeza”, no entanto, foi mais ousado em sua ruptura com a aura mística do beletrismo, fazendo uso de cifras como o preço de mercadorias (“custa 1$200 ao lojista”), dados quantitativos (“Nas suas 33 vértebras”), datas (“6ª feira, 3 de maio”) e até exageros metafóricos (“Tenho 300 quilos no epigastro”). A incorporação do prosaico, da linguagem comercial, antecipa Oswald de Andrade (“1 300º à sombra dos telheiros retos”, no poema metalúrgica, em Pau-Brasil) desmascarando a falsidade de uma poesia supostamente “elevada” ou “profunda” do tipo “sorriso da sociedade”, praticada na época pelos vates de monóculo e fardão.

A harpa dissonante do poeta, porém, não tem um equivalente fanopaico. Em seus poemas, a imagética não alcança a paleta cromática de um Cruz e Sousa, de um Pedro Kilkerry, por exemplo. Augusto dos Anjos não foi hábil pintor de aquarelas semânticas, mas um artista do escarro, que fez do muco verbal a matéria-prima básica para a composição de virulentas metáforas, que têm o sabor da verde gosma da tísis (“Dissolva-se, portanto, minha vida/ Igualmente a uma célula caída/ Na aberração de um óvulo infecundo”, em Budismo Moderno; “Comi meus olhos crus no cemitério/ Numa antropofagia do faminto”, em Solilóquio de um Visionário).

Deve-se notar, no “artesanato furioso” de Augusto dos Anjos, a economia de adjetivos, a síntese e a precisão construtiva de imagens (a tesoura, o palito de fósforo), em oposição às densas brumas simbólicas e aos frisos esmaltados do Parnaso. O seu olhar é o do homem moderno, que vê a pedra na pedra e o cão no cão, antecipando o João Cabral da “faca só lâmina”. Um poema notável desse antipintor sem pincel nem cavalete é Versos Íntimos, talvez sua peça mais conhecida:

Vês? Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

O sentimento trágico

O poeta encontrou a sua mais perfeita forma de expressão na sátira cruel, no humor negro, cheio de angústia e desespero. Seu pessimismo, que transborda em imagens febris, não se resume, porém, a um état d'âme de autor doentio, mas é também indício da anima mundi de seu tempo, ante-sala da I Guerra Mundial. A visão do ser humano como ente degradado, movido por instintos elementares e destinado a ser alimento para os vermes prenuncia o expressionismo alemão. Anatol Rosenfeld já traçou um paralelo entre Augusto dos Anjos e poetas como Georg Trakl e Gottfried Benn, mas a originalidade do brasileiro radica em seu curioso conceptismo, que mescla o sentimento trágico ao discurso científico e filosófico da época.

O poeta do Pau D'arco foi leitor assíduo das teorias evolucionistas de Darwin, do monismo biológico de Haeckel e das doutrinas de Spencer. O saber da ciência, porém, voltado à origem, mutações e extinção das formas materiais, não resolveu a questão da Dor. E o poeta, cujo olhar estava voltado para o Sofrimento em todas suas faces prismáticas nascimento, velhice, doença e morte — foi encontrar consolação no budismo e na filosofia de Schopenhauer. O livro de Augusto dos Anjos é um diálogo com essas duas visões de mundo, culminando na certeza da aniquilação das formas e da consciência no Vazio original.

Essa visão sombria é nítida, em especial, no poema de abertura livro, Monólogo de uma Sombra (“Sou uma sombra! Venho de outras eras,/ Do cosmopolitismo das moneras.../ Pólipo de recônditas reentrâncias,/ Larva do caos telúrico, procedo/ Da escuridão do cósmico segredo,/ Da substância de todas as substâncias!”). Essa peça, dividida em 31 sextilhas, que totalizam 186 versos, é talvez a obra-prima de Augusto dos Anjos, um quadro pessoal do abandono, da miséria humana e da loucura, como a Carniça de Baudelaire, o Gato Preto de Poe e os Faróis de Cruz e Sousa.

Na poesia de Augusto dos Anjos, como notou seu amigo Órris Soares, um tema está ausente: o amor. O poeta enfoca o erotismo, desvinculado da paixão ou da ternura, marcado com o estigma do meretrício, do pecado original, talvez pela formação religiosa e pelos ressentimentos afetivos do autor. A prática da cópula, para ele, quase se confunde com o ofício da prostituta, que traz a doença, a miséria, a danação. Assim, por exemplo, no admirável soneto Depois da Orgia:

O prazer que na orgia a hetaíra goza
Produz no meu sensorium de bacante
O efeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!

Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.

Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,

Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!

Augusto dos Anjos via o mundo não como um fotógrafo, mas como um cirurgião, hábil em usar o bisturi. O seu pessimismo — ou fatalismo biológico — não excluía, porém, a compaixão pelos rotos e miseráveis, como é possível notar em várias passagens de seu livro. A ética meio cristã, meio budista do poeta não era insensível à Dor; pelo contrário, ele compartilhava o Sofrimento Universal, que só terminaria com o final da existência material, com a absorção no Nirvana. Esta foi também a fé de Cruz e Sousa, seu irmão espiritual, e de quase toda a geração simbolista.

Fortuna crítica

A publicação do Eu no Rio de Janeiro, em 1912, não chamou a atenção dos críticos e literatos, acostumados a uma poesia superficial e cosmética. Nessa época, no ambiente cultural da metrópole, imperavam Olavo Bilac e Coelho Neto, aplaudidos nos saraus, confeitarias e suplementos literários. Defendia-se com ardor, nas rodas literárias, nos cafés e cinemas uma práxis poética que já havia embolorado em seu próprio berço histórico: na França, a estética parnasiana há muito fora suplantada pelo simbolismo, e, nesse momento, Apollinaire, Max Jacob, Cocteau e seus amigos preparavam-se para assinar o atestado de óbito do verso clássico francês. No Brasil, porém, o demônio do anacronismo ditava a moda, e impunha o “silêncio obsequioso”, o exílio artístico ou a difamação pública aos jovens poetas que pesquisavam novas formas estéticas.

Osório Duque Estrada escreveu, no Correio da Manhã, uma resenha sobre o Eu em que chamou o autor paraibano de “um grande talento, transviado pelo cientificismo”. Já Medeiros e Albuquerque chamou o poeta de “um ourives enlouquecido”, que teria “tomado ouro maciço e feito com ele um bloco estranho, áspero, anfratuoso, sem representar coisa alguma, tendo apenas, aqui e ali, recipientes para dejetos imundos...”. O próprio Bilac, segundo conta Francisco de Assis Barbosa, depois de ouvir Versos a um Coveiro, teria dito que o poeta “fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa”.

Os modernistas de 1922 também ignoraram o autor de Eu, talvez porque o considerassem um “último romântico”. Manuel Bandeira chamou-o de “poeta de soldado de polícia”, e Antonio Candido, criticou o “mau gosto” do autor de Vandalismo. Curiosamente, Augusto dos Anjos, antes de ser aceito pela crítica, tornou-se um fenômeno editorial, conquistando o gosto do público — fato insólito no Brasil — ocupando um lugar na preferência dos leitores só comparável ao de Casimiro de Abreu. Pela primeira vez, o público leitor demonstrou maior abertura para a informação nova do que a crítica especializada... Por fim, veio o reconhecimento, e um estudioso da qualidade de Otto Maria Carpeaux considerou Augusto dos Anjos o maior poeta que o Brasil já produzira até então. Hoje, o seu lugar na história de nossa poesia está acima de qualquer discussão, e é possível rastrear sua influência na obra dos novos “poetas malditos”, como Sebastião Nunes e Glauco Mattoso.

Augusto dos Anjos, o poeta esquálido, tímido e doentio, viveu em meio à penúria. Em três anos, morou em dez casas diferentes, quase sempre em quartos de pensão. Segundo Francisco de Assis Barbosa, “era total, absoluta, sua incapacidade para ganhar dinheiro”. Sobrevivendo com parcos vencimentos de professor (tentara, sem êxito, ser agente de uma companhia de seguros), a duras custas pôde manter sua esposa e filhos. Por fim, veio a falecer, aos 29 anos, vítima da pneumonia. Após sua morte, publicaram-se várias edições do Eu com acréscimos de textos inéditos, e hoje sua obra completa soma 210 poemas. Que contam muito mais, para a evolução das formas em nossa poesia, que a extensa — e dispensável — obra do outrora “príncipe dos poetas”, que é hoje uma celebridade morta. Mais vivo, mais novo, Augusto é um poeta para poetas: o Eu que fala para nós e para vocês.

GALERIA: JAN SAUDEK (I)


POEMAS DE DARIO VELLOZO

PAREDRA

Vênus pagã, olhos de sete-estrelo,
A cabeleira rútila fulgindo...
Amei-te!... amor, nos olhos teus fulgindo,
Volúpia; luz do sol de teu cabelo.

A luxúria findou. Astro maldito,
Rolei do azul aos pélagos hiantes...
Procurava a minha alma... além, distantes,
Lótus colhi nos edens do Infinito.

Morreste. Ao val da Sombra, compungido,
Boa que foras para meus delírios,
Levei teu nobre coração partido.

Só então, osculando o altar de pedra,
À luz morrente de funéreos círios,
Tua alma ouvi... - a minha Irmã, Paredra.


ATLÂNTIDA
(poema épico, fragmentos)

Do Prelúdio:

Íon, no Espaço
Poeira komica na amplidão,
-Terra!-
Num círculo de aço,
Na órbita que o Destino retraçou;
Terra de servidão!...
Terra de expiação!...
Terra de redempção!...
Dominínio de Mayá, - a encantadora,
Que vida e morte encerra,
De philtros cheia a ânfora sonora;
-TERRA!-
Um mundo para o Homem,
Cujo corpo o teu limo formou;
Um nada do Infinito;
Penumbra das almas, cuja essência
A Essência Eterna irradiou;
Caçoula em que Formas se consomem,
Quando a alma revoa,
Livre à Carne, ao Desejo, que agrilhoa!...
-Terra!


Do Canto II: O Reino de Paititi

(...)

— Tu conheces, Aztlan, a Ciência dos Magos,
Sabes a LEI, o termo a que a Razão atinge,
Os arcanos da ESTRELLA, a visão dos oragos,
A voz do Teocallis, o sigilo da Esfinge;

Sabes que o coração é o casulo da vida,
Onde murmura a alma a perene lembrança
Do passado, do além, da forma esvanecida,
De uns olhos de mulher, de um riso de criança;

Tu sabes que a MATÉRIA é maga e feiticeira,
Faz e desfaz; - é Água, é Ar, é Fogo, é Terra;
É onda que marulha, estrela condoreira,
É favônio que ameiga, é tormenta que aterra.

Eterno - o TEMPO. Os Kalpas se sucedem...
Os astros se compõem e decompõem;
Da Terra, os continentes que antecedem,
Continentes futuros pressupõem...

Algo os Antis possuem dos Lemúrios;
Mas, todo o seu saber dos Atlantes vem;
Seus costumes, ciência, aras e augúrios
Da Atlântida longínqua sobrevem.


Do Canto IV: No limiar dos Mistérios

(...)

— Mestre, inquire o Piaga, —

Se eu quisesse aprender da Atlântida a Ciência,
Onde a iria encontrar?
Poseidonis ruiu... A sombra vaga
Na memória dos homens... A demência
Do Mar afogou-a no mar!...

Nenhum vestígio!... Templos e muralhas,
Os papiros sagrados, - Runá disse, -
Perderam-se também;
Velam a terra líquida mortalhas;
Chocam-se as ondas, como quem carpisse...
E a voz dos Ecos: -Nada mais!... Ninguém...

Nos olhos do Piaga o olhar do Mago
Lento cruzou, fixou-se... Perscrutava
O pensamento íntimo que o afago
Das palavras do jovem revelava.

Intenso e terno o olhar de Aztlan,
Nostálgico e profundo,
Tons da saudade e piedade vã,
Nos ocasos de um mundo.

Nos esmaltes do olhar, de estranho magnetismo,
A renúncia da vida, o êxtase divino,
A força de atrair dos abismos do Abysmo
A vítima do Amor, o exausto Peregrino.

A renúncia da vida!...
A morte do Desejo!...
O almejo
Da grande Solitude!...
O almejo do Silêncio, o almejo imenso
De subir para DEUS numa espiral de incenso,
De encontrar no INFINITO a vereda perdida,
De imergir no NIRVANA em toda plenitude!

DEUS!
A ESSÊNCIA ETERNA, a Eviterna Substância,
UMA e infinita;
O sorriso da Infância,
O ósculo da LUZ, a asa, o adeus...
A alma que volve aos céus e nos astros palpita.

DEUS: A Causa sem Causa, o mistério da ESFINGE...

Do Canto V: Céltida Druidica

(...)

Sacrifícios humanos! Sangue a rodo,
Sangue que as Larvas bibulas absorvem,
Do alto monte de Morven
Baixando,
Tumultuando,
Negrejando
O horizonte...
Lodo!

Sacrifícios humanos!... Rubra fonte
De sortilégios e de malefícios!...
Do alto monte
Que Ossian celebrou,
A luz das madrugadas
Foge... Edifício de ossadas
Que a Morte acumulou,
Monte de sacrifícios
Onde a lâmpada antiga se esgotou.

Do Canto VI: Athene

(...)

ATHENAS!
Um prelúdio de sol na ânfora da noite...
Um prelúdio de sol!...
Prelúdio!... - Dilúculo nascente,
Áureo-purpúreo arrebol
De uma aurora que surge a aclarar o OCIDENTE!...

Ouro-carmíneo, ouro-lilás, ouro de opala,
Ouro de asas de falenas,
Íons de luz, de aroma...
Íons que exala
A Flor de Lótus da alvorada
No constelado manto de Urânia.

quinta-feira, 25 de março de 2010


Cena do filme Cruz e Sousa, o Poeta do Desterro, dirigido por Sylvio Back.

CÂNONE E ANTICÂNONE (VII)

João da Cruz e Sousa (1861-1898) é o poeta da angústia, do spleen, “fatigado do triste hospital” da existência, e também o rapsodo místico, visionário, que sonhava transcender o palco da Dor Universal pela absorção no Absoluto. O desejo de aniquilação do Poeta Negro, de retorno ao Vazio anterior à Criação, tem origem na filosofia do Romantismo alemão, em Novalis e Shopenhauer, e essa visão permaneceu, ao longo do século XIX, como o cânon ideológico do Simbolismo.

Broquéis (1893) introduziu na poesia brasileira o novo estilo. Esse livro estranho, de uma beleza nervosa, é diferente de tudo o que foi publicado antes, entre nós. Conforme José Aguinaldo Gonçalves, o poeta simbolista, “fascinado pelo mistério e pelo caráter fluídico das coisas, aprofundou o universo das sugestões, da ambiguidade, da abstração mística, do sentimento sensorial do mundo. Para isto, vai criar um universo vocabular próprio, voltado para a neblina, o onírico, o vaporizante, o lactescente, o litúrgico, o etéreo, o plangente, o soluçante, o errante, o luminoso, as brumas e o encantatório transcendente”.

O poema de abertura do volume, Antífona (“Ó Formas alvas, brancas, Formas claras/ De luares, de neves, de neblinas”) é um verdadeiro manifesto, em que o autor se volta contra a objetividade naturalista, a descrição minuciosa de detalhes, em favor de uma construção de imagens “vagas, fluidas, cristalinas”. Cruz e Sousa seguiu, em sua mirada de miragens, a pista indicada por Mallarmé: “Nomear um objeto significa eliminar três quartos do prazer de adivinhá-lo. Sugerir, eis o sonho”. Essa é uma linha paralela à técnica de acordes isolados na música de Débussy e ao pontilhismo de Pissaro e Seurat, na pintura, que prenunciavam a superação da tonalidade e do figurativismo por novos modos de composição.

Um bom exemplo dessa imagética renovada, em que fluem impressões de melancolia e sensualismo, é o poema Monja: “Nas flóridas searas ondulosas,/ cuja folhagem brilha fosforeada,/ passam sombras angélicas, nivosas,/ lua, Monja da cela constelada”. O talento plástico de Cruz e Sousa é evidente sobretudo em Missal, coletânea de poemas em prosa publicada no mesmo ano que Broquéis. Assim, na peça intitulada Navios, o poeta nos diz: “Praia clara, em faixa espelhada ao sol, de fina areia úmida e miúda de cômoro. Brancuras de luz da manhã prateiam as águas quietas, e, à tarde, coloridos vivos de ocaso as matizam de tintas rútilas, flavas, como uma palheta de íris”. Em outra peça, Bêbado, lemos: “O mar tinha uma estranha solenidade, imóvel nas suas águas, com uma larga refulgência metálica sobre o dorso. Da paz branca e luminosa da lua caía, na vastidão infinita das ondas, um silêncio impenetrável. E tudo, em torno, naquela imensidade de céu e mar, era a mudez, a solidão da lua...”

O efeito cromático é mais eficaz com o recurso de sonoridades raras, pois é a música que melhor expressa o sentimento de vago, difuso, diáfano, despertando a intuição e o sonho. Para Edgar Allan Poe, poesia é a “construção precisa do impreciso”, “criação rítmica da Beleza”, e, seguindo nessa trilha, Verlaine irá reivindicar “a música antes de tudo”. Cruz e Sousa, afinado com seus mestres espirituais, irá fazer da melopéia um dos pilares de sua filosofia da composição e o fio condutor de todas as relações sinestésicas. Em Outras Evocações, o poeta nos diz: “O estilo é o sol da escrita. Dá-lhe eterna palpitação, eterna vida. Cada palavra é como que um tecido do organismo do período. No estilo há todas as gradações de luz, toda a escala dos sons. (...) A palavra tem a sua autonomia; e é preciso uma rara percepção estética, uma nitidez visual, olfativa, palatal e acústica apuradíssima para a exatidão da cor, da forma e para a sensação do som e do sabor da palavra”.

As palavras, em sua corporalidade, e não apenas como conceitos, têm força de expressão mágica, evocatória, como notou Mallarmé; por essa razão, diz o autor de Brise Marine, o poeta deve buscar “o verso que, de diversos vocábulos, refaz uma palavra total, nova, estranha à língua e como que encantatória”. É dessa construção do estranhamento, do inusitado, que advém a experiência do êxtase estético, que Joyce chamava de epifania. Cruz e Sousa, como um taumaturgo morfológico, criou, em seu cadinho de quintessências, um novo vocabulário, mesclando termos em neologismos insólitos, tais como: absíntica, nirvânica, pantérico, tantálico, beethovínica, estradivário, torcicolosamente. Além disso, assimilou um léxico luxuoso e alucinado, com laivos gongorinos: neblinoso, alampadário, flamívona, alabastrino, espumaroso, empurpuresce. Com esse grimoire de sortilégios e encantações, Cruz e Sousa conduziu aliterações (“suspira, sofre, cisma, sente, sonha”), anagramas (“areia úmida e miúda”), paronomásias (“torvas e turvas”, “gralha, grasma e grulha”), assonâncias (“Das tuas asas serenas”), anáforas (“só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria”) e outras magias com a habilidade de um mestre consumado.

Uma descida aos Infernos

A poética de Cruz e Sousa não teve uma evolução estética linear; ela oscilou entre a abstração e a caricatura, a elipse e o discurso, a brevidade e o jorro verbal, o gosto refinado e o kitsch. De Broquéis a Faróis, o poeta mudou a sua maneira de olhar para os objetos, e o resultado é uma nova forma de fanopéia, menos etérea, mais densa. Como nos diz Roger Bastide, o poeta “tinha começado pela dissolução das formas exteriores dos objetos, diluindo-os na bruma do sonho, e termina pela volta à matéria, porém matéria sutilizada e preciosa, cintilação de cristal ou de jóia, certamente encarnação da Forma inteligível, mas encarnação em algo que nada mais tem de sensual e que nada retém do calor do concreto. Destruição das formas (no plural) nas cerrações da noite, cristalização da Forma (no singular) ou solidificação do espiritual numa geometria do translúcido, tais são, afinal, os dois grandes processos antitéticos e complementares ao mesmo tempo, que permitiram a Cruz e Sousa trazer aos homens a mensagem da sua experiência e apresentá-la em poesia de beleza única, pois que é acariciada pela asa da noite e, todavia, lampeja com todas as cintilações do diamante”.

Faróis, publicado em 1900 (edição póstuma), é um livro de imagens sombrias que têm a marca do triste fado do poeta: Cruz e Sousa, o filho de escravos, nascido na cidade de Desterro (hoje Florianópolis), sofreu o preconceito racial, a miséria e, nos seus últimos anos, a morte do pai e a loucura da esposa, Gavita. O pessimismo do autor, seu “tantalismo dantesco”, expressou-se aqui em poemas longos, narrativos, retórico-discursivos, com tinturas expressionistas que recordam por vezes a poesia de Trakl e a pintura de Munch: “Os miseráveis, os rotos/ são as flores dos esgotos./ São espetros implacáveis/ os rotos, os miseráveis”; “Coalha nos lodos abjetos/ O sangue roxo dos fetos”; e, com a terrível veemência dos freaks, dos danados: “Vermes da inveja, a lesma verde e oleosa,/ Anões da Dor torcida e cancerosa,/ Abortos de almas a sangrar na lama”.

O tom realista, sarcástico, que abusa do grotesco, aproxima-se, por vezes, do kitsch. O uso excessivo de adjetivos, por sua vez, é outro aspecto a ser observado: em Música da Morte, por exemplo, há nada menos que 20 adjetivos nos 14 versos do soneto! Faróis é um livro irregular; não tem a mesma alta qualidade de Broquéis. É o testemunho dramático dos insucessos de seu autor, mais do que ninguém, um “gauche na vida”. Deve-se destacar, no entanto, o poema de abertura, Recolta de Estrelas, dividido em dísticos de sete sílabas, em que o poeta usou nada menos que 42 rimas diferentes; o poema de construção semelhante intitulado Litania dos Pobres; Tédio, talvez seu poema mais próximo ao expressionismo; o conhecido Violões que choram; e Flores da Lua, em que há ecos distantes de Laforgue (que escreveu Fauna e Flora da Lua). Faróis, apesar dos desníveis de escritura, é um livro que merece ser lido, pois é a gênese da mórbida e bela anti-epopéia de Augusto dos Anjos.

Para Além da Dor

Em Últimos Sonetos, talvez a mais bem acabada de suas obras, o poeta, já fatigado da existência, aborda o anseio de união mística com o Absoluto, Nirvana búdico, que representa o fim do ciclo de intermináveis transmigrações. Neste livro admirável, Cruz e Sousa levou à perfeição o soneto como gênero literário, com uma precisão técnica impecável e uma pureza de expressão raramente igualadas por outros nomes da poesia de língua portuguesa.

É notável, nesta obra tão rica em oxímoros, metonímias, prosopopéias, a reconciliação do poeta com o quinhentismo camoniano e os modos do barroco, em versos como: “Almas vis, almas vãs, almas escuras”, “O infinito gemido dos gemidos” e, sobretudo, o quarteto inicial de Flor Nirvanizada: “Ó cegos corações, surdos ouvidos,/ Bocas inúteis, sem clamor, fechadas,/ Almas para os mistérios apagadas,/ Sem segredos, sem eco e sem gemidos”. Precisamos citar, também, Alucinação, soneto que é quase uma antecipação de Pessoa: “Ó solidão do Mar, ó amargor das vagas,/ Ondas em convulsões, ondas em rebeldias,/ Desespero do Mar, furiosa ventania,/ Boca em fel dos tritões engasgada de pregas”. O Poeta Negro, aqui, transcendendo as cortinas neblinadas do Simbolismo, alcançou um timbre universal.

A fortuna crítica do poeta é póstuma, mas ele foi reconhecido pelas principais vozes de nossa historiografia literária. Sílvio Romero considerou Cruz e Sousa “o melhor poeta que o Brasil tem produzido” e “o ponto culminante da lírica brasileira após quatrocentos anos de existência” (e, portanto, superior a Castro Alves, Gonçalves Dias e Olavo Bilac). Obteve o reconhecimento internacional, como demonstra o ensaio O drama de Cruz e Sousa, de Bastide, que coloca o Poeta Negro ao lado de Mallarmé e Stefan George como a tríade máxima do Simbolismo.

A poesia de Cruz e Sousa é a retorta alquímica de onde provêm as líricas saturnais de Alphonsus de Guimaraens, Pedro Kilkerry, Ernâni Rosas, Maranhão Sobrinho e Augusto dos Anjos; e está presente na primeira fase de Manuel Bandeira, no místico surrealismo de Murilo Mendes e Jorge de Lima e nas modernas experiências intersemióticas, que levaram o princípio da sinestesia, filtrado pelas teorias de Charles Peirce, aos meios eletrônicos de comunicação, como o vídeo e o computador. João da Cruz e Sousa, o poeta do Desterro, não é um esqueleto esquecido na tumba de seus ancestrais, mas um dos inventores de nossa poesia moderna.

O Assinalado

Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tua alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!

GALERIA: CRUZ E SOUSA


quarta-feira, 24 de março de 2010

POEMAS DE CRUZ E SOUSA

DANÇA DO VENTRE

Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.

Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal,
enorme, do demônio sangrento da luxúria!

FLOR DO MAR

És da origem do mar, vens do secreto,
do estranho mar espumaroso e frio
que põe rede de sonhos ao navio
e o deixa balouçar, na vaga, inquieto.

Possuis do mar o deslumbrante afeto,
as dormências nervosas e o sombrio
e torvo aspecto aterrador, bravio
das ondas no atro e proceloso aspecto.

Num fundo ideal de púrpuras e rosas
surges das águas mucilaginosas
como a lua entre a névoa dos espaços...

Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
auroras, virgens músicas marinhas,
acres aromas de algas e sargaços...

ANTÍFONA

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmante puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes ...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...

terça-feira, 23 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (XIV)


POEMAS DE PEDRO KILKERRY


HORAS ÍGNEAS

I
Eu sorvo o haxixe do estio...
E evolve um cheiro, bestial,
Ao solo quente, como o cio
De um chacal.

Distensas, rebrilham sobre
Um verdor, flamâncias de asa...
Circula um vapor de cobre
Os montes — de cinza e brasa.

Sombras de voz hei no ouvido
— De amores ruivos, protervos —
E anda no céu, sacudido,
Um pó vibrante de nervos.

O mar faz medo... que espanca
A redondez sensual
Da praia, como uma anca
De animal.

II
O Sol, de bárbaro, estanque,
Olho, em volúpia de cisma,
Por uma cor só do prisma,
Veleiras, as naus — de sangue...

III
Tão longe levadas, pelas
Mãos de fluido ou braços de ar!
Cinge uma flora solar
— Grandes Rainhas — as velas.

Onda por onda ébria, erguida,
As ondas — povo do mar —
Tremem, nest’hora a sangrar,
Morrem — desejos da Vida!

IV
Nem ondas de sangue... e sangue
Nem de uma nau — Morre a cisma.
Doiram-me as faces do prisma
Mulheres — flores — num mangue...


É O SILÊNCIO

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa…
Mas o sangue da luz em cada folha.
Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas… Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima…
E a câmara muda. E a sala muda, muda…
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima…
E abro a janela. Ainda a lua esfia
últimas notas trêmulas… O dia
Tarde florescerá pela montanha.
E ó minha amada, o sentimento é cego…
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.

CETÁCEO

Fuma. É cobre o zenite. E, chagosos do flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um longo vôo branco.

Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunido a pele atijolada.

Tine em cobre o zenite e o vento arqueja o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d'água ou do sol vermelho.

segunda-feira, 22 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (XIII)


POEMAS DE MARANHÃO SOBRINHO

INTERLUNAR

Entre nuvens cruéis de púrpura e gerânio,
rubro como, de sangue, um hoplita messênio
o Sol, vencido, desce o planalto de urânio
do ocaso, na mudez de uni recolhido essênio...

Veloz como um corcel, voando num mito hircânio,
tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio
da tarde, que me evoca os olhos de Estefânio
Mallarmé, sob a unção da tristeza e do gênio!

O ônix das sombras cresce ao trágico declínio
do dia em que, a lembrar piratas do mar Jônio,
põe, no ocaso, clarões vermelhos de assassínio...

Vem a noite e, lembrando os Montes do Infortúnio,
vara o estranho solar da Morte e do Demônio
com as torres medievais as sombras do Interlúnio...


SATÃ

Nas margens de cristal do Danúbio do sonho,
cromadas de rubis, de pérolas purpúreas,
vê-se o imenso solar sonolento e medonho
do dragão infernal das Princesas espúrias...

Guarda o nobre portal de alabastro tristonho
desse antigo solar, de malditas luxúrias,
em que fulge o brasão heráldico do sonho
não sei quantas legiões de duendes e fúrias!

Sobre o mármore azul das colunas austeras,
que, em noivados de luz, o luar engrinalda
brilha o vivo cristal de alígeras quimeras...

Velam desse dragão o oriental tesoiro,
sobre um trono de rei, de maciça esmeralda,
dois soberbos leões, de grandes patas de oiro...


EQUATORIAL

Bóiam verdes lodões no lago quieto em frissos
de topázio. Flechando as ralas talagarças
dos ramos vibram, no ar, os vírides caniços
dos juncos. Funde a luz as nuvens de oiro esgarças.

Sobre o lodo escorrega o musgo a renda. Em viços
soberbos, o esplendor das aquáticas sarças
beira o líquido espelho em que, de espantadiços
olhos, banham-se, ao sol, as branquicentas garças.

Trapejam no horizonte uns trêmulos farrapos
de púrpura. Banando, entre os juncos, disformes
de luxúria, a coaxar, pulam, glabros, os sapos.

E, na lama, que a lesma azul meandra de rugas,
rojando-se em espirais de gelatina, enormes
arrastam-se, pulsando, as moles sanguessugas...

domingo, 21 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (XII)


POEMAS DE ERNÂNI ROSAS


O SONHO-INTERIOR

O Sonho-Interior que renasceste
era o Poema dum Lírio do Deserto,
o vinho de Outras-Almas que bebeste
fatalizou o meu destino incerto...

Depois por Ti em Sombras de degredo
encerrei a minha alma desolada,
tive a tua visão crepusculada
na Beleza fugaz do meu segredo...

Perdeu-se-me ao Sol-Pôr teu rastro amado!
qual Cipreste, no Poente agonizado,
— na demência autunal duma Alameda...

Velaram-se Sudários teus Espelhos...
ante o cerrar do teu Olhar de seda,
que era um descer de lua em cedros velhos.


ALUCINA-TE A COR

Alucina-te a cor e a calmaria
desse oceano fulgente em que demoras
o olhar em sonho a germinar auroras...
entre a quimera e a líquida ardentia...

Pareces caminhar magnetizada,
sob um chover de estrelas e de rosas...
pelo florir da Luz quimerizada
surges de um mar de nuances misteriosas...

Como ilha d'aromas e de gases,
esparsa, no silêncio, que desperta...
o lírio de teu gesto, entre lilases!

Acenando do azul do meu assomo...
ou d'aérea visão que à luz deserta,
ao mágico poder que vem dum gnomo!...


SOMBRA IDÍLICA

I

Amplo mistério, abraça meu segredo,
floresce num delírio de inconsciente
e a alma, que envelheceu pelo degredo,
alheia-se a sonhar convalescente.

Para mim, tudo num Luar se estagnou,
como um adeus de cinza esmorecendo
em tarde que minh'alma se evolou...
num crepúsculo em seda amortecendo.

A luz é uma ante-sombra, pela tarde
na envolvência dum sonho de acordar...
embolada na voz que se oira e arde...

Ó Alma, que és sol pálido de Lua!
sou o idílico irmão do teu cismar...
que é meu rastro de branca Ofélia nua.

II

Ó Ninfas ao Luar da noite ainda
abraçando a ansiedade da minh'alma...
idílica e lunar, que em flor se alinda
no abismo d'água clara da voss'alma...

A hora trespassando antiguidade,
faz-se ausência, etereal melancolia...
canção d'aroma as formas da saudade
que passa lenta como a luz do dia...

Inquietação de tarde sibilina
acorda-te, ó Luar adolescente...
pela noite imperial da minha sina!

Adormeci... pela manhã amiga
despertei sombra vã de antigamente,
vi-me passar no Espelho d'hora antiga...

sábado, 20 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (XI)


CÂNONE E ANTICÂNONE (VI)


A temática cotidiana e a linguagem coloquial podem ser recursos criativos interessantes quando utilizados com inteligência poética. É o caso, por exemplo, do poeta português Cesário Verde (1855-1886), sobre quem publiquei um ensaio, intitulado Cesário Verde: o anjo torto de Lisboa, no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 1998. Confiram o texto, abaixo:

Cesário Verde é o poeta anti-épico, exilado da metafísica, que preferiu o sórdido ao sublime, o escarro da tísica ao mole canto querubínico. Diferente de Fernando Pessoa, não sentiu a nostalgia pelo passado aventuroso, das conquistas além-mar, nem o anseio de alcançar a paz na espiritualidade ascética; o seu mundo é o das coisas densas, palpáveis, apreensíveis pelos cinco sentidos. É o mundo racionalizado, sem mistérios, decodificado pela ciência divorciada do sagrado. É nesse espaço-tempo finissecular em que imperam o capital e a técnica, as equações e réguas de cálculo, incapazes de compaixão, que ele modelou sua poesia rigorosa, de extrema precisão vocabular, despida de sentimentalismo ou exageros retóricos. O seu cancioneiro, de lírica áspera e cortante, é o epitáfio do século XIX e a ponta-de-lança da poesia moderna em língua portuguesa.

A arte poética de Cesário Verde está alicerçada na sólida construção métrica dos versos, em que predominam o decassílabo e o alexandrino; no ritmo fluente; na escolha de rimas raras, imprevistas; na invenção metafórica; e numa ordem sintática regular, por vezes próxima à da prosa. Porém, essa forma tradicional é abalada por dentro, numa irrupção clandestina, pelo uso da ironia e do sarcasmo; pela mescla, em seu vocabulário, de palavras cultas e coloquialismos; pela incorporação do grotesco, do “mau gosto”, pour épater le bourgeois; e, sobretudo, pela orquestração dos versos, repletos de sutilezas musicais. Cesário Verde não ignorava o cromatismo, tecendo riquíssimas partituras verbais. É notável, em sua poesia, a influência das duas vertentes do simbolismo francês: a “sério-estética”, de Verlaine e Mallarmé, e a “coloquial-irônica”, de Laforgue e Corbière. Porém, ele não se confunde com os poètes maudits parisienses por seu estilo pessoal, inconfundível, e pela direção de seu olhar, voltado mais às ações humanas do que a vagas sensações.

Cesário Verde é contemporâneo do processo de transformação de Portugal, com o surto industrial e a expansão urbana, no final do século XIX, e sua poesia reflete essa mudança de paisagem, incorporando a temática social com o enfoque crítico do carbonário, do tribuno da plebe. Ele é o poeta dos operários, das lavadeiras, dos mendigos que tropeçam na sarjeta ante a marcha acelerada do veículo de um magistrado. No entanto, o seu engajamento, sua ética de solidariedade, nunca prescindiu do compromisso estético, numa linha paralela às concepções de Maiakóvski. O poeta português antecipou a própria irreverência futurista do anárquico vate russo em versos como estes: “descobria uma cabeça numa melancia/ e nuns repolhos seios injetados” (de Num bairro moderno) e “Eu desfaria o Sol como desfaço/ as bolas de sabão das criancinhas” (de Arrojos). Herdeiro de uma orgulhosa tradição nacional, a dos argonautas lusitanos, como Vasco da Gama, o poeta não poupou de sua língua ferina nem o próprio oceano: “Eu temo muito o mar, o mar enorme,/ Solene, enraivecido, turbulento,/ Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;/ O mar sublime, o mar que nunca dorme./ (...) Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,/ Escarro, com desdém, no grande mar!” (de Heroísmos).

A rima, na poesia de Cesário Verde, nunca é banal, rotineira, mas incisiva, contundente; ele obtém efeitos de ironia, de sensualidade, de comoção, dentro de sutis jogos metalinguísticos. Em sua oficina, o poeta obtém rimas entre nomes próprios e substantivos comuns (Marta/carta); entre palavras do idioma português e estrangeirismos (contrarie/coterie); entre termos científicos e do léxico comum (aneurisma/abisma); entre vocábulos de diferentes números de sílabas (relógio/martirológio), isso para ficarmos em poucos exemplos. O uso de adjetivos justapostos, em seus poemas, não é acessório, cosmético, mas, na maioria das vezes, cumpre uma função crítica, de caricatura, via linguagem, como em Ecos de Realismo — Manias:

O mundo é uma velha cena ensangüentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, — hoje uma ossada —,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa.

Na sujeição canina mais submissa
Levava na tremente mão nervosa
O livro com que a amante ia ouvir missa!

O pessimismo de Cesário Verde, que encontra sua força de expressão no humor negro, nos cromos metafóricos, no grau superlativo dos adjetivos, recorda o état d'âme e o estilo analítico-cirúrgico do brasileiro Augusto dos Anjos. A visada crítica do poeta português, porém, martelo nietzscheano para golpear todos os valores, é ditada menos pelo tédio, pelo spleen do estar no mundo que por um sentimento de asco ante a degradação social e de espírito.

Perfis do eterno feminino

Em sua poesia amorosa, porém, o bardo inconformista faz-se cantor romântico, blues singer da última flor do lácio, em versos como: “Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas/ Em que ela esconde as lágrimas singelas” e “Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,/ E faria que a noite fosse eterna” (de Responso). No mesmo poema, o autor define sua amada na melhor tradição byroniana: “É loura como as doces escocesas,/ Duma beleza ideal, quase indecisa,/ Circunda-se de luto e tristezas/ E excede a melancólica Artemisa”. E conclui, na última estrofe: “Uníssemos, nós dois, as nossas covas,/ Ó doce castelã das minhas trovas!”. Esta associação da mulher sonhada com a noite, a melancolia e a morte encontra-se em autores do primeiro Romantismo, nas heroínas pálidas de Poe, nas damas dramáticas de romances sentimentais e óperas de boulevard. A lírica de Cesário Verde, no entanto, revela outros perfis do eterno feminino: o arquétipo da mulher pura, sincera, apaixonada, que o poeta deve proteger com ternura, e sua contraparte, a imagem de Lilith-Astarté, de uma Madalena lúbrica e impenitente, que nele desperta ao mesmo tempo o sentimento erótico, o desprezo e, sobretudo, o medo. Diz o autor, em A Forca: “Ó áridas Messalinas/ não entreis no santuário,/ transformareis em ruínas/ o meu imenso sacrário!/ Oh! A deusa das doçuras,/ a mulher! eu a contemplo!/ Vós tendes almas impuras,/ não me profaneis o templo!”. Curiosamente, na temática erótica, ressurgem, na poesia do rapsodo anticlerical, símbolos e referências do catolicismo, a condenar aos círculos infernais a mulher-só-carne. Em outro poema, Lúbrica, o poeta entrega os pontos, e deixa-se enfeitiçar pelas investidas da amiga luxuriosa:

Mandaste-me dizer
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cena de rapazes.

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

(...)

As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!

O poeta dissidente

O poeta moderno, despido de aura, encharcado pela lama e entregue às vicissitudes da sociedade de consumo é um tema que já aparece em Baudelaire, inspirando a reflexão crítica de Walther Benjamin. Para Cesário Verde, na civilização burguesa, o artista é o dissidente rebelionário, rejeitado pelo mundo que rejeita, sendo natural a solidariedade por todos os oprimidos, pelos humilhados, que, acreditava-se, um dia fariam a revolução. No poema Contrariedades, ele nos diz:

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Neste poema, o autor compara a situação dos excluídos, dos miseráveis, à do poeta, também ele um marginal, um anjo torto, gauche na vida. Aqui, ele utiliza técnicas de corte de cena e de montagem que recordam a linguagem do cinema e das histórias em quadrinhos. A narrativa é dinâmica, com planos sucessivos de imagens, e a fala do poeta, direta, enfática, coloquial, reforça o efeito comunicativo do poema. Mais adiante, o autor diz:

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos.

E a tísica? Fechada e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Não se pode olvidar que o poeta é contemporâneo do realismo e do naturalismo, correntes estéticas que buscavam conciliar o humanismo e a defesa de valores democráticos a uma visão mecanicista, cientificista de mundo, cuja expressão teórica foi Taine. E Cesário Verde, como um pintor naturalista, nos mostra “cidades fabris, industriais,/ De nevoeiros, poeiradas de hulha” e “condados mineiros! Extensões/ Carboníferas! Fundas galerias!/ Fábricas a vapor! Cutelarias!/ E mecânicas, tristes fiações!” (de Nós).

O poema que melhor expressa o pacto de Cesário Verde em retratar a verdade, sem maquilagem, é O Sentimento dum Ocidental A peça, dividida em quatro partes (I - “Ave-Maria”; II - “Noite Fechada”; III - “Ao Gás”; IV - “Horas Mortas”) foi publicada pela primeira vez em 1880, numa edição comemorativa do Jornal de Viagens, que homenageava Camões. Este é o poema de ambiente mais urbano, mais moderno, do poeta; por ele trafegam dentistas e carpinteiros, operários e floristas, carros de aluguel e navios mercantes, numa paisagem de edifícios e vias-férreas, hospitais, cadeias e praças. É uma elegia às ruas de Lisboa, essa Londres em caricatura, emulsão de capitalismo tardio e cristandade, que o poeta retratou com as verdes tintas do sarcasmo. Logo na primeira parte do poema, o autor nos dá um exemplo de sua fanopéia concisa, fragmentária: “O céu parece baixo e de neblina/ O gás extravasado enjoa-me, perturba;/ E os edifícios, com as chaminés, e a turba/ Toldam-se duma cor monótona e londrina”.

O poema recorda, por vezes, os cenários dos romances de Zola e das crônicas de jornal; mas a síntese verbal, a linguagem dinâmica, substantiva, as metáforas ferinas, os efeitos sonoros e construções insólitas (“E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,/ Amareladamente...”) revelam o artesão apurado, mestre em sua arte, feiticeiro da orquestração das palavras. O Sentimento dum Ocidental é o documento doloroso de uma época da cultura européia, a do desenvolvimento fabril, com o inevitável custo social em miséria e sofrimento; este é o cântico noturno da gênese do século XX.

Cesário Verde faleceu em 1886, em Lisboa, aos 31 anos, vítima de tuberculose. Seus poemas, reunidos postumamente, foram publicados por seu amigo Silva Pinto sob o título de O Livro de Cesário Verde. Essa edição, no entanto, sofreu a ação de rapinagem do editor-censor, que excluiu muitas peças do volume, considerando-as “imorais”. Em edições seguintes, entre 1901 e 1926, os poemas excluídos foram sendo descobertos e publicados, até a versão definitiva, de Joel Serra, que conta 41 poemas. A influência do irrequieto poeta sobre a moderna poesia de língua portuguesa pode ser avaliada pelos nomes de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Sua arte insurrecta, cutelo e forja, à margem de florilégios e perfumarias, não é só o espelho de uma época, mas o estandarte veemente da poesia que recusa ser mercadoria, aríete ideológico do conformismo ou deleite de salões ociosos. É a poesia que se afirma como o ofício do imprevisto, do lugar-incomum, da insubordinação.

sexta-feira, 19 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (X)


POEMAS INÉDITOS DE FLÁVIA ROCHA


TANKA
Dez mil folhas



I.

Nas noites quentes
adulterar as formas
e as texturas,
esquecer atrás de si
as reminiscências.


II.

Ir para longe
dos quartos sob a lua,
e se extraviar
entre as coisas leves
e sem indiferença.


III.

As dez mil folhas
espalhadas pelo chão,
nunca escondem
passos que se afastam
da estrada possível.


GHAZAL

Expressão impassível no rosto sem nome:
a memória, sem itinerário, falseia um nome.

Pretensão é querer descobrir o homem
obscuro e sincero por trás do seu nome.

Ele se concilia com tudo que consome,
e descortina a primeira camada do nome.

As marcas agora visíveis comovem:
não basta quebrar mitos em Seu nome.

O divino devora a matéria da fome
e não fixa a vibração sutil do nome.

A fome persiste sobre as camadas e move
no rosto um sinal de luta por um nome.

Mais fundo, pouco resta que console:
a entrega é falha sem a alquimia do nome.

O tempo passa sem deixar que se molde
na memória uma imagem perfeita do nome.

Faço minha a procura convicta do homem
por um rosto seu – empresto-lhe meu nome.

quinta-feira, 18 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (IX)


UM POEMA INÉDITO DE WILSON BUENO

28

Cai-me ao colo Amor de súbito
Um susto, um esgar, um bramido.
Estertor de tudo – desamor Amor ao avesso?
Quero-vos lúmpen, maltrapilha, campesina
Quero-vos riacho e manso açude.
Amor, entanto, vocifera pontiagudo
Mural de rochas e lascas e espelhos e cardumes
A fingir do Amor – casta figura? –
O Desamor em pêlo, às turras,
Aos vozeios, facas, murros, unhas
A alvoroçar o silêncio de agulhas.

(Do livro inédito 35 Poemas de Amor.)

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (IX)


POEMAS INÉDITOS DE MICHELINY VERUNSCHK

Uivo
uma dor perdida
e latejo
num vasto espaço
que a cartografia da noite
diz ser a região dos silêncios.

Uivo.

Neblina.

* * *

Amor é morte
carta violada
que sangra aberta
todos os degredos
túmulo rasgado
entre véu e selos
leitura suicida
e assassinada.

Amor é morte
carta extraviada.

* * *

O sol
devolve
cada coisa
que a noite
furtou
com sua língua de gata.
E tudo retorna
ao seu lugar usual.

No entanto,
nem tudo se recupera:
o jardim de feras em chamas que há nos sonhos,
e entre o Abismo e o Unicórnio,
Eurídice,
o meu olho cego.

(Do livro A Cartografia da Noite, a sair em breve.)

quarta-feira, 17 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (IX)


NOVOS POETAS (IV): LUIZ ARISTON

TENTANDO JOÃO CABRAL
a Jussara Silveira

1. As gentes têm por invisível
comum, senão seu próprio vício,

haver, suas próprias, as artes
ou ser o próprio malas-artes,

que mesmo o canto, por exemplo,
escultura, vem de entre os dentes,

ao ouvido, é bem mais frágil
que o invisível vidro ao tato.

2. O sem-porquê do compromisso
relativo ao valor do ofício

mostra-se mais, mostra-se noite,
quando um suposto ouvinte afoito,

diante do quebra-cabeça,
elege, feito cabra-cega,

em meio a seus pedaços todos,
o menos importante: o autógrafo.

3. Até se expor (e dar nas vistas?)
autografar-se alienígena,

recanto de um canto em um outro,
transplante de um obscuro órgão

de si para si, mas via alguém,
quesito e réplica através.

Anzol em peixe, aquele canto;
este, uma espinha na garganta.

***

se for aquilo que se foi que volta
ao paraíso o pecador que torna
em torno desse próprio posto à prova
sentir o sabor de outra boca à boca
é outro o velho gosto que se arrota
sentir o sabor de outra boca à boca
em torno desse próprio posto à prova
ao paraíso o pecador que torna
se for aquilo que se foi que volta


A LUA EM DÉBORA

A lua, quando a lua indo embora,
Manhã, que se dilua toda luz,
Despede-se, despindo-se da luz,
Por dentro está mais nua que por fora.

A lua e outra lua, dentro e fora,
Oferta-se perfeita, sua esfera,
Em duas, ao desejo em outra esfera,
Olhar que se dilua dentro e fora.

A lua, dentro, quando a lua, fora,
Estreita o tempo e sobre o tempo o torna,
Entranha o dentro ao dentro e o tempo torna
Vertigem na vertigem da demora.

Pois quando a lua, quando se demora
E assim delude a luz e a terra opaca,
Persiste em lua ainda mais opaca,
A lua que debruça da memória.

terça-feira, 16 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (VIII)


CÃNONE E ANTICÂNONE (V)

Ferreira Gullar, em crônica publicada no dia 07 de março na Folha Ilustrada, escreve: “A grande arte inventa o real, subverte-o, enriquece-o, mesmo quando se trata de realistas como Corot ou Coubert. Digo que a arte existe porque a realidade é pouca, não nos basta. (...) A tendência realista foi consequência da substituição da visão religiosa pela concepção científica e do desenvolvimento industrial. (...) Os estetas e teóricos da arte, como os artistas, sempre entenderam que arte e realidade são coisas distintas, pelo fato mesmo de que a arte-pintura, sendo um modo de expressão, não tem a materialidade das coisas reais. Ao substituir as significações simbólicas pela exposição pura e simples dos fenômenos reais, abre-se mão da capacidade humana de criar um universo imaginário que, durante milênios, contribuiu para fazer de nós seres culturais, distintos dos demais seres vivos que, estes, sim, limitam-se à experiência do mundo material”. Estas observações foram feitas pelo poeta maranhense a respeito das artes plásticas, mas, a nosso ver, são pertinentes a todas as formas de expressão artística, especialmente a poesia, ainda que ela trabalhe com palavras e não com cores, linhas e volumes.

Uma conquista da modernidade, em oposição à tradição clássica, foi justamente a de afirmar a autonomia da arte em relação ao real; não se trata mais de retratar o mundo, e sim de criar um mundo com as palavras. O próprio poema é uma realidade autônoma, um pequeno universo, “com sua própria fauna e flora”, como dizia o poeta chileno Vicente Huidobro. O poema é concebido pela modernidade como uma estrutura em que as relações entre as palavras, os efeitos sonoros e visuais, a semântica, a invenção sintática e metafórica, enfim, a função poética (Jakobson) se afirma, deixando em segundo plano a mera apresentação de uma idéia de mundo.

É claro que em autores como Maiakovski, Brecht ou Carlos Drummond de Andrade (Rosa do Povo) há um sentido referencial crítico, de violenta contestação social, mas este sentido é integrado à composição, é inseparável do jogo formal que define a poesia como poesia, e a distingue de uma crônica, um artigo acadêmico ou um texto de política ou sociologia. Não é o conteúdo de um poema de Drummond que o torna válido, mas a maneira como ele se relaciona com a arquitetura verbal. Esta longa introdução quer apenas situar as referências teóricas utilizadas para a leitura comparativa de dois poetas brasileiros contemporâneos, que publicaram os seus primeiros livros na década de 1990: Fábio Weintraub e Antonio Risério.

No livro Literatura Brasileira Hoje (São Paulo: Publifolha, 2004), o crítico da Folha de S. Paulo Manuel da Costa Pinto afirma o seguinte sobre a poesia de Fábio Weintraub, a quem é dedicado todo um capítulo: “Os dois traços marcantes da poesia de Fábio Weintraub são a crítica da realidade social brasileira e a atitude de dar voz ao outro, com poemas que narram uma situação em que irrompem falas dos ‘personagens’. (...) Os dramas urbanos de Weintraub parecem extraídos de manchetes de jornal; seus poemas trazem o protesto da viúva no velório (...) ou o desespero do morador de rua”. Estes comentários fazem referência ao livro Novo Endereço, de Fábio Weintraub, que recebeu dois prêmios literários, o da Funalfa e o Casa de las Américas, e obteve resenhas em jornais diários, como a Folha de S. Paulo, e sites de literatura. O autor colaborou nas revistas CULT e Inimigo Rumor. Vamos agora ler um dos poemas do livro:


BARRABÁS

Vocês não podem velar
o corpo do meu marido
ao lado do desse aí
que a polícia acertou

Vocês me desculpem
imagino o sofrimento
perder um filho assim moço

Meu Cícero
morreu trabalhando
Um tiro pelas costas
às duas da manhã
Ao lado desse aí
o corpo dele não vai gelar

Não adianta insistir
ao lado de bandido
meu marido não fica

(Novo endereço. São Paulo: Nankin Editorial, 2002.)

O poema é construído como um monólogo em que uma personagem sem nome, a Viúva, faz a narrativa de um caso de violência urbana. O vocabulário é simples, mimetizando a possível fala de uma mulher de condição social desfavorecida. Não há estrutura métrica ou rimas; o poema é construído em versos livres, curtos e coloquiais, sem nenhum artifício de linguagem, como metáforas ou metonímias. O autor não busca uma construção rítmico-melódica, nem apresentar imagens verbais de qualquer tipo. É uma antipoesia de crítica social que funcionaria de modo mais eficaz, talvez, no espaço do teatro, ainda que falte ação dramática à cena, que é estática. Como texto literário, não tem força de impacto, inclusive do ponto de vista emocional, pela aproximação com o melodrama. Ele se justifica, ou quer se justificar, pela realidade que retrata nos bastidores da cena, pelo “conteúdo”, mas não se sustenta, ao nosso ver, como construção textual, pela ausência de uma arquitetura poética, enfim, de um universo semântico próprio. Como escreveu certa vez Ana Hatherly, a poesia não busca retratar o mundo, e sim “acrescentar mundos ao mundo”.

Já o poeta e antropólogo baiano Antonio Risério, em seu livro Brasibraseiro (São Paulo: Landy Editora, 2004. Prêmio Jabuti), escrito em parceria com Frederico Barbosa, faz um amplo painel da cultura brasileira, registrando desde a presença da tradição poética oral africana (Oriki p/ Oiá-Iansã, Obô Mejá) até o diálogo com a poesia arcadista de Claudio Manuel da Costa, ao mesmo tempo em que faz reflexões sobre o próprio conceito de nacionalidade e os conflitos sociais da realidade brasileira, mas sempre investindo na interação do sentido com a elaboração poética de cada texto, como nesta peça, que vamos ler agora:


STRASSENKINDER

crianças que miram espelhos
e giram as caras cansadas
onde narciso não é conselho
nem comboio acha a estrada

crianças de poucos pentelhos
de rubras roupas rasgadas
entre guinchos gosmas e relhos
orgasmos de putos no ralo

crianças de coxas vermelhas
no beco das bocas usadas
moeda e moenda dos grelos
nas fodas das doidas danadas

crianças que masturbam velhos
e chupam xotas grisalhas
lambendo o sangue dos medos
nos dedos grudando de gala

*

sob a navalha da ira
o sol se descola sagrado
que a vida por mais que me fira
não me verá conformado


O poema de Antonio Risério, ao contrário daquele de Fábio Weintraub, não imita a fala de um Outro, mas é dito em primeira pessoa: é o poeta que articula o discurso, com a sua própria dicção, sem fingir um timbre estranho ao seu. Podemos recordar aqui, novamente, das concepções de Jakobson, para quem, conforme diz Terry Eagleton, “A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana”, que estaria desgastada pelo uso ordinário. Por isso mesmo, Jakobson reivindica a “violência organizada contra a fala comum”, para que o texto poético tenha mais força de impacto. Eagleton acrescenta ainda: “À crítica caberia dissociar arte e mistério e preocupar-se com a maneira pela qual os textos literários funcionavam na prática: a literatura não era uma pseudo-religião, ou psicologia, ou sociologia, mas uma organização particular da linguagem” (in Teoria da Literatura, Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006).

O poema de Antonio Risério tem uma construção deliberadamente “artificial”: é construído em cinco quartetos, sem métrica fixa mas com uso de rimas; há o emprego visível de assonâncias e aliterações, de trocadilhos e metonímias, com imagens fragmentadas e concisas de alta expressividade, como closes cinematográficos, mas, ao mesmo tempo, a linguagem coloquial é incorporada a essa estrutura, com o recurso à gíria e ao palavrão, e desse choque entre a norma culta e a fala chula, o cerebral e o espontâneo, o eu que fala do mundo e o eu que cria um mundo, surge um texto poético muito mais violento, forte e eficaz, inclusive do ponto de vista do sentido, que não é oculto, mas explicitado (“que a vida por mais que me fira / não me verá conformado”). Não há conflito entre engenhosidade formal e sentido, mas sim a habilidade do poeta (ou a falta dela) para estabelecer uma unidade de efeito entre forma e fundo, de modo a causar impacto no leitor. Sem essa habilidade, a função poética se perde em mero registro de informações já bem conhecidas pela leitura dos jornais, sem acréscimo de informação nova.

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (VII)



















Caros, eu ainda estou sem tempo para continuar a série Cânone e Anticânone, devido ao excesso de trabalho; enquanto isso, postarei aqui poemas de autores jovens. Tão logo consiga horas livres, voltarei à série sobre o cânone e a crítica literária, que acho de extrema urgência. Em tempo: não responderei aos ataques pessoais grosseiros de certos autores rumorosos, prefiro discutir critérios de escolha estética com base em argumentação teórica e análise comparativa de poemas; método poundiano, crítica via comparação. Conversa inteligente com pessoas inteligentes, não Modos de Usar o marketing e a mídia.

NOVOS POETAS (III): ANDRÉIA CARVALHO

uma única vez
acordaram-me de um sono de feras

via através
de um rasgo
no olho orquidário do planeta

vi-me fora das grades
internas
diria metamorfose

mas não puderam conter-me fora
abrasivo, lunático de lucidez
quebrava o sedimento do caminho

deitaram-me entre alfazemas
devonianas
desfizeram correntes imaginárias

mas não puderam sustentar-se
com a serenidade de escarpa
nem com as monções, nem com as siestas

acossado de mim
digeri a planície do poente
e grãos de lótus devolveram-me ao centro

não puderam manter-me externo
pois era dentro
onde estava
o que sondei além
o que lançou-me de vós

agora, orbito semi-desperto
com o olfato domado por
cílios que chovem hibiscos

(14/03/10)

* * *

a passagem do fogo nos feriu
com o corpo de água salamandra

mas não te relego o rosto
ao apagado da caixa de memórias

deixo-te assim:
escapulário e camafeu
soando artesanato
em fechadura destravada
de medalha antiga

gravura que não devora
o pulso que a decora
e
pulsa pulsa pulsa
asa
fecha e abre
e sela
o dadaísmo das manhãs
que ainda não se fartaram
de esculpir o cadáver esquisito
da noite

(05/03/10)


(Leia mais poemas da Andréia no blog O Hábito Escarlate, http://habitoescarlate.blogspot.com/)

segunda-feira, 15 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (VI)


NOVOS POETAS (II): FABRÍCIO CLEMENTE

CONVALESCÊNCIA

O céu se esfarinha como as asas dos lençóis

Estamos destilando desde as docas do desejo

Um berro de alumínio Um leque de luas lapidado

Estamos conspirando contra cornucópias de colírios

E tomates de insulto em lepra flamejando

Nas horas de angústia contra os corredores

Desfiam-se os coices de outra alma morta

Tênis da primavera em janela de hospital

Aceno sanguíneo

Aceno sanguíneo

Ave de rapina

Cavalo Rosácea

Cavalo Rosácea

Pirata possesso

Ave-estilingue no brilho da manhã

Ave desavisada

Ave cansada

Vício vigor

Ave de lava

Com gládio de glande na gleba sem glosa

Os dias num carrinho de mão imantado de máscaras

Róseo resultado desta equação

Os dias, coração de acasos, culminando em lupa

Por sobre estes pomares de vísceras acesas

A casa porta e coronária

Rebocada

Pelo cuspe do colibri


OLHO AMADO

Agora, para manter-me no mundo será preciso assumir a sanha surda da soberba, o riso; escárnio assírio do palhaço sob a vertigem-guilhotina. Vejo os dias escorrerem pelo vão da janela, fechada, sobre a minha sugestão de alma, e as promessas assistem armários prenhes de pesadelo. Há sombras à espreita nos castelos que jazem latejando sobre os furúnculos da Terra-Mãe. Estou cansado, porém, somente persistindo na masturbação poderei alcançar tua imagem de atlas túrgido consubstanciando-me no sangue que tuas garras arrancaram do cetim que agasalha o planeta. Os arbustos, espiões do terremoto, confinam e confidenciam que há corvos coroando querubins enquanto a espada divina sai surtando numa busca galopante de gafanhotos rumo às têmporas do meu tempo.
(Confiram mais poemas de Fabrício Clemente na Zunái.)

domingo, 14 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (V)


NOVOS POETAS (I): ARIANE ALVES DOS SANTOS

SEM TÍTULO

Meu único desejo:
Adormecer nesse retrato

Não ser mais as cinzas
que encerram
a ressonância dos pulmões

Seus braços convulsos estendidos sobre a mesa
contém o incêndio de cada minuto
As facas se voltam contra o sol
Anulando os meandros da face

O corpo
se tornará abrigo dos cinco elementos
Os vestidos
se diluirão nas nuvens
A chuva
será tua transpiração

O peito se retorce em tua única afirmação:
Falar
é entregar as armas ao assassino

Sem saber que o silêncio parte minhas vértebras
ao meio.


SEM TÍTULO

O pulso torna-se metal

Sinto
as horas pesadas como teu braço
dependurado na cama
Teus olhos desfeitos em ar

Uma locomotiva febril percorre minha espinha
Mastigo os anéis do dia
E uma ferida floresce entre os dedos.

Sou um naufrago enclausurado num seixo
roçando a palidez contra os joelhos
Incendiando as artérias do universo

Arando as cinzas de uma ave esfacelada.


SEM TÍTULO

Interrogo a farpa
cravada na memória
ao cristal que aponta
para os destroços

Um eco se perde num olhar desesperado

O moinho se despedaça no mar das horas
Perco minha idade nas estacas do vento

Vi um contorno curvado
Afogando as têmporas na saliva
Arranhando a angústia nas paredes

As cortinas do tempo cortaram o rosto

Os mortos bebem o leite vertido
no ventre

A água do sonho se perde numa caverna de promessas

E a alma se esconde no mármore.

sábado, 13 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (IV)


CÃNONE E ANTICÂNONE (IV)

Todo cânone é instável. Nenhum é definitivo. Ezra Pound, em sua “ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”, acertou muito, incluindo em seu paideuma os poetas chineses, por exemplo (pouco estudados na época), os trovadores provençais, os metafísicos ingleses, entre outros poetas que julgava os mais inventivos da tradição literária. Porém, até Pound cometeu equívocos, deixando de lado autores como Góngora, Goethe, Baudelaire e Mallarmé, talvez por sua aversão à metáfora, à linguagem enigmática, e por sua defesa de uma poesia mais clara, precisa e objetiva. O crítico norte-americano Harold Bloom, em época mais recente, publicou um livro bastante comentado, O Cânone Ocidental, em que revela preferências conservadoras em matéria de poesia, incluindo o chileno Pablo Neruda, por exemplo, e deixando de lado o peruano César Vallejo, talvez o poeta mais criativo da língua espanhola no século XX.

Discutir cânones, talvez, seja perda de tempo (embora seja uma das atividades centrais da crítica literária). O que vale a pena abordar, a meu ver, não são as listas de nomes em si mesmas (que variam ao longo da história, conforme diferentes modelos teóricos e apreciações subjetivas), e sim os critérios de escolha, os princípios que norteiam a apreciação de um texto literário. Claro que, para encurtar a conversa, ficaremos apenas no caso brasileiro, e em especial com a poesia contemporânea, e mais exatamente aquela produzida nas duas últimas décadas. Eu confesso que não tenho a menor vontade de apresentar mais uma lista, pois já existem várias: nas antologias (como Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil, que organizei com Frederico Barbosa), em artigos de crítica, ensaios e trabalhos universitários. O que eu pretendo, a partir de agora, nesta série, é discutir autores que ficaram “de fora” da avaliação dos críticos, em contraposição aos autores “consagrados”, para refletir sobre os procedimentos adotados na valorização de uns e outros, pela análise estética comparativa de autores e obras. Uma crítica da crítica, para jogarmos a luz da incerteza sobre supostas certezas.

quinta-feira, 11 de março de 2010

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (III)


CÃNONE E ANTICÂNONE (III)

Haroldo de Campos, no ensaio Texto e História, incluído no livro A Operação do Texto (São Paulo: Perspectiva, 1976), afirma o seguinte: “a vanguarda brasileira propõe uma leitura radicalmente diversa de seu passado literário. a idéia de uma poética sincrônica parece aqui extremamente fecunda, nos termos em que a formulou Roman Jakobson (Linguistic and Poetics): ‘A descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida. (...) A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos. (...) Uma poética da história ou história da linguagem cabalmente compreensiva é uma superestrutura a ser construída sobre uma série de descrições sincrônicas sucessivas’.

A aplicação deste critério numa literatura como a brasileira (cuja história real, a rigor, ainda está por fazer-se) produz desde logo um efeito desobstrutivo e dessacralizador: de um lado o prontuário das obras a serem consideradas (antes obras que autores) fica inevitavelmente reduzido, com a remoção do entulho despiciendo (por ‘glorioso’ que seja); de outro, perfilam-se com nitidez antes impossível de obter aqueles autores (textos) que realmente contam numa perspectiva radical, inclusive de validade internacional (...). Esta ‘drástica separação’ (...) é empobrecedora apenas na aparência. O que se perde em quantidade e diluição, ganha-se na qualidade e rigor. (...) O crítico poderá agora, de cabeça erguida e sem pedir escusas, reivindicar alto e bom som aquilo que nos é devido, o contributo de informação original que temos a reclamar como coisa nossa na evolução de formas da literatura universal, na, por assim dizer, ‘enciclopédia imaginária’ dessa literatura. O que era antes um panorama amorfo, contemplado por um olho destituído de projeto, ganha coerência e relevo hierárquico, readquire vida dentro de uma tábua sincrônica onde presente e passado são contemporâneos.”

Dentro desta perspectiva, Haroldo de Campos propõe uma releitura da história da literatura brasileira, não mais conforme critérios sociológicos ou políticos, e sim estéticos. O resultado dessa releitura crítica seria uma Antologia da Poesia Brasileira de Invenção, que infelizmente Haroldo não chegou a organizar. Participariam dessa obra autores como Gregório de Matos, Sousândrade, Kilkerry, bem como os textos mais radicais de poetas como Gonçalves Dias e Cruz e Sousa, com a exclusão deliberada dos parnasianos e de românticos menores, como Casimiro de Abreu. Não se trata, é claro, de uma escolha “imparcial” ou “neutra” de textos e obras, mas um recorte deliberadamente parcial, que elege os autores e obras do passado que têm mais afinidade com as pesquisas formais da vanguarda. Conforme diz Jorge Luís Borges, citado por Haroldo de Campos neste ensaio, “A verdade é que cada escritor cria os seus precursores. A sua obra modifica a nossa concepção do passado como há de modificar a do futuro”. A partir da afirmação borgeana, conclui Haroldo, “Pode-se dizer que uma nova obra decisiva ou um novo movimento artístico propõem um novo modelo estrutural, à cuja luz todo o passado subitamente se reorganiza e ganha uma coerência diversa. (...) Entre o ‘presente de criação’ e o ‘presente de cultura’ há uma correlação dialética: se o primeiro é alimentado pelo segundo, o segundo é redimensionado pelo primeiro. Vanguarda como atitude produtora no ‘presente de criação’ e visada sincrônica como atitude revisora no ‘presente de cultura’, eis os polos desta tensão na atual literatura brasileira.”

GALERIA: MANUEL ÁLVARES BRAVO (II)


CÃNONE E ANTICÂNONE (II)

Terry Eagleton é autor de um livro chamado Teoria da Literatura — Uma Introdução (São Paulo: Martins Fontes, 2006). Eu não concordo com muitas de suas conclusões, que vêm de uma análise marxista do trabalho literário, mas ele apresenta algumas questões que merecem a nossa reflexão. Por exemplo: “A dedução, feita a partir da definição da literatura como uma escrita altamente valorativa, de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor. (...) Até as razões que determinam a formação do critério de valioso podem se modificar. Isso, como disse, não significa necessariamente que venha a ser recusado o título de literatura a uma obra considerada menor: ela ainda pode ser chamada assim, no sentido de pertencer ao tipo de escrita geralmente considerada como de valor. Mas não significa que o chamado ‘cânone literário’, a ‘grande tradição’, inquestionada da ‘literatura nacional’, tenha de ser reconhecido como um construto, modelado por determinadas pessoas, por motivos particulares, e num determinado momento. Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer sobre isso. ‘Valor’ é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos. (...) O fato de sempre interpretarmos as obras literárias, até certo ponto, à luz de nossos próprios interesses — e o fato de, na verdade, sermos incapazes de, num certo sentido, interpretá-lo de outra maneira — poderia ser uma das razões pelas quais certas obras literárias parecem conservar seu valor através dos séculos.” Porém, continua Eagleton, “Diferentes períodos históricos construíram um Homero e um Shakespeare ‘diferentes’, de acordo com seus interesses e preocupações próprios. (...) E essa é uma das razões pelas quais o ato de classificar algo como literatura é extremamente instável.”