terça-feira, 31 de março de 2009

GALERIA: MAN RAY (II)


VANGUARDA POÉTICA EM PORTUGAL


O movimento da PO-EX surge numa época conturbada pela Guerra Fria, marcada por eventos como Guerra do Vietnã, os movimentos feministas e estudantis, a luta contra a discriminação racial, a expansão da contracultura e da música pop, a divulgação de filosofias orientais e por acontecimentos tecnológicos como as viagens espaciais. Portugal vivia então numa das últimas ditaduras de direita da Europa, comandada por Antônio Salazar (o outro regime autoritário era o de Francisco Franco, na Espanha), que sonhava em manter o domínio colonial em países como Angola e Moçambique e preservar um sistema nacionalista, messiânico e militarista, há muito anacrônico no continente europeu.

Conforme diz Ana Hatherly, no livro Um calculador de improbabilidades, os poetas e intelectuais portugueses sentiram “uma premente necessidade de mudança e de abertura ao mundo”, mas também “uma necessidade íntima de rigor, de transparência e de audácia incomuns nesse tempo” (HATHERLY, 2005: 8-9). A PO-EX, prossegue a autora, “reflete essa conjuntura e ilustra-a à sua maneira, ao assumir uma postura de insubordinação estética e cívica”, característica de todas as tendências de vanguarda do século XX, mas é um fenômeno “peculiar na medida em que foi simultaneamente uma revolta contra o status quo local e a integração numa recusa dos valores de um establishment internacional, que se tornara intolerável para os jovens de então” (idem).

O sentimento de desconforto em relação ao regime salazarista e o desejo de manifestar o repúdio na forma de uma arte inovadora foram essenciais à definição dos vetores estéticos e ideológicos da PO-EX, que tem como marcos fundadores os lançamentos das revistas Poesia Experimental, em 1964, e Operação, em 1967, além de happenings como o Concerto e Audição Pictórica (1965), a exposição coletiva VisoPoemas (1965) e a Conferência Objeto (1967), que reuniram poetas, músicos e artistas visuais.

O caráter provocativo e performático desses eventos é herdeiro do espírito de transgressão das vanguardas históricas, presente na leitura do “extenso poema sonoro” Zang Tumb Tuuum por Marinetti, que “explora a capacidade do perfomer para usar a voz, gesto e entonação”, conforme diz Marjorie Perloff em O momento futurista (PERLOFF, 1993: 119), ou ainda nas intervenções de Maiakovski nos cabarés de Moscou, em que o poeta se apresentava com as faces pintadas ou com a célebre gravata amarela, conforme relata Angelo Maria Ripellino em Maiakovski e o teatro de vanguarda (1971).

No Concerto e Audição Pictórica, realizado em Lisboa, em 1965, com a participação de poetas como Salette Tavares, Melo e Castro e de músicos como Jorge Peixinho, foram tocadas composições de John Cage, com a colaboração adicional de “um caixão, um piano de meia cauda, instrumentos de percussão vários, balões, metrônomos, uma harpa, um piano de criança, palavras soltas, chocalhos de várias espécies, com e sem badalo, uma flauta de bisel, uma couve, um bidê, risos, pandeiretas, música de Chopin, um ré-ré, um despertador, um rolo de papel higiênico, um jarro de água, um brinquedo de corda, 2 violinos de criança (brinquedos), uma máquina de barbear elétrica, um cravo (flor), uma casa de cão que ladra (brinquedo), pratos, guizos, um apito, espaço tempo, ritmo, luz, silêncio, uma pistola (brinquedo)” (HATHERLY, 1981: 46).

Já na Conferência Objeto, realizada na Galeria Quadrante, durante o lançamento das revistas Operação 1 e 2, foi preparado um ambiente para o público que recorda a técnica da instalação, com as folhas de cartolina que compunham o primeiro número da revista “dispostas na parede como numa exposição de pintura normal, suspensas de fios de nylon, mas sem moldura” (idem, 77), enquanto no chão da sala foram colocadas várias capas da OP.-1, “formando cubos em dois cantos da sala” (idem).

(...)

A resistência estética era, em si mesma, um ato político, pois indicava outras possibilidades de comunicação e, portanto, de relacionamento entre indivíduo, sociedade, arte e história. A ruptura proposta pelos experimentalistas portugueses, porém, não significou uma recusa de toda a tradição literária, à maneira dos futuristas italianos, que opunham o automóvel à Vitória de Samotrácia e defendiam a destruição de museus e bibliotecas. Os experimentalistas recusavam a dicção lírico-discursiva, o sentimentalismo, a retórica, mas propunham o diálogo com o que houve de mais inventivo no passado.

“Nós falamos sempre em ruptura”, diz Melo e Castro, “mas essa ruptura diz respeito a um convencionalismo que nos era imposto, nunca ruptura com uma tradição que era preciso reconstruir” (idem, 20-21). Como exemplo da reconstrução ou reinvenção do passado, diz o autor, “fomos, por exemplo, desenterrar a Poesia Barroca Portuguesa, fomos recuperar, fazer uma revisão crítica das fontes culturais que eram sistematicamente, por uma razão ou (...) sistematicamente ocultadas” (idem). E Ana Hatherly declara que “essa ruptura é uma recusa do ambiente que nos rodeia, e nunca é uma ruptura com as nossas raízes. (...) Pois, porque na verdade muitos dos meus trabalhos têm base numa espécie de quase reelaboração de maneiras de trabalhar antigas” (idem, 21). A eleição de um repertório inventivo com o qual se poderia dialogar, o repertório barroco, maneirista e dos alfabetos arcaicos, é o que distingue, essencialmente, a PO-EX das vanguardas históricas, que pretendiam criar algo totalmente novo, sem raízes em nenhuma tradição. O diálogo com o barroco, e com a forma do labirinto poético em especial, foi decisivo para a evolução do trabalho poético de Ana Hatherly.

(Fragmento de meu ensaio Vanguarda poética em Portugal. Leiam o texto integral no site Cronópios.)

segunda-feira, 30 de março de 2009

GALERIA: MAN RAY (I)


DOIS POEMAS DE WINNER CHIU


MACAU

Os cais de Macau

são

lama podre

faiscando

coágulos:

a vida

arrastada entre

o osso

e as poças —

a madrugada que cai

os olhos

da lua

exilados

no peito


EM HONG KONG

Em Hong Kong
A asa de uma abelha se estancou.

Vultos irreconhecíveis,
Marés e ribanceiras cortaram os nós...
As mãos
são troncos da noite
perfurando as caixas.

Em Hong Konga luz quase morre
névoa assustada
homem que treme na incapacidade

Em Hong Kong
somos todos a mesma criatura
animal fresco e rançoso
sem notícias do amanhã.

domingo, 29 de março de 2009

TÉCNICAS DE AIKIDÔ (II)

TRÊS POEMAS DE BRUNO PRADO

VIGÍLIA

O gosto da palavra — densidade ácida,
Tóxica; transtornada... Impulsivamente
Branca. Seu viço — pernicioso vício —
Celeuma: nevasca alveolar — siberiana.


SIBILA

Um transe — dez leões de pedra
À sombra tétrica da ave sibilante;
O sol poente — a pira multiforme.


SOPRO

Impulsivo —

Leopardo albino,
Exangue;

Golpe
Rasteiro, farpado —

Obscuras
Presas de mármore

— Livro aberto

: A faca

Pânico
Voraz;

Lapso —
Ponta da percepção.

sábado, 28 de março de 2009

TÉCNICAS DE AIKIDÔ

UM POEMA DE ADEMIR ASSUNÇÃO


MICOSE NA PELE DO TEMPO
(segundo monólogo interior de Lili Maconha)

Há tempos o faquir polia as pontas dos pregos
com areia do Mojave.

Há tempos e dimensões perdidas
apenas esperando o momento certo de conexão.

Há o tempo lá fora, chuva de granizo,
fagulhas de fogos de artifício
e brumas que se movem.

Há o tempo dos estalidos distantes das estrelas.

E há o tempo do Aqui, esse templo da linguagem
que se enrola em frases-serpentes
enquanto escrevo

e que talvez continue traçando sinuosidades
muito tempo depois.

Mas de tempos em tempos
alguém estoura os miolos, alguém explode uma aeronave
alguém fecha o livro

e não o abre nunca mais.

(Poema do livro A musa chapada. São Paulo: Demônio Negro, 2009)

quinta-feira, 26 de março de 2009

GALERIA: MARLOVA (II)


DOIS POEMAS DE CAMILO PESSANHA (EM ORTOGRAFIA ANTIGA)

Eu vi a luz em um paiz perdido.
A minha alma é languida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslisar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...

* * *

Cristalisações salinas,
Myrrhae na areia o plasma vivaz,
Não se desenvolvam as ptomainas.
Que adocicado! Que obcessão de cheiro!
Putrescina — Flor de lilaz!
Cadaverina — Branca flor do espinheiro!

Só o meu craneo fique
Rolando insepulto no areal
Ao abandono e ao acaso do simoun...
Que o sol e o sal o purifique

(Do livro Clepsydra — Poemas de Camilo Pessanha. Campinas: Editora da Unicamp, 1994)

quarta-feira, 25 de março de 2009

Jornal britânico denuncia crimes de guerra de Israel em Gaza






24/03/2009 - 05:57 - EFE

Londres - O diário britânico "The Guardian" reuniu provas documentadas de supostos crimes de guerra cometidos por Israel durante a recente ofensiva contra a Faixa de Gaza, que se estendeu de 27 de dezembro passado a 18 de janeiro.

Entre os crimes citados pelo jornal está o uso de crianças palestinas como escudo humano e os ataques diretos contra médicos e hospitais.O "Guardian" diz ter encontrado provas dos ataques feitos contra civis por aviões não tripulados que, segundo o jornal, são tão precisos que seu piloto pode distinguir até a cor da roupa de um possível alvo.Os depoimentos estão em três vídeos feitos pelo "Guardian", que assegura que dão força à chamada internacional para que se investigue a operação israelense contra o Hamas, que matou cerca de 1.300 civis.

Entre os depoimentos mais dramáticos recolhidos pelo "Guardian" está o de três irmãos adolescentes da família Al-Attar, que asseguram terem sido tirados de casa e obrigados a se ajoelhar em frente a carros de combate israelenses para evitar que os palestinos atacassem os invasores.Os irmãos contam também que os soldados israelenses os enviaram em outras ocasiões como missão avançada às casas dos palestinos para, no caso da presença franco-atiradores, servirem de escudo para as primeiras balas.A utilização de escudos humanos foi declarada ilegal em 2005 pela Suprema Corte israelense após vários incidentes do tipo.

Segundo o jornal, vários médicos e motoristas de ambulâncias contaram terem sido alvo de disparos israelenses e 16 morreram assim, algo estritamente proibido pelas convenções de Genebra.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, mais da metade dos 27 hospitais e das 44 clínicas de Gaza foram bombardeados pelos israelenses.

Em um relatório publicado hoje, a própria organização Médicos pelos Direitos Humanos de Israel denuncia as violações."Observamos uma forte degradação ética por parte das Forças de Defesa Israelenses no que se refere ao tratamento da população civil de Gaza, que equivale de fato a um total desprezo pelas vidas dos palestinos", critica a organização.

terça-feira, 24 de março de 2009

ÚLTIMAS NOTÍCIAS (III)







Caros, saiu uma ótima tradução dos Caligramas de Apollinaire, feita por Álvaro Faleiros e publicada pela Ateliê Editorial. Esta obra, que reúne poemas escritos durante a I Guerra Mundial e cuja primeira edição foi impressa em 1918, é um ícone das vanguardas estéticas das primeiras décadas do século XX. Os poemas desse livro, com ressonância direta dos ideogramas japoneses e da caligrafia, anteciparam em quase meio século as conquistas da Poesia Concreta (e lembremos que o Plano-piloto cita a frase de Apollinaire: “é preciso que a nossa imaginação se habitue a pensar sintético-ideograficamente em vez de analítico-discursivamente”). Outros autores da vanguarda francesa que ainda merecem ser traduzidos e publicados no Brasil: Blaise Cendrars e Max Jacob.

segunda-feira, 23 de março de 2009

GALERIA: MARLOVA




ÚLTIMAS NOTÍCIAS (II)

O poeta e tradutor Ronald Polito acaba de publicar o livro Poemas, que reúne a produção poética do autor mexicano José Juan Tablada (1870-1945). O livro, de 464 páginas, saiu pela Edusp e é um dos lançamentos mais importantes do ano. Tablada, autor de uma obra notável, chamada Li-Po e outros poemas, que é um dos marcos fundadores da poesia visual na América Latina, também introduziu o haicai na poesia ibero-americana. Leiam abaixo algumas peças:


PANORAMA
Sob minha janela, a lua nos telhados
e as sombras chinesas
e a música chim dos gatos


GOLFINHOS
Entre as ondas azuis e brancas
roda a natação dos golfinhos
arabescos de ondas e de âncoras


COQUILLAGE
A onda feminina me mostrou,
carnal, no meio da brancura,
a concha que turbou Verlaine...


PELICANOS
Suicidas como os humanos,
cravam os grandes bicos nas rochas
e se deixam morrer os pelicanos


PEIXES VOADORES
Ao golpe do ouro solar
estala em estilhaços o vidro do mar.


Traduções: Ronald Polito

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Caros, acaba de sair a segunda plaquete do selo Arqueria, criado pela poeta Virna Teixeira: trata-se de Fim das circunstâncias, que traz uma seleção de poemas do livro Capitale de la douleur, de Paul Éluard, publicado em 1926. A tiragem é de 40 exemplares, e os interessados podem encomendar a plaquete pelo e-mail arqueriaeditorial@yahoo.com.br. Leiam abaixo um dos poemas da plaquete:


LE MIROIR D´UM MOMENT

Il dissipe le jour,
Il montre aux hommes les images déliées de l´apparence,
Il enlève aux hommes la possibilité de se distraire.
Il est dur comme la pierre,
La pierre informe,
La pierre do mouvement et de la vue,
Et son éclat este tel que toutes les armures, tous les masques en sont faussés.
Ce que la main a pris dédaigne même de prendre la forme de la main,
Ce qui a été compris n´existe plus,
L´oiseau s´est confondu avec le vent,
Le ciel avec sa vérité,
L´homme avec sa réalité.

O ESPELHO DE UM MOMENTO

Ele dissipa o dia,
Ele mostra aos homens as imagens soltas da aparência,
Ele retira dos homens a possibilidade de se distrair.
Ele é duro como a pedra,
A pedra disforme,
A pedra do movimento e da vista,
E seu clarão é tal que todas as armaduras, todas as máscaras são nele deformadas.
Isto que a mão pegou desdenhosa mesmo de pegar a forma da mão,
Isto que foi compreendido não existe mais,
O pássaro se confundiu como o vento,
O céu com sua verdade,
O homem com sua realidade.

Tradução: Virna Teixeira

domingo, 22 de março de 2009

GALERIA: REYNALDO JIMÉNEZ







O poeta argentino Reynaldo Jiménez é um dos autores mais expressivos da poesia de língua espanhola hoje, ao lado de José Kozer, Victor Sosa, Roberto Echavarren, Leon Félix Batista, para citar poucos nomes. Além de poeta, com vários livros publicados (incluindo a antologia Shakti, que organizei e traduzi, publicada pela Lumme Editor em 2006), Reynaldo é editor da revista literária Tsé Tsé, que publicou em 1998 a histórica antologia Pindorama, 30 Poetas de Brasil. Ele é um bom conhecedor da poesia brasileira contemporânea e já traduziu livros de Josely Vianna Baptista, Arnaldo Antunes, fragmentos das Galáxias de Haroldo de Campos, além de publicar em Buenos Aires uma edição do Mar Paraguayo, de Wilson Bueno. Preciso falar mais? Ah, sim, ele foi incluído na antologia Jardim de Camaleões, que saiu em 2004 pela Iluminuras. Leiam abaixo alguns fragmentos de seu poema longo Shakti:

UM POEMA DE REYNALDO JIMÉNEZ

SHAKTI
(FRAGMENTOS)

a Inacessível, a Negra, cicatriza o álibi do presenciar.
colibri até seu índigo, marcheta a matriz dos motivos.
na trapa, onde transtornam os anos de vertigem furtivos,
o espelho se desfaz em cacos: era uma atriz a menina confidente.

estala o caranguejal dos feitiços, quando a isolada
serpe da angústia e da rinha espreguiça entre as brasas
e ingurgita seu deslocar além do íntimo ornamento.
Ela agita suas pulseiras, seu rosário de crânios já não cala;

a flor do som amalgama ao sorrir desde as águas, calma
a espaçada mudança das almas. a conta do destino descrava,
desfixa a mente sua insurgência, madressilva, este ruminar
de um amante. avante vai a lua, evade a face dos emblemas,

copia tremores o revôo em que se integra com seu poço.

(...)

porque adorna uma deusa, o peregrino da espécie deserta.
soletra, como a lepra do pária, uma espera intraluzente, muda
a marca de ofícios e penares em ondas aturdindo, turba ao acudir
interior de um mercado zahorí. palustre o espírito sob os tules,

morada iguana; confim do contemplar, a
ponto de arrostar seu néctar, os devas a corrente afinam
com o limo. com estoque de antiga penetração, o estro
enquanto taumaturgo sacode o sistro da mente, címbalo.

e irradiando usurpação dos prazeres interroga nosso frágil
interregno, rio seu corpo transparece sem um rol entre as pontes.
o convite ao desvio se dá invicto ao saturar de alucinares:
aves lunares roubam sementes entre o vime da mímesis.

(...)

é que esta fome é estame de uma flor que não se abre.
aquela deidade, jamais de ironia, em feixes de cariátide deleite,
ao assemelhar as boas-vindas por igual desflora a ansiedade e a alegria.
o desejo descola da sombra, e vai tão alto, que ao socairo

nossa oração junto ao abismo é o mesmo risco do nascido.
que o desapego me pariu, não o esqueço, embora relembre
o que não convém ao devir. lava, atrai o arisco pela rua,
isca, a poluição dos mentais, mentada pela lâmpada

que já ampara ainda a mania do Mais. quanto tempo simultâneo
amém enraíza por demais em suas desaparições... adentro o ar,
remenda essa noctívaga a ferrugem em que a sonho,
com insônia de fiel sedimento o fluxo de seu amniótico deslize.

Tradução: Claudio Daniel

(Do livro Shakti, de Reynaldo Jiménez. Bauru: Lumme Editor, 2006.)

sábado, 21 de março de 2009

GALERIA: ABREU PAXE


CINCO POEMAS DE ABREU PAXE

qual seria canção
nas tardes da alma
vão caindo equinócios
talvez fria sinfonia penetra na brasa
descalçando metáforas na foz
inclinada à noite
qual seria canção

o cílio dos planaltos
a pedra crua pele de espaços
aberta ao escopro
pele de insetos o diálogo dos ossos
em floração o que fazer agora
sem transparência
casco de dinastias
os textos aqui desembocam nos pilares
e nós
tentando exaustos agarrar o sol
asfixiado
rio no céu da palavra
produz-se o efeito da impressão, repetição, associação
ônus vermelho e púrpura

asuen aryan, a valsa
tatuada: esferas semânticas apenas
lentos idiomas,
trocados espaços o tempo das coisas
o mundo todo nesta cidade
assim na poltrona a sentinela outro texto
impaciente molda a função
vertical o espelho, colchões na estrutura
pétalas, gaivotas, mútua tipóia
ninho molhada alvorada

no pé da cidade
aritmética esta idade cadáveres de luz
enchem à janela vive o pastor na hipotenusa epílogo
de chuvas, capim e passos férteis entregues ao pasto
húmidas dunas semelhantes às flores acolhem artérias
as máscaras enraizadas no sangue, sem travessia
penetram na cartilagem do silêncio sílabas iluminadas
cristalizam o pé da cidade como se fosse de homem

as portas de um produto imenso os teus desejos
minta a paz, a paz que minto, nesta mesma paz
já dizia o mestre, que resta ainda o peito, neste simples produto
as portas imensas criações opacas esses cantos esperas
deixadas nas componentes da luz ausentam-se incontáveis frutos
caminhos que constroem minha íris ao povoar gargantas
que chegam na noite de teus desejos acesas bocas calados gritos
minta a paz, a paz que minto, nesta mesma paz
já dizia o mestre que resta ainda o peito neste, simples produto

a paz um produto imenso os teus desejos

(Poemas do livro O vento fede de luz. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007)

sexta-feira, 20 de março de 2009

GALERIA: ABREU PAXE, LUIZ ROBERTO GUEDES E CLAUDIO DANIEL


PENSANDO EM ABREU PAXE

O poeta Abreu Paxe enviou-me um exemplar de seu último livro, O vento fede de luz, publicado em Luanda pela União de Escritores Angolanos, na coleção Guaches da vida. É um dos livros de poesia mais interessantes que já li nos últimos tempos. A força da imagem poética, os cortes sintáticos, a estranheza vocabular, a música dissonante, tudo na poesia de Abreu Paxe desconcerta os sentidos e a inteligência, fazendo recordar a frase de Mallarmé sobre o “poder encantatório das palavras”. Essa singularidade já estava presente no livro de estréia do autor, A chave no respouso da porta, publicado em 2003. No Brasil, infelizmente, ainda não foi publicado nenhum livro do autor, mas vocês podem conferir alguns poemas dele na Zunái e na antologia Ovi-Sungo, Treze poetas de Angola, que publiquei há algum tempo pela Lumme Editor. Confiram abaixo um dos poemas enigmáticos de O vento fede de luz:


a voz portas do silêncio

abrem-se específicas
portas o silêncio pavimentada voz
o presente denso couro
consome-se deitado entre telas asfálticas
sucessivas palavras ausentes
neste dia as estradas de luz é forma de comunicação
as constelações nas horas diurnas flutuações
só a matéria da passadeira
sentia nas mãos o vento feder de luz
nos pés do reinventado silêncio
era a única linguagem da matéria que possuía falando

quinta-feira, 19 de março de 2009

GALERIA: HENDRICK GOLTZIUS (V)


UM ENSAIO DE EDUARDO MILÁN (CONCLUSÃO)

Por que a poesia deve tender à cristalização do movimento? Diz Buckminster Fuller: “Eu não trato de imitar a natureza, mas de seguir os mecanismos que a regem”. O que importa aqui é a palavra mecanismo. O que as formas fixas tendem a deter é justamente o mecanismo da vida, que é fluxo e devir. Pretender negar o fluir da vida é mais uma concessão à visão pura sobre a vida, uma negação da consciência e o relegamento do poeta à categoria de ser inocente, concessão ao pior espírito romântico. Por último, o recurso à forma fixa resulta ser, por mais paradoxal que pareça, um privilégio do conteúdo sobre a forma, pela crença de que o conteúdo pode, por si mesmo, modificar a forma. A melhor poesia ocidental indica o contrário.

Tudo o que foi dito anteriormente implica um parti pris. Em suas reflexões sobre o Tractatus, em 1929, Wittgenstein dizia que o ético consistia em “arremeter contra os limites da linguagem”. Arremeter, profanar, transformar. Em termos poéticos isso implica ir além das formas fixas e contra toda pureza tentar a criação de uma mestiçagem formal que só pode nos levar a um conceito da forma como transitória. Nessa transitoriedade estaria situado o entroncamento com a tradição libertária de nossa poesia, a tradição crítica, sem temor ao pretenso esgotamento do repertório formal da vanguarda. Sem temor a esse outro fantasma que percorre a poesia atual: o silêncio. De qualquer maneira, como diz Jabès, “se escreve sempre sobre o fio do nada”. Do contrário, os ventos da intemporalidade que sopram diariamente em nossa poesia podem acabar com ela. Poesia: questão de futuro.

Tradução: Claudio Daniel


(Ensaio publicado como posfácio na antologia Estação da fábula, que reúne poemas de Eduardo Milán traduzidos por mim. O livro foi publicado em 2001 pela Fundação Memorial da América Latina.)

quarta-feira, 18 de março de 2009

GALERIA: HENDRICK GOLTZIUS (IV)


UM ENSAIO DE EDUARDO MILÁN (IV)

Ante esse panorama entrópico que resulta da emergência de todas as formas por considerá-las possíveis neste momento histórico e a utilização ideológica da narração como substituto simulado da história, cabe fazer, pelo menos, uma pergunta: sob que ótica ou sob que padrão crítico pode julgar-se, hoje em dia, um poema? A emergência de todas as formas interagindo, aliada a uma negação do tempo e da história, supõe, à primeira vista, uma forma de inocência que, por sua vez, comporta um tipo de olhar inédito em relação à origem. Porém, uma das características do poeta moderno, isto já se disse mil vezes, é sua situação paradoxal frente à modernidade: ao mesmo tempo que é um agudo crítico da modernidade, recupera para si seu legado mais válido, que é, justamente, a crítica, tanto de sua linguagem como do mundo. É isto que, em última instância, está em jogo agora: o esquecimento ou a permanência da função crítica do poeta. A meu modo de ver, frente ao impasse atual por que atravessa a poesia latino-americana, o poeta deve ser mais lúcido do que nunca. A batalha contra o novo — como gostava de dizer Leminski — é uma guerra perdida. E o novo passa hoje por uma revalorização do passado. Revalorização, não retorno. E revalorização implica uma re-historicização, um dar ao César do passado o que é do César do presente. Quero dizer: a única possibilidade de re-historicizar o passado é vê-lo com os olhos de hoje, posição muito contrária à simulação pós-moderna, que pretende, a pretexto da intemporalidade, ver o passado com os olhos do passado, o que, em última instância, implica o fim da tradição. Esta última posição, no que diz respeito à poesia, tem a ver com a utilização das formas do passado. A utilização de uma forma como o soneto, por exemplo, tal qual era usado por Quevedo ou por Lope de Vega, pode constituir, em algum lugar, uma maneira de homenagear uma forma em seu momento de esplendor. Porém, certamente constitui, sem dúvida, para mim, mais uma maneira de homenagear uma fachada do que uma forma integral. Só posso argumentar em relação ao que foi dito antes com uma pergunta: se a vida é imprevisível, incerta e aleatória, por que deve a poesia representar uma forma de máxima estabilidade?

(CONTINUA)

terça-feira, 17 de março de 2009

GALERIA: HENDRICK GOLTZIUS (III)


UM ENSAIO DE EDUARDO MILÁN (III)

A política estética da pós-modernidade absorve essa consciência do passado. Partindo da base que os laços com o passado estão rompidos definitivamente, vai buscar ali os cumes eufóricos desse tempo, os momentos de maior prestígio — não os de maior temperatura estética — e, em um efeito de mímesis atemporal, “recupera” para o presente os momentos de opulência de um tempo que já nada tem a ver com o passado, nem com o presente que derive dele. Deste modo, se des-historiciza o passado e, em conseqüência, também o presente. Se instala assim um novo cânone que dá brilho ao passado em virtude da perda da aura do presente e de uma cega perda da fé no futuro, por considerar este tempo já perfeitamente conhecido em seus distintos graus de erro. O futuro, para esta posição tão precisamente ideológica, corresponde à já provada impossibilidade de uma verdadeira mudança no campo social e, ao mesmo tempo, ao silêncio da escritura. Porém, o que supõe em verdade esta recorrência ao passado prestigioso e seguro é uma abolição temporal e, por isso mesmo, uma estética da simultaneidade (todos os tempos e todas as formas estão aqui etc.). Ocorre algo mais grave ainda: se apaga assim, de um só golpe, o próprio conceito de tradição. A tradição deixa de ser um produto, um devir, um tecido, e a história perde seu efeito narrativo ao transformar-se em “estágios de tempo”, em cristalizações que já não se ligam entre si. Desta maneira o fragmento, desprendido de seu contexto estético, passa a ser a forma da história. Finalmente, aqui aparece a função da narração: ela se torna o recurso para encadear um tempo que não cessa de voltar para si mesmo. o relato, a arte de narrar, passa a adquirir o sentido da história que, por sua vez, se esvazia de significado. A narração poética corre, por último, o risco de ser a forma legitimadora de um discurso histórico vazio.

(CONTINUA)

O COLECIONADOR DE ESMERALDAS VIVAS



















Um dos escritores mais inventivos do Brasil completou 60 anos: Wilson Bueno. Sua prosa, no entanto, é a mais jovem produzida hoje no país pela vitalidade, ousadia, imaginação, coragem temática e estilística. Leiam os romances Cristal, Mar Paraguayo, Meu Tio Roseno a Cavalo ou A Copista de Kafka (que merecia ter ganho o Prêmio São Paulo de Literatura, mais do que ninguém), para terem uma idéia do que estou dizendo. Leiam também os contos, ou poemas em prosa, de Jardim Zoológico, Os chuvosos, Cachorros do céu, Manual de Zoofilia... não é qualquer país que tem o privilégio de possuir um escritor como o meu camarada Wilson Bueno...

segunda-feira, 16 de março de 2009

GALERIA: HENDRICK GOLTZIUS (II)


UM ENSAIO DE EDUARDO MILÁN (II)

Se todas as formas em sua máxima abertura são possíveis é porque cessou o conceito de evolução formal, de não repetição, de mudança. De um ponto de vista teórico, o perigo que alimenta o diálogo atual entre estética e realidade é o retorno à idéia luckacsiana da arte como reflexo da realidade, que tem seu apoio original no conceito aristotélico de mímesis ou norma mediadora, norma que, no diálogo arte — mundo, sustenta uma clara subordinação do primeiro ao segundo. As variantes à norma ficariam assim abolidas e condenadas como degeneração da idéia de “o que está no ar” ou da idéia do “espírito da época”, rumos igualmente totalitários.

Por sua vez, a busca de novos meios de expressão tem, a meu modo de ver, duas possibilidades: o entroncamento com uma tradição libertária, que na lírica hispano-americana foi fundada por Darío e se cristaliza com as vanguardas (Huidobro, Vallejo, o primeiro Neruda, Girondo), ou então o resgate das margens deixadas pela vanguarda em sua tentativa de lançar as bases de um koiné, ou língua única: o detalhe, o matiz, a diferença, a variante dentro da variante, tudo o que, em último caso, não nega uma tradição libertária, senão que, pelo contrário, tende à sua correção, e, ao corrigi-la, amplificá-la.

A primeira possibilidade conta com o apoio do repertório formal da vanguarda (fragmento, simultaneidade, colagem etc.). a segunda inclui um elemento muito em voga neste momento e relativamente novo na poesia do século: a narração. À primeira vista, a narração ocupa na poesia o lugar de flanco, da margem, frente ao repertório canônico da vanguarda, daí que a incursão no elemento narrativo na poesia latino-americana atual possa supor, em si mesma, uma alternativa. Porém, vejamos como o elemento narrativo pode ser ideologicamente usado no marco do cânone estético da assim chamada pós-modernidade, termo tentador para nomear os tempos que correm. A narração está ligada diretamente à idéia ou à necessidade de um vínculo com a tradição. E aqui começa o problema, o titubeio, a contradição. Com efeito, ligar-se a quê, a qual passado temos direito, de que tradição se trata?

Se bem que, creio eu, foi a perda da fé nos motivos fundadores da vanguarda que praticamente obrigou muitos poetas latino-americanos atuais a uma incursão narrativa, também é certo que a estética do fragmento, pedra-de-toque do repertório formal vanguardista, cessou de imperar estilisticamente não por falta de coincidência ou de isomorfismo com uma idéia de um mundo estilhaçado (o mundo contemporâneo), senão por um relativo esgotamento preceitual. Porém, este preceito ou cânone segue correspondendo formalmente a um estado do mundo, o qual, é preciso dizer, não mudou muito, além do campo ideológico. Isto parece corroborar a suspeita de que a derrocada das utopias alcançou também o território da arte com força inusitada.
O fragmento ou sua estética parecem haver correspondido a um grau zero cultural, a um pé no limite, depois do qual toda possibilidade de continuação suporia o abismo ou, em termos poéticos, o silêncio. Chegando a esse ponto, algo parece estar claro; o que existe atualmente como problema na poesia é o deslocamento entre uma forma idônea para oferecer o mundo, a fragmentária, e o deslizamento do recheio desta forma, o presente, rumo a outro tempo mais distante, mais seguro e mais canônico: o passado. E o que produziu esse deslocamento, a meu modo de ver, é a evaporação do correlato histórico da forma fragmentária, ou seja, as possibilidades de mudança social. Agora, claro, esse retorno, essa retirada ou esse desejo de unir-se com uma tradição, tudo o que implica voltar ao passado, supõe alguns perigos. Implica um começar de novo ou, ao menos, uma reescritura. Em A imagem histórica da Ilíada, Rudolf Borchardt adverte:

“Não há diferença entre o espírito de uma tradição destruída e o de uma conservada. Toda tradição está destruída. Os motivos decisivos estão sempre perdidos, inclusive quando aparentemente foram transmitidos.”
Esta afirmação de Borchardt povoa de cruzes nosso olhar ao passado e nos coloca, aparentemente, no descampado, na desolação. Como tentar uma dura tarefa de resgate se não se sabem nem sequer o que se vai resgatar?
(CONTINUA)

domingo, 15 de março de 2009

GALERIA: HENDRICK GOLTZIUS (I)


UM ENSAIO DE EDUARDO MILÁN (I)

POESIA: QUESTÃO DE FUTURO

A poesia latino-americana de hoje se debate numa clara divisão: regressar de forma acrítica a um passado canônico ou continuar a busca de novos meios de expressão. Em termos gerais, o retorno a um passado canônico (ou seja, aos séculos dourados pela tradição: o XVI e o XVII) implica a fuga de um presente caótico e a tentativa de buscar refúgio naqueles momentos históricos, especialmente em sua aura, que auguravam uma tranquilidade espiritual dependente de um certo estado do mundo. A esse estado do mundo corresponderiam formas poéticas claramente tipificadas: o romance, a lira, o soneto etc., cuja emergência em um tempo preciso supunha o surgimento de uma nova maneira de poetar. Essa novidade, claro, supunha também uma carga crítica em relação ao repertório formal da época.

Bem: a novidade destas formas e sua carga crítica implícita estão agora perdidos para sempre. E como o grau de novidade está perdido, o que tais formas comportam é a possibilidade de retornar transparentes e veicular motivos e temas já altamente codificados na poesia ibero-americana: o amor, a morte, o tempo, temas que supõem uma caligrafia maiúscula. Na verdade, o retorno às formas canônicas do passado, dada a sua perda de atualidade, supõe uma a-formalidade. Uma a-formalidade que só é possível pelo estado atual do mundo: perda da fé na história como motor de mudanças, derrocada das utopias tanto estéticas como históricas, o cessar do devir temporal, motivos caros a uma ideologia dominante que tem seu fundamento no chamado “pensamento débil”, que por sua vez joga na oposição os chamados discursos legitimadores e totalizantes. A a-formalidade, produto por sua vez da intemporalidade que subscreve a presentificação de todos os tempos interagindo agora, último golpe da negação da História, está em conflito direto com a idéia de evolução das formas em arte, idéia muito cara à modernidade, que sustentou o pensamento estético das vanguardas históricas.
(CONTINUA)

Tradução: Claudio Daniel


(Ensaio publicado como posfácio na antologia Estação da fábula, que reúne poemas de Eduardo Milán traduzidos por mim. O livro foi publicado em 2001 pela Fundação Memorial da América Latina.)

sábado, 14 de março de 2009

LETRA NEGRA EM CRONÓPIOS


















Caros, escrevi um poema longo entre janeiro e fevereiro deste ano, chamado LETRA NEGRA. Publiquei alguns fragmentos aqui na Pele de Lontra. A versão integral do poema foi publicada no site Cronópios, e pode ser acessada na página http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=3849

Besos,

CD

sexta-feira, 13 de março de 2009

quinta-feira, 12 de março de 2009

GALERIA: MÁRCIO-ANDRÉ


UM POEMA DE MÁRCIO-ANDRÉ

PEIXE-FALHA

eis um gólem de merda ou de arame
אמת
no anticorpo da pedra
o dúctil da pedra

todo caos é provisório
polpa pra formar cabeças
umbigo-plexo no eixo do sol
autômato
peixe-falhante-d-estrelas
a cidade assentada na base da montanha como
um brinquedo de deus
de arame ou de merda – cidade-gólem
escrita ao contrário
as sete mil patas de rua no coração do câncer

e o cão sonhando a canidade
ou os homens
a nomear quantidades cada vez maiores

os dentes da barata são macios e
acariciam a pele
dormir como quem acorda –
parcialmente morto ou
morto
מת


Blogue do autor: http://intradoxos.blogspot.com/

quarta-feira, 11 de março de 2009

EU TAMBÉM QUERO SER EXCOMUNGADO




O cardeal Giovanni Battista, presidente da comissão pontifícia do Vaticano para a América Latina, defendeu a excomunhão da mãe e da equipe médica que realizou o aborto na menina de nove anos estuprada pelo padrasto, conforme noticiou a Folha de S. Paulo no dia 08 de março. Segundo esse clérigo imbecil, o aborto é mais grave do que o estupro, e o parto deveria ser realizado, mesmo que com risco de vida para a mãe (e ainda que esta sobrevivesse, é óbvio que uma criança de nove anos não tem condições para criar dois bebês, isto sem falar do trauma psicológico). A excomunhão da mãe da menina e dos médicos, como todos já leram nos jornais, foi decretada por outra besta quadrada, D. José Cardoso, que sucedeu a D. Hélder Câmara, uma figura histórica única na vida brasileira. Como protesto a essa barbaridade, surgiu a campanha Eu também quero ser excomungado. Quem quiser participar, envie um e-mail para essa anta, solicitando a sua excomunhão, pelo endereço arcebispo@arquidioceseolindarecife.org.br.

Há braços indignados,

CD

terça-feira, 10 de março de 2009

GALERIA: DANILO BUENO


UM POEMA DE DANILO BUENO

METAMORFOSES

permanecer o mesmo
ao revolver-se outro
dentro de todos

escombro de encontros
atônito
simulacro de assombros

monstro
epígono de anônimos


* * *

do desterro do tempo
o enredo do corpo,
lento volteio até o outro,
alheio e incôngruo
ignoto de mim
assomo meu todo

(Poema do livro Corpo sucessivo. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2008)

DALAI-LAMA DENUNCIA GENOCÍDIO NO TIBETE




AFP
(Em Dharamsala, Índia)

O dalai-lama acusou nesta terça-feira a China de ter transformado o Tibete em um "inferno" e de ter matado "centenas de milhares de tibetanos", por ocasião do 50º de aniversário do levante que obrigou o líder espiritual a exilar-se na Índia e Pequim a reforçar a segurança.

Do exílio em Dharamsala, norte da Índia, o dalai-lama voltou a reiterar a reivindicação de uma "autonomia significativa" para seu país natal.

"Estes últimos 50 anos têm sido de sofrimento e destruições para o território e o povo do Tibete", afirmou o Prêmio Nobel da Paz de 1989 em um discurso pronunciado em um templo do Himalaia indiano.

"Uma vez ocupado o Tibete, o governo comunista chinês passou a realizar ali toda uma série de campanhas de violências e repressão (...) Os tibetanos têm vivido literalmente um inferno na Terra", acusou o líder do budismo tibetano.

"Consequência imediata destas campanhas: a morte de centenas de milhares de tibetanos", falou.

(Matéria extraída do noticiário da UOL)

segunda-feira, 9 de março de 2009

GALERIA: IZABELA LEAL


UM POEMA DE IZABELA LEAL

MARROCOS OU ALÉM

W. L. sempre chegava à noite, depois de ter matado baratas

ele precisava escrever o acúmulo sombrio dos devaneios
noturnos, os vazios desproporcionais entre a realidade e o
fora

sua mulher o beijava e o pó resplandecia na boca, ela
desabotoava a blusa, o hálito entrelaçado aos odores da rua

era preciso matá-la

e o médico, um certo doutor B., abria portas janelas
corredores oblíquos onde se morre aos poucos com o veneno
agudo das lacraias

talvez ele devesse partir para Tanger, estremecer os ossos nos
ruídos distantes em meio aos ávidos olhos mouriscos
ou permanecer de pé enquanto o mal se misturava ao sangue

as palavras infestavam seus ouvidos, ele já estava tão distante

a trama do mundo se esgarçava, alguém havia puxado um fio
em alguma parte do universo

ele procurava sua clark nova

e sabia

sabia que o assassinato era uma alucinação na rotina, um
espasmo entre as fibras da memória, uma contração nos
molares

era preciso escrever ou permanecer para sempre em interzona

domingo, 8 de março de 2009

GALERIA: JACINEIDE TRAVASSOS


UM POEMA DE JACINEIDE TRAVASSOS

NATUREZA MÓVEL COM PEIXES VERMELHOS

o mundo faz-se do olhar
espaços sugeridos pela diagonal
planos sem volume
dissolvem-se na memória

as mãos lentamente
erguem a escritura das ondas

o olhar afoga-se
por entre o anil do céu
e o musgo das árvores
compõe-se o quadro dos amantes
navega-se sobre as águas do ar
plumas semeadas de olhos

o navio alça-se pássaro
lança-se em águas etéreas
a âncora faz-se ânfora
os corpos entrelaçam-se
na trilogia do sonoro do diáfano do móbil
na ânsia do toque
os olhos
mergulha-os no aquário
com peixes vermelhos

(Poema do Livro dos Ventos, inédito)

sábado, 7 de março de 2009

A CAIXA PRETA DA LUMME


A proporção é desmedida” (Jorge de Lima)

Publicar livros de autores brasileiros que realizam uma pesquisa poética imaginativa e com artesanato de linguagem é a proposta da Série Caixa Preta, organizada por Claudio Daniel para a Lumme Editor. É nosso desejo apresentar ao leitor textos inventivos, inquietos, enfim, em estado de poesia.


Títulos publicados:

Paulistanas / Homoeróticas, Horácio Costa

Pincel de Kyoto, Wilson Bueno

Poemas diversos, Elson Fróes

Mergulho às avessas, Andréa Catrópa


Próximos lançamentos:

Trânsitos, Virna Teixeira

Fronteiras da pele, Ana Maria Ramiro

Prática do azul, Jorge Lúcio de Campos


Pedidos pelo e-mail vendas@lummeeditor.com

quinta-feira, 5 de março de 2009

GALERIA: GUTO LACAZ


ZUNÁI, REVISTA DE POESIA E DEBATES

Ano V, edição XVII, março de 2009

A poesia como exercício da perplexidade: entrevista com Maria Esther Maciel

Exposição virtual do artista plástico Guto Lacaz

26 aforismas sobre poesia, ensaio-manifesto de Rodrigo Garcia Lopes

A verdade do tempo reversível, ensaio de Raul Antelo

É possível uma tese sem teoria?, depoimento de Aurora Bernardini

John Cage — Augusto de Campos, um diálogo, ensaio de Daniel Lacerda

Abreu Paxe: calígrafo, ensaio de Francisco Soares

Cartas de Miami, por José Kozer

Alguna poesía reciente desde Argentina, antologia organizada por Reynaldo Jiménez

Traduções de Issa Kobayashi, Han Shan, Antonio Machado, Giuseppe Ungaretti, Dino Campana, Arturo Carrera, Elizabeth Bishop, Dylan Thomas

Poemas de Sérgio Medeiros, Álvaro Faleiros, Winner Chiu, Mônica Berger

Seis poetas do Peru: mostra poética organizada por Gladys Mendia

Marília, conto de Giovanna Batini

Acordos, conto de Rogério Augusto


Zunái, revista de poesia e debates.
Onde encontrar
: novo endereço, www.revistazunai.com
Preço: inefável; inconcebível.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS (III)







Caros, uma boa notícia: a livraria que a Imprensa Oficial instalou na Casa das Rosas tem 40% de seu acervo dedicado à poesia, incluindo obras editadas pela Lumme, Demônio Negro e Dix, editoras que têm se destacado nos últimos anos por publicarem livros de qualidade de poetas brasileiros contemporâneos. Há várias coisas interessantes lá, inclusive alguns títulos da coleção Caixa Preta (Pincel de Kyoto, de Wilson Bueno; Poemas diversos, de Elson Fróes; Mergulho às avessas, de Andréa Catrópa). Quem quiser adquirir meus livros, encontrará ali o Figuras Metálicas, Jardim de Camaleões, Yumê, Ovi-Sungo (Treze poetas de Angola) e Sunnyata (coletânea com traduções do poeta uruguaio Victor Sosa).

Outra coisa: o site Cronópios publicou meu poema LETRA NEGRA em versão integral, confiram no endereço http://www.cronopios.com.br/

Besos,

CD

quarta-feira, 4 de março de 2009

ZUNÁI NO OLHO DO FURACÃO






Caros, a Zunái n. 17 estará on line em breve, trazendo uma exposição virtual de Guto Lacaz, entrevista com Maria Esther Maciel, traduções de Ungaretti, Han Shan, Antonio Machado, textos de Raúl Antelo, Aurora Bernardini, Rodrigo Garcia Lopes e muitas outras novidades. A revista, que existe há cinco anos, passou por sérias dificuldades financeiras: ela é mantida por seus editores e eventuais colaboradores e o nosso orçamento é muito limitado. Felizmente, várias pessoas escreveram, oferecendo apoio à revista, e agora será possível manter a publicação por mais algum tempo. Claro, não recebemos nenhuma proposta de patrocínio da Saraiva, nem da Siciliano, Globo ou Companhia das Letras; foram amigos e leitores da revista que, generosamente, aceitaram contribuir para o pagamento de nossa webmaster, Mariza Lourenço. Caso contrário, esta edição seria a última. Fico feliz em poder continuar editando a Zunái, ao lado do Rodrigo de Souza Leão, com os mesmos princípios de invenção, rigor e recusa ao fácil que sempre orientaram o nosso trabalho.

terça-feira, 3 de março de 2009

O CAMINHO COMBINADO DA CANETA E DA ESPADA
















Caros, vou ministrar um curso de poesia na Academia Internacional de Cinema, entre os dias 8 e 29 de abril (sempre às quartas-feiras), das 19h30 às 22h30. Vou falar sobre Mallarmé, Valéry, Pound, Maiakovski, Drummond e Haroldo de Campos, todos eles mestres-samurais na arte da palavra. A AIC fica na rua Dr. Gabriel dos Santos, 142, Higienópolis, próxima à estação de metrô Marechal Deodoro. Quem estiver interessado em fazer o curso pode contatar a AIC pelo tel. (11) 3826 7883, ou pelo e-mail info@aicinema.com.br.

PENSANDO EM ANA HATHERLY (II)







“O jogo não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, ou pelas que opõem a verdade e a falsidade, ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade material, não desempenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe as noções de vício e virtude” (HUIZINGA, 2007, 9). Por estar além das dicotomias habituais da ética e da metafísica e assumir “acentuados elementos de beleza”, o jogo está próximo da estética. Estas formulações de Huizinga guardam um forte paralelo com o texto inicial do romance O Mestre, de Ana Hatherly: “A Mentira é recriação de uma Verdade. O mentiroso cria e recria. Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é tênue e delicada. Mas as fronteiras entre as palavras são todas tênues e delicadas. Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo” (HATHERLY, 2006a: 21).

Nesta passagem programática, além de relativizar as noções de verdadeiro e falso — tema aliás abordado na Tisana 298 —, a autora brinca com as diferentes acepções da palavra jogo, entre elas a de “recreio” (que no dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda aparece como “brinquedo”, “passatempo” e “divertimento”), num tom irônico e ardiloso que aponta para outras definições de jogo, como “escárnio, ludíbrio” e “manha, astúcia, ardil” (HOLLANDA, 1986: 990). A palavra “recrio” também é estratégica, pois indica o engenho inventivo da autora, que se propôs a escrever um romance que em nada se parece com a tradição clássica do gênero, situado fora das dimensões narrativas tradicionais e com peripécias que se resumem a breves diálogos e poucas ações.

O jogo entre recriação e recreio tramado nesta obra “rompe com as fronteiras estabelecidas entre a narrativa e a poesia”, como diz Nadiá Paulo Ferreira (HATHERLY, 2006a: 14), inserindo-se, portanto, na mesma zona híbrida e miscigenada de Anacrusa e das Tisanas: não se trata de prosa poética ou romance em versos, mas sim de texto inventivo, experimental, que despreza os limites entre os gêneros. Conforme observou Maria Alzira Seixo na segunda edição portuguesa de O Mestre, há nessa obra “um grande afastamento em relação à definição das estruturas romanescas consideradas normais (tempo, personagens, espaço, intriga)” (HATHERLY, 1976: 10), o que diferencia este livro da “tradição do romance oitocentista que se prolonga (...) pelas primeiras décadas do século XX afora, tanto na Presença quanto no Neo-Realismo” (HATHERLY, 2006a), como escreveu José Carlos Barcello na contracapa da edição brasileira.

“Ana Hatherly não escreveu este livro como se Virgínia Woolf e James Joyce nunca tivessem existido. Escreveu a partir do seu legado, sem deixar de se associar à efervescência experimental dos anos 60”, segundo Silvina Rodriges Lopes, em seu prefácio à terceira edição portuguesa do romance (HATHERLY: 1995, 8). Ao contrário das narrativas ficcionais de cunho linear, em O Mestre “as personagens não têm nome próprio. As palavras que têm como função substituir o nome próprio apontam para o lugar que as personagens ocupam em uma história de amor”, diz Nadiá Paulo Ferreira (HATHERLY, 2006a, 13). Em vez de nomes, o romance traz epítetos para os personagens: assim, temos “uma Discípula que procura obstinadamente um Mestre para amar e ser amada, o que lhe permitiria (...) ‘atingir a Alegria’ ” (idem, 14), e um Mestre “cuja principal característica é o riso” (idem, 15). “Mestre e discípulo são conceitos fundamentais envolvidos no processo pedagógico que visa a transmissão e renovação de conhecimento”, escreve Silvina Rodrigues Lopes (HATHERLY, 1995, 11).

“Os Mestres vêm do Oriente”, prossegue a autora, “confundindo-se com os enigmas das suas falas; são, como Sócrates, exemplares e irônicos (...). Por um movimento de abstractização, o Mestre torna-se todos os mestres” (idem), assim como “a Discípula, que é todos os discípulos” (idem). Ela “representa a capacidade de pergunta e de questionação, a perseguição de uma finalidade que aqui se chama amor ou ciência”, conforme Maria Alzira Seixo (HATHERLY, 1976: 14). Temos aqui tipos dramáticos, portanto, como no teatro vicentino: o Mestre, com um perfil de monge zen ou sábio taoísta, que prefere o riso, o silêncio ou sentenças enigmáticas a um ensinamento direto da verdade (assim como nos koans budistas, parodiados nas Tisanas); e uma Discípula ávida pelo saber, que para ela é o mesmo que o amor e a alegria (numa palavra: a plenitude).

Este livro desconcertante, narrado ora na terceira pessoa, ora na primeira (como as Tisanas), é, paradoxalmente, um ensaio sobre o amor, ou ainda sobre a impossibilidade do amor, um dos temas básicos de Ana Hatherly, sintetizado na Tisana 285: “O verdadeiro amor é um ato indisponível” (HATHERLY, 2006b: 113). Conforme Nadiá Paulo Ferreira, “O Mestre se insere de forma bastante original na tradição do mito de amor das literaturas em língua portuguesa” (HATHERLY, 2006a, 13), embora sem os “artifícios românticos que velam o amor impossível” (idem). A originalidade da autora, diz Nadiá Paulo Ferreira, está na “conjugação entre amor e saber, sendo que este último se torna condição para a descoberta do amor e sua verdade” (idem, 14). O vínculo pedagógico e de sedução entre Mestre e Discípula é justamente o eixo narrativo do livro, cuja estrutura é similar à de um jogo.

(Trechos do ensaio A poética do jogo no romance O mestre, de Ana Hatherly, que publiquei no n. 39 da Revista do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal de Minas Gerais.)

segunda-feira, 2 de março de 2009

PENSANDO EM ANA HATHERLY (I)



















Tisanas são um conjunto de composições poéticas breves que Ana Hatherly escreve desde 1969, constituído até agora de 463 fragmentos numerados, que a autora chama de poemas em prosa. Foram publicadas seis edições desse livro, entre 1969 e 2006, e a cada nova edição foram incluídos novos textos, que oscilam entre o aforismo, a parábola, a narrativa ficcional, o koan, o verbete de dicionário ou enciclopédia, o diário e a fábula, dispostos de modo aparentemente caótico, descontínuo, sem uma ordem seqüencial linear. Este é um work in progress que desafia a própria classificação dos gêneros literários, bem como a distinção tradicional entre prosa e poesia, em favor da noção de texto. O caráter híbrido ou miscigenado dessa série de escrituras foi notado por Pedro Sena-Lino, para quem estes “textos inclassificáveis” não se enquadram em “nenhum subgênero literário”, mas, ao contrário, incorporam “vários subgêneros, do poema em prosa ao microconto, até as fábulas” (LINO, 2006). O leitor dessa obra, diz ele, fica desorientado por sua “variedade de registros, subgêneros e temas, sem saber com que aspecto do real, da ficção, do maravilhoso ou da desconstrução (ou de nenhum destes) lida em cada texto” (idem). Essa ruptura de fronteiras entre os gêneros é sintomática do tempo em que vivemos, regido pelo sincretismo da pós-modernidade, que desconsidera limites entre tempos e territórios culturais.

Em sua pesquisa das formas da narração poética, Ana Hatherly incorpora nas Tisanas elementos das mais diversas espécies de texto, inclusive dos bestiários medievais (nas Tisanas 6 a 14, por exemplo, os personagens são insetos, galos, peixes, porcos e serpentes) e das prosopopéias (como na Tisana 15, que narra a saga de duas ervilhas, a Tisana 17, cuja protagonista é uma chave, ou as Tisanas 16 e 18, em que a própria palavra é personagem). A autora faz incursões na teratologia, criando seres singulares como o papa-sombras (Tisana 63), o homem-triângulo (Tisana 73), o mono-asa (Tisana 83), o homem elástico (Tisana 219), inventa nações fantásticas, seguindo o gênero de Jonathan Swift, como a ilha dos náufragos (Tisana 93), a ilha onde se perdia o tempo (Tisana 94), a ilha de vidro (Tisana 98), a ilha de manteiga (Tisana 191) e o país dos coveiros (Tisana 212); em outros fragmentos, parodia verbetes de enciclopédia (“A sabedoria do amor consiste na aprendizagem pelo sofrimento, do prazer nele contido”, diz a Tisana 30; “A civilização consiste em aprendermos a fazer naturalmente tudo o que não é natural”, lemos na Tisana 28), o discurso erudito (como nas Tisanas 370 a 373 e a 377, onde são citados Schopenhauer, Kafka, Benjamin e Lou-Andréas Salomé), a epistolografia (Tisana 2, escrita em francês) ou o livro de memórias, com descrições de sonhos, viagens e visitas a amigos.

Em outros fragmentos do livro, descreve invenções inúteis ou fantasiosas como a máquina chamada “o suicida” (Tisana 54), em que uma bolinha percorre um aparelho engenhoso até cair num buraco e produzir o som TILT; o jogo de xadrez sem pedras, que deve ser jogado no escuro para a “descoberta tateante” das peças ausentes (Tisana 71); e ainda a escada mole, por onde “ninguém conseguia descer a não ser caindo” e a escada elástica, “que não só não cansava nada como devolvia os que subiam instantaneamente ao nível da partida” (Tisana 82). A autora recria elementos da natureza, que são transformados em objetos e seres inverossímeis como a “lagosta cúbica” citada na Tisana 225, o “ninho de gelo” referido na Tisana 227 ou o “letramoto” (terremoto de letras) da Tisana 268; imagina ações irrealizáveis, relacionando-as de modo irônico com a noção de verdade, que orienta a nossa concepção do real: “querer tocar com a mão as alturas; secar o mar; defender a verdade; acreditar no crer” (Tisana 290).


(Trecho do ensaio A escrita em metamorfose: uma leitura das Tisanas, que publiquei na revista Via Atlântica n. 11, do Centro de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo.)

domingo, 1 de março de 2009

ÚLTIMAS NOTÍCIAS (II)






“A influência do cinema, da música popular, da filosofia oriental, da mitologia beat e das histórias em quadrinhos é visível em autores como Ademir Assunção (LSD Nô, 1994; Cinemitologias, 1998; Zona branca, 2001), Maurício Arruda Mendonça (Eu caminhava assim tão distraído, 1997), Ricardo Corona (Cinemaginário, 1999; Tortografia, 2003; Corpo sutil, 2005) e Rodrigo Garcia Lopes (Solarium, 1994; Visibilia, 1997; Polivox, 2001; Nômada, 2004). São poetas que mesclam referências cultas às linguagens da comunicação de massa, explorando também o imaginário e as formas estéticas de culturas não-ocidentais, como os mitos indígenas e a poesia chinesa e japonesa. Eles criaram revistas literárias como Medusa, Coyote, Oroboro e realizaram shows e performances artísticas, levando a poesia para fora de seu ambiente exclusivamente literário. Ademir Assunção organizou o ciclo de música e poesia Outros Bárbaros, no Itaú Cultural, e lançou o CD Rebelião na Zona Fantasma, onde faz um interessante cruzamento de linguagens com o blues, o rock e o poema falado; Ricardo Corona gravou os CDs Ladrão de fogo e Sonorizador, onde dialoga com a música contemporânea de vanguarda, e Rodrigo Garcia Lopes lançou o CD Polivox, explorando os recursos da poesia vocalizada com os ritmos da música popular brasileira.”


(Fragmento do ensaio Geração 90: uma pluralidade de poéticas possíveis, que publiquei no livro Protocolos Críticos, organizado pelo Itaú Cultural e lançado pela editora Iluminuras. A obra reúne ensaios sobre literatura brasileira escritos por participantes do Programa Rumos.)